segunda-feira, 7 de setembro de 2009

CAPÍTULO XVIII

Cada lanho deixara na sua carne — costas, braços, pernas, até coxas — uma sensação de fogo. O ve­lho já não batia mais — estava de pé, o cinto dobrado na mão, exausto de odiar. Enquanto a filha em cima do divã, enroscada, tem um chôro manso, um chôro hu­milde, um pranto sem raiva — o pai gagueja:
— Pede perdão, anda!
Êle próprio sente que sua cólera desapareceu até o último vestígio. Sem se virar, enxugando a coriza com as costas da mão, soluça:
— Perdão, papai.
Atônito (e mesmo enojado) da própria violência, Dr. Arnaldo senta-se na outra extremidade do divã. Engraçadinha continua soluçando. Agora, que não apanha mais, sente uma paz intensa, uma calma arden­te. Mas na pele cortada a chicote, isto é, a cinto, per­siste a sensação de fulgor. Passando a mão no nariz, olha o velho, de lado, furtivamente. Dir-se-ia: que era um pai desconhecido, um pai inesperado, que ela via pela primeira vez. Dr. Arnaldo costumava dizer, com uma vaidade meio triste: — “Jamais dei um tapa na minha filha, um cascudo, nada”. Era verdade: — nun­ca! E apesar disso, ou por isso mesmo, havia entre os dois um limite cortante, de cerimônia, de polidez ou, digamos a palavra exata, desamor. Agora, porém — por mais estranho que pareça — o pai tinha a ilusão de que estavam mais unidos. Pensa: — “Começou a gostar de mim. Já me tem amor”. Ou estaria engana­do? Gostaria de observá-la sem ser visto. Repetiu para si mesmo: — “Só os que batem são amados pelas crian­ças e pelas mulheres”. Em vez de recolocar o cinto, atira-o longe: — “Ela me chamou de papaizinho, pela primeira vez. Nunca me tinha chamado assim”. Ao ba­ter na filha, julgara perceber, no seu olhar atônito, a sombra de um prazer selvagem. Gostou de ter medo! — e repetia com certeza fanática — “A mulher gosta de ter mêdo!” Ela apanhava e nunca sua bôca fora tão voluptuosa.
Vira-se para Engraçadinha:
— Chega pra cá. Senta aqui.
Engraçadinha, na outra extremidade do divã, pas­sa novamente a mão no nariz. De cabeça baixa — sem querer olhá-lo — foi se aproximando, lentamente. Pensa — “Letícia deve ter escutado os meus gritos”. Imagina o espanto e o terror da prima — inclusive das tias — quando perceberam que ela apanhava. Letícia era das que dizem, com o rosto em desafio: — “Panca­da, não!” E ela mesma, Engraçadinha, fartara-se de gabar-se para as colegas e as outras primas: — “Nun­ca apanhei!” Subitamente, aos 18 anos — e depois de conhecer o amor, fisicamente — levara a primeira sur­ra. O curioso é que, ali mesmo, decidiu que não guar­daria segrêdo. Suas amiguinhas iam saber. Imaginava o espanto das outras quando anunciasse: — “Levei uma surra de papai”. Ela própria não entendia o de­leite de uma nova e voluntária humilhação.

* * *

Letícia escutara o primeiro grito, sim. Pouco an­tes, Sílvio aparecera:
— Titio sabe?
E ela:
— Já.
Desesperado, ia dizer qualquer coisa, quando se ouviu o berro de Engraçadinha. A primeira idéia que ocorreu a Letícia foi de que Dr. Arnaldo estava ma­tando a filha. Agarra o primo:
— Vai lá!
— Pra quê?
Segura-o pelos dois braços:
— Não deixa, Sílvio!
As tias cochichavam entre si: — “É Engraçadi­nha que está apanhando!” Tia Zezé, que aparecera por lá acompanhada do marido gordo, exclamou triun­fante:
— Bem feito!
Letícia volta-se, como se fôsse agredi-la: — “A se­nhora não tem coração!” A outra empinou o queixo:
— Sua fedelha!
Mas já o Tio Nonô, com a sua ferocidade jocunda — êle ria de tudo e por tudo; ria até nos velórios — arrastou-a para a varanda: — “Não te mete, mulher, Mania de se meter!” Mas a tia Zezé abanava-se com uma revista, feliz de ver Engraçadinha apanhando. “Debocha de mim”, ia pensando. O gordo ria ainda: — “Quem precisava de umas bolachas é você, mulher!” Estaca, furiosa: — “Se faça de tolo!”
— Você não vai?
Engraçadinha continuava gritando. Sílvio perdeu a paciência:
— Escuta, Letícia! Essa situação foi criada por você! A culpada é você!
Berrou:
— Por que todo homem é covarde?
O rapaz podia ter respondido: — “Se você não fôsse mulher, partia-lhe a cara!” Mas calou-se, ou, por outra: — disse simplesmente: — “Eu não posso ir, por­que vou me atracar com meu tio!” Parou por aí, mas pensava: “Se êle me esbofeteasse, teria tôda a razão, tôda. Porque, afinal de contas, eu lhe deflorei a filha”. Letícia atirou-se em cima de uma cadeira, aos soluços. Tia Zezé, na sua cólera de nervosa, de irritada, dá, de leve, com o cotovelo, em Tio Nono: — “Olha o his­terismo!” Naquele momento, Sílvio passava, a cami­nho da rua. Ia pensando: — “Eu não devia voltar”. E repetia: — “Se eu tivesse um pingo de vergonha na cara, não voltaria nunca mais”. Até que Letícia não ouviu mais gritos de Engraçadinha, nem escutava o som da correia estalando na sua carne. Apertando o rosto entre as mãos, ela cerrava os lábios: “Ah, se eu fôsse homem! Ia lá, quebrava a cara daquele velho sem-vergonha!” Pela primeira vez odiava alguém: — “Não falo mais com êle, oh, meu Deus!” Ao mesmo tempo, decidia: — “Hoje, vou dizer tudo a Engraçadi­nha, tudo!” Ia passar a noite lá e dormiria com a pri­ma. — “Engraçadinha só tem uma amiga no mundo: — eu!”

* * *

Dr. Arnaldo não batia mais. Estavam sentados, lado a lado, no diva. De perfil, um para outro, e ca­lados. Súbito vira-se para a filha e a faz virar-se também:
— Engraçadinha, olha pra mim.
Ergue o rosto:
— Estou olhando.
Ela tem um certo enleio, uma brusca vergonha da­quele rosto tão próximo e daquele olhar de fogo. O pai continua:
— Não tira os olhos dos meus. Assim.
Depois que lhe batera, o velho sentia que já existia entre os dois um vínculo intenso. “Nunca nos olha­mos tanto”, era o que pensava. Continua:
— Amanhã, vou te levar ao médico.
Balbuciou:
— Médico?
— Sim.
Engraçadinha baixa a cabeça. Êle não podia ima­ginar que a pequena acabava de sentir um estreme­cimento que se extinguiu no fundo do seu ser. Desde 13 para 14 anos que tinha uma inveja maravilhada das senhoras que vão aos médicos especialistas. Nos cochichos com as coleguinhas, da mesma idade, pouco mais ou pouco menos, fazia uma afetação de pudor: — “Eu tinha vergonha”. Mentira. Vergonha nenhuma. E pelo contrário: — tinha uma pungente curiosidade. Aquilo mexia com tôda a sua imaginação. Tanto que sempre imaginava: — “Quando eu fôr casada, de vez em quando apareço no médico de senhoras”. Mesmo que não tivesse nada, diria: — “Ando com uma dor aqui. Ovário, não é, doutor?” Êle, então, responderia: — “Vamos examinar”. De vez em quando, criava a cena, retocando-a aqui e ali, acrescentando e substi­tuindo detalhes. Fazia questão, porém, que fôsse um médico ainda moço, bem parecido, e cuja barba densa e bem feita desse ao rosto uma sombra azulada. Fin­gindo enleio, simulando timidez, de olhos baixos, ar­risca :
— Que médico?
E êle:
— O nosso.
Sem dizer nada, resmunga para si mesma: — “Logo êsse!” Achava o médico da família, textualmen­te, um “chato” e, ainda por cima, um velho. Êsse não tinha graça, oh! De mais a mais, pai de não sei quan­tos filhos e um sujeito que, quando se assoava, dava roncos hediondos dentro do lenço. Faz sua voz mais doce: — “Papai, o senhor não acha que é melhor, tal­vez, um médico que não conheça a gente?” Dr. Ar­naldo ergue o rosto, vivamente.
— Desconhecido? — vacila: — Talvez. É mesmo. Tem razão. Desconhecido é melhor.
Ela gostava de Sílvio, tinha loucura por Sílvio. E acabava de ser ofendida e humilhada. Apesar de tudo — embora sofresse — experimentava, ao mesmo tempo, uma espécie de euforia e, mesmo, de vaidade. Sim, agora podia ir ao especialista, queixando-se de dores imaginárias. Ao vê-la, o médico havia de fingir puro interêsse profissional. Mas, por dentro, estaria pensan­do: — “Linda!” Ela já premeditava, para si, uma ati­tude de pudor. Claro que ia ficar vermelha. E só que­ria ver a reação do Fulano. Súbito, começou a sofrer. — “E Sílvio, meu Deus?”
O pai estava falando:
— Outra coisa, minha filha: — ninguém pode sa­ber de nada.
Admirou-se: — “Nem Sílvio?” — Foi violento:
— Nem Sílvio, nem Letícia, nem ninguém. Só eu e você. Vou apressar o casamento de Sílvio com Letícia e o teu com Zózimo.
Estremeceu: — “Zózimo?” Teve uma irritação profunda, um ódio que a fêz trincar os dentes. Por um momento veio-lhe a tentação de dizer: — “Qualquer um, menos êsse, papai!” De fato, o único desejo que a exasperava e, mesmo, humilhava era o de Zózimo. “Êsse palhaço”. Dr. Arnaldo ergue-se: — Você dei­xa que eu falo com Sílvio, mas olha: — êle não pode saber — jamais! — que é seu irmão, está ouvindo? Respondeu: — “Sei!” Agarrou-a com violência:
— Jura que não dirás a ninguém, nunca?
— Juro.
Sacudiu-a:
— Pela alma de tua mãe?
E ela:
— Pela alma de minha mãe.
Subitamente calmo, o velho baixa a voz:
— Vai, minha filha, vai.
Engraçadinha abandona a biblioteca. Dr. Arnaldo vem sentar-se no divã: — “Essa Letícia que passa o noivo adiante, com a maior irresponsabilidade”. Êle não consegue pensar em Sílvio. Seu ódio esquece o fi­lho. No fundo do corredor, Letícia a esperava sôfre­ga. Atirou-se nos seus braços; e chorava: — “Oh, En­graçadinha! Estou chorando de ódio!” E a outra: — “Não liga!” Letícia fala baixo: — “Põe a mão no meu coração, põe! Vê como está batendo!” Vem de braço com Engraçadinha e ainda sopra: — “Tia Zezé é uma víbora!” Engraçadinha suspira; êsse afeto ao seu lado, êsse carinho faz-lhe um imenso bem. Na sala, as ve­lhinhas viram-se para ela com essa curiosidade malig­na que qualquer mulher tem por outra que acaba de apanhar. Letícia segreda: — “Queres que eu fique aqui e durma contigo? Telefonei para mamãe, queres?” Res­pondeu saturada: — “Não obrigada. Não vale a pena. Amanhã te falo”.
Depois que a outra saiu trancou-se no quarto. Pen­sava ora em Silvio, ora no médico. Odiava Zózimo. Deixando a camisola escorregar, pela cabeça, sobre o corpo nu, pensava: — “Não posso deixar a porta encostada”. Tinha certeza de que êle viria. Veio, de pés descalços, para junto da porta. Brinca com a cha­ve, torcendo-a, destorcendo-a, uma porção de vezes. Pergunta a si mesma: — “Deixo a porta encostada ou não?” Teria essa coragem? Encosta o corpo na porta. Sente a chave entre os seios. “Êle não pode entrar, não pode entrar, não pode!” Destorce a chave e entreabre. Em seguida, empurra a porta e a fecha novamente. De onde estava apaga a luz. Ficou assim muito tempo, calada, no sonho da carne e da alma. E, de repente, sente passos. Alguém mexe no trinco.

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