domingo, 6 de setembro de 2009

CAPÍTULO XVII

Balbuciou:
— Papai!
Por um momento, contemplou, gelada, em silêncio, aquêle pai quebrado, em ruínas. Êle repetia para si mesmo: — “Não quero chorar! Não posso chorar!” Mas enterrou o rosto nas duas mãos; cerrava os dentes como se quisesse morder o próprio choro. Estupefata, Engraçadinha pensava: — “Irmão! Que irmão? E por que irmão?” Ao mesmo tempo, teve uma sensação de pena, ou melhor: — não era pena, era repugnância ou as duas coisas juntas, talvez. No seu desespêro, Dr. Arnaldo diz de si para si: — “Ela me vê chorando como um pulha!” Súbito, teve a certeza de que a menina o desprezava. Engraçadinha jamais sonhara que, algum dia, aquêle velho magro, com a sua face hirta de más­cara, pudesse chorar com essa violenta, essa apaixonada fragilidade. Teve vontade de gritar-lhe: — “Pára de chorar, pára!” Talvez sentisse desprêzo, talvez. Mas sentia também uma crispada vergonha dessas lágrimas de homem e de velho. — Ela deixou boiando no ar a pergunta:
— Irmão?
Repetiu outras vezes, sentindo que a garganta se fechava: — “Irmão?” Teria enchido a sala com os gritos de “Irmão?” Gritaria até rebentar a voz: “Por que irmão?”. Dr. Arnaldo erguia o rosto, ofegante, passa­va as costas das mãos nos olhos. Nunca ninguém o vira chorar, nunca. Procurando o lenço, pensava: — “Ela me despreza, sim!” E onde está o diabo do lenço? Me­teu a mão no bôlso das calças. Ao longo dos seus qua­renta anos de vida, só chorara sòzinho (enfim, encontrou o lenço num bôlso inesperado). Quantas vêzes, no quarto, metera a cara no travesseiro para sufocar a saudade de uma morta? Ó não se perdoava, agora, de ter chorado na frente da filha, que era a pior teste­munha, a mais implacável. Já se assoara e guardava o lenço no bôlso traseiro da calça. Numa calma dila­cerava, espiava a filha. Engraçadinha estava branca e com o lábio inferior tremendo. Diz:
— Mas eu não entendi, papai!
Enojado da própria fraqueza, Dr. Arnaldo não res­pondeu imediatamente. Ao passo que ela, agora que o vira tão fraco e perdido, — jamais vira um homem cho­rar assim — ela começava realmente a desprezá-lo. Mas talvez pelo hábito do respeito ou do mêdo, ainda não tinha consciência dêsse desprêzo. Dr. Arnaldo baixou a voz, as suas mãos estavam trêmulas:
— Teu irmão.
Ela não quer compreender, não quer aceitar. “Por que meu irmão?” Foi a pergunta desesperada. O pai respondeu:
— Porque é meu filho! — e repetiu, alteando a voz: — Meu filho!
Ergueu-se e anunciou, alto e vibrante, como se de­safiasse um invisível auditório: — “Meu filho!” Ela baixa a cabeça, une as mãos na altura do peito, fecha os olhos. Mas em vez de fazer uma prece pensava: — “Filho do meu pai! Meu irmão!” Levantou-se para sentar-se, novamente. Dr. Arnaldo apanha a bengala e, já com certa excitação, caminha até o fundo da bi­blioteca. A humilhação de ter chorado diante da filha, chegava a doer-lhe nos ossos. Precisava exaltar-se de nôvo, gritar, sacudir a bengala, para meter-lhe mêdo. De longa data, era de parecer que a mulher entende mais o grito, entende mais a ameaça do que o argu­mento, o fato. Tôdas gostam de sofrer na carne o es­pasmo do medo. “Vou gritar”, decidia. Mas, antes que êle se aproxime, Engraçadinha rompe o si­lêncio :
— Papai, quer chegar aqui um instantinho, papai?
O pai percebe o tom de surda irritação. Imagina: — “Será que vai ter a audácia de me interpelar?” Mais do que nunca sentiu que precisava vencer pelo mêdo. Devia gritar mesmo sem fúria ou com uma fúria ape­nas simulada. Vem sentar-se diante da filha. A doçura da própria voz o surpreende.
— Fala, minha filha.
Encara-o:
— E agora?
O velho tem a sensação de que é um ser esvaziado. Nada por dentro, nada. Ou melhor: — por dentro só o vácuo. Ainda há pouco chorara como um pulha, sim, como um pulha. E agora, o que sentia era, justamente, a impossibilidade de sofrer. Por um momento, desejou ser o pulha das lágrimas. Engraçadinha começa a se desesperar:
— E agora, papai ?
Disse:
— Reze, minha filha.
Irrita-se:
— Escuta, papai!
Interrompe:
— Você é moça, minha filha, nova...
Naquele momento, êle daria tudo para sofrer. “Eu sofria ainda agora e já não sofro”, era o seu lamento interior. Engraçadinha continuou:
— Mas, papai, não é isso, papai! Escuta! Eu tenho 18 anos...
— Reza.
Aquilo a enfureceu. Levanta a voz:
— Até hoje, até ainda agora, eu tinha um primo. Nunca ninguém chegou junto de mim pra dizer: — “Teu primo é teu irmão!” Sílvio sempre foi meu primo, sempre! — e pergunta, na sua violência contida: — Está ouvindo, meu pai?
Diante dela, com uma monstruosa impotência para a dor, êle repete na sua fixação triste e doce: — “Reza”... Diria sempre a mesma coisa, no mesmo tom brando. Ela, porém, já não se contém: — “Vou até o fim. Direi tudo”.
— Eu gostei desse primo desde garotinha. — Baixa a voz: — Um dia, ou uma noite, sei lá, eu me entreguei ao meu primo. O senhor compreende? Ao primo. Escuta, papai: — quando eu me entreguei, era ainda meu primo, como sempre fôra. De repente, o senhor, que nunca me disse nada, não é, papai? O senhor vem e diz: “É teu irmão!” E já tinha acontecido tudo!
Começa a chorar. O pai balbucia, como se falasse do fundo de um sonho: — “Teu irmão”. Engraçadinha ergue o rosto:
— Papai, eu não tenho culpa de nada!
Ela gritava. Foi a cólera da filha que o despertou. Ergueu-se. Oh, graças, porque voltava a sofrer! De nôvo sentia a dor. Experimentou a saudade da cunha­da morta — tão desejada em vida e mais desejada de­pois que a perdera. Com uma dor exultante, berrou:
— Você me acusa?
Trincou os dentes:
— Acuso!
Recuava diante da cólera paterna, mas ia repetin­do: — “acuso!” Por um momento, êle pára. Pensa: — “Quero que ela me irrite mais! Que me desafie!” De­sejou, com tôdas as forças, que a filha o insultasse. “Se ela me insultar, quebro-a em dois!” Repetia mentalmente: — “Em dois!” Não tinha mêdo da própria vio­lência, embora se sentisse bem próximo da insânia. Ocorreu-lhe a hipótese: — “E se eu enlouquecesse agora?” Desafiou a filha:
— Continua! Por que não continua? Sou o cul­pado, e que mais?
Apertava a cabeça entre as mãos, soluçando. O velho a contemplava, com um sorriso mau: — “Não é só sexo. Também chora”. Engraçadinha teria pouco o que dizer. Soluçava ainda:
— Por que o senhor não me disse? Teve dezoito anos para me dizer!
No seu espanto, levantou-se:
— Dizer, eu? Eu não diria nunca. Ou querias — sua miserável — que eu fôsse contar para todo mundo que fôra amante de minha cunhada? Isso ia morrer comigo, ia enterrar-se comigo e apodrecer com a minha carne e com minha alma! Só eu sabia e Êle?
Continuava a falar de Deus como de algo pessoal, tangível, como o amigo ou cúmplice fisicamente palpá­vel. Ninguém mais conhecia a paixão. No confessioná­rio, dizia tudo, menos que fôra amante, por uma hora, por um momento, da cunhada. O irmão, que êle ado­rava, estava fora, viajando. Podia desejar tôdas as mu­lheres, menos aquela. Aquela, nunca! E, no entanto, ela passara, por lá, uma tarde. Vinha trazer um re­cado do irmão, ou melhor: — vinha mostrar uma car­ta do irmão. Leram juntos o trecho final: — “Você e o Arnaldo são tôda a minha vida”. E, súbito, o dese­jo nasceu sem uma palavra, sem um olhar. Ela foi ar­rastada. Balbuciava, no seu espanto: — “Aqui não”. Agora, olhando para Engraçadinha, êle pensava: — “Não direi a ela, nem a ninguém, que foi aqui mesmo”. Instintivamente, olhou para o divã: — “Lá!” E, às vezes, na Assembléia Legislativa, presidindo a sessão, pensava que, no divã, a mão puxando a calça, o tra­balho dos quadris... O filho que não podia nascer. Súbito, o irmão morre lá fora. Enquanto o caixão vem do sul, ela, amassando o lencinho, diz-lhe: — “Agora pode nascer”. Foi só. Anos depois, êle achava: — “Só conhece o amor quem possuiu a cunhada impossí­vel”. Olhou, uma última vez, para o divã de um mo­mento eterno.
— O senhor nunca se lembrou que tinha uma filha!
Atônito, quis segurá-la pelo braço: A pequena des­prendeu-se, violentamente:
— Não me toque!
— Você me desafia?
E ela:
— Desafio!
Êle pensou: — “Mulher precisa ter mêdo físico”.
Vai até a porta, abre e grita para dentro:
— Ninguém venha cá!
Empurra a porta e fecha à chave. Engraçadinha recua: — “Mas que é isso, papai?” Olha para os lados, na esperança da fuga impossível. Dr. Arnaldo puxa o cinto de couro grosso. Mas não se apressa. Pensa ainda na outra, na morta. Veio-lhe uma reflexão: — “Os magros como eu só devem amar vestidos”. Tinha ódio da própria nudez esguia e lívida. Caminