sábado, 5 de setembro de 2009

CAPÍTULO XVI

A princípio, Dr. Arnaldo não entendeu. Não espe­rava aquela agressividade de tímido, aquela paixão de humilde. Zózimo gritava com tôdas as forças:
— Que idéia faz o senhor de mim? Duvida de meu amor? Eu amo sua filha! Amo! Eu!
Pára arquejante: — “É um falso humilde, um falso tímido”, concluía Dr. Arnaldo com uma satisfação en­venenada. E parecia-lhe, mais do que nunca, que a hu­mildade é o disfarce de sombrias iniqüidades. Levan­tou-se (intimamente satisfeito e mesmo com uma certa euforia) e veio pôr-lhe as duas mãos no ombro:
— Calma, jovem, calma! Você é muito nôvo! Não se exalte e pra quê? Não vale a pena!
O outro repetia ainda, ofegante:
— Amo sua filha!
Agora em pé, o velho deixa passar um momento; começa:
— Mas você não respondeu ainda à minha pergunta. O que é que você faria?
Responde com outra pergunta:
— Mas isso é verdade? Isso aconteceu?
Sente o terror do rapaz. Zózimo tem o rosto de sempre. “Voltou a ser humilde”, pensa Dr. Arnaldo. Irrita-se; tem a sensação de que aquela humildade lambia as pessoas. Exalta-se:
— Rapaz! Fiz uma pergunta concreta e responda concretamente. Você se casaria — responda! — Você se casaria com uma noiva grávida de outro? Sim ou não? Você a levaria ao altar? E reconheceria o filho como seu?
Disse, com um esgar de choro:
— Sim.
Dr. Arnaldo andava de um lado para outro. De repente, olha as mãos: — vazias. Deixara novamente a bengala em cima da mesa. Sôfrego, vai apanhá-la; e, com a bengala, recomeça a caminhar, de uma extremi­dade a outra da biblioteca. Sem olhar o outro, ordena:
— Continua. Não pára. Fala.
Zózimo, porém, atônito, não sabia o que dizer: — “Êle me experimenta. Esconde alguma coisa. Mas o quê? Esconde o quê?” Súbito, o velho estaca:
— Escuta: e se isso que eu apresentei como hi­pótese... Digamos: — se fôr verdade. Se, de fato, a minha filha — Engraçadinha... Está prestando aten­ção? Se ela, digamos, por uma fraqueza, ninguém é perfeito, nem infalível...
Olha a máscara atônita do genro. Pergunta a si mesmo: — “Devo dizer? Parece um bom sujeito. E se fôr um canalha? Se fôr um crápula?” Senta-se; põe a mão no joelho do rapaz:
— É verdade, ouviu? Engraçadinha está grávida. Os dois levantam-se num movimento simultâneo. Há uma pausa. “Eu me precipitei. Não devia ter dito. Devia esperar mais um pouco. Êle não fala por quê?”. Súbito, Zózimo cerra os punhos:
— Oh, graças, meu Deus! Graças!
Agarra Dr. Arnaldo.
— Dr. Arnaldo, se isso aconteceu, se é verdade que... Eu a amo mais do que antes. E se, porventura — Deus a livre e guarde! — mas se, um dia, ela se pros­tituir, nunca, Dr. Arnaldo. Ela seria sagrada para mim, da mesma maneira ou até mais... Diga à sua filha que se isso é verdade, eu não mudei! Eu não mudo, Dr. Ar­naldo !
Tremia tanto diante do velho, que êste pensou: — “Vai cair com ataque!” Zózimo senta-se, de nôvo. De­seja com tôdas as suas fôrças que, de fato, essa gravidez seja, não hipotética, mas real. Já imaginava que Engra­çadinha havia de se comover com a sua atitude meio suicida: — “Poucos fariam isso. Raros. Talvez nin­guém ou só eu mesmo. Além do mais, farei questão — absoluta! — de reconhecer o filho. E o amarei como se fôsse meu”. Sentindo a própria bondade, Zózimo experimentou uma vaidade profunda. “Sou realmente bom”, repetia para si mesmo. Sonhava que sua bondade podia talvez despertar o interesse sexual da menina. Muitas vezes, a gratidão ajuda a deflagrar o desejo. Continua a pensar: — “Até agora, não houve entre nós um beijo de verdade. Nunca houve entre nós um beijo de língua. Ela fecha a bôca. Não quer ser beijada por mim, claro; e o meu beijo ainda não sentiu sua saliva. Talvez agora, diante da minha bondade”... Transfigurado, vira-se para o sogro; agarra-o pela manga do paletó:
— Outra coisa que eu faria questão que o senhor dissesse: ela não precisa tirar o filho, nem deve.
O velho foi duro.
— Essa criança não pode nascer.
Balbucia:
— Não ouvi.
Dr. Arnaldo não entendia o homem que perdoa a adúltera. “Preciso dêsse casamento, mas é repugnante. Zózimo gosta dessa gravidez. Está feliz — e mesmo ex­citado — porque outro a possuía”. Com uma certa náu­sea, repete:
— A criança tem de ser sacrificada.
Fêz a pergunta sôfrega:
— Por que?
E o velho:
— É preciso, meu filho. Seria imoral e, além disso, há um motivo, que você não conhece e que... — com surda irritação, acrescenta: — O que importa não é essa criança. Mas os filhos teus, realmente teus.
Ia dizer: — “Essa criança deve ser “raspada”, já” A expressão “raspada”, que usava mentalmente, pare­ceu-lhe cruel demais para ser dita. Levando Zózimo até à porta, dizia-lhe: — “Você quer o casamento? Ainda quer? Pois Engraçadinha — eu juro! Dou-lhe a minha palavra! — será sua esposa. Já lhe menti alguma vez? Eu não minto, rapaz, eu nunca menti!” O jovem, que queria ser bom, generoso, até o fim, ainda insiste: — “Mas o filho...” Dr. Arnaldo cortou, e já com um prin­cípio de ódio:
— Há abortos morais! Rigorosamente morais! E tolha: passa por ai amanhã. Vai com Deus e escuta: — eu estou apreciando a sua bondade! Você é um ca­ráter!
Ficou vendo o Zózimo afastar-se e pensava: “Não é nobre, não é generoso, não é altruísta, não é nada!” Parecia-lhe que tudo era uma perversão violenta, o puro prazer de sentir-se traído, de imaginá-la nos braços de outro. Da porta da biblioteca, chama:
— Letícia! Letícia!
A sobrinha, que estava se despedindo de Zózimo, apareceu, pouco depois. O velho respira fundo: — “Te­lefona para a casa de tia Adelaide. Que Engraçadinha venha já. Obrigado. E não há nada. Não se preocupe. Eu sou pai. O principal dever do pai é proteger”. Vol­tou para o interior da biblioteca, na certeza de que Deus estava a seu lado. “Deus não me abandona”, era o que repetia, numa certeza triunfante.

* * *

Tia Adelaide mandou trazê-la de carro. Despedindo-se da velha, que era diabética, e das primas, sopra no ouvido de uma delas:
— Reza por mim.
Salta em casa e Letícia, nervosíssima, a esperava embaixo. No caminho, ora pensava no pai, ora no pri­mo. Com o vento da velocidade espalhando seus cabe­los e queimando seu rosto, pensava: — “Aposto que, hoje Sílvio vai bater no quarto”. Ainda não decidira se deixaria ou não a porta apenas encostada. Salta e faz a pergunta assustada:
— Papai sabe?
— Tudo!
— E que tal?
Subindo a escada de pedra, Letícia ia dizendo: — “Teve um abalo tremendo, claro. Mas acho que, com jeito... Depende de você, Engraçadinha”... A pequena geme: — “Estou com um mêdo danado”. Em cima, Letícia crispa a mão no braço de Engraçadinha:
— Quero te dizer uma coisa. Toma nota: — não há ninguém no mundo que goste mais de você do que eu. Sou tua maior amiga, agora e sempre!
Engraçadinha contempla a prima com espanto. Ja­mais a vira com êsse fervor: — “Não te abandonarei nunca”, repetiu com um desespêro que lembrava o de Zózimo. Caminharam, juntas até a porta da biblioteca. Letícia despede-se baixo: — “Estou na sala. Felicida­des”. Engraçadinha entra e leva em si o terror de crian­ça batida. Encosta a porta e caminha atônita na dire­ção do pai. Êste deixa que ela se aproxime. Diz:
— Puxa a cadeira, minha filha. Senta perto de mim.
Ao vê-la, sente de nôvo o ódio na carne e na alma. Mas, coisa curiosa! É uma fúria dominada, fria, raciocinante, que não impede uma certa polidez maligna. En­graçadinha senta-se, com os lábios brancos e uma tal contração no estômago que imagina: — “Acabo vomi­tando aqui!” Sem tirar os olhos da pequena, Dr. Ar­naldo pensa: — “Vou assustá-la com o meu silêncio. Apenas olhando e sem dizer nada, já começo quebran­do a sua resistência. Ela precisa ter mêdo”. Engraçadi­nha pergunta a si mesma: — “Por que êle olha só e não fala? Não diz nada. Acabo gritando”. Um sorriso muito leve dá um mínimo de vida aos beiços lívidos do velho. Pensa: — “Onde entra o sexo, tudo é possível. Mas foi acontecer justamente o que não devia, o que não podia acontecer. Tinha um noivo e por que não se entregou ao noivo? Ou, ainda, por que não se entregou a outro qualquer, menos a Sílvio?” Afinal, êle não se conteve. O próprio silêncio já o sufocava. Decide: — “Vou falar-lhe baixo e macio, quase sem voz. Assim ela terá mais mêdo”. Faz-lhe docemente a pergunta:
— Explica, filha. Como é que você sem sair de casa, vivendo entre velhos quase dementes, você ar­ranjou um filho?
— Eu amo Sílvio, papai!
E êle:
— Por que Sílvio e não teu noivo?
Chora:
— Não sou mais noiva. Desmanchei o noivado.
Dr. Arnaldo começa a ter mêdo de si mesmo: — “Acabo matando essa desgraçada!” — Embora achando que sua doçura premeditada é uma indignidade, con­tinua :
— Minha filha, e se eu lhe disser que você é ainda noiva e mais noiva agora do que nunca? E se eu lhe disser que eu jurei — eu! — que você será espôsa de Zózimo ?
Ergue-se e recua: — “Papai, eu amo Sílvio!” Rá­pido, Dr. Arnaldo a agarra pelos dois braços. Cara a cara com a filha, estraçalha as palavras nos dentes:
— Sua cretina! Se eu disser que Sílvio não é teu primo, nunca foi primo! Sílvio é teu irmão! Ouviste? Teu irmão!
Diante da filha, rebenta em soluços.

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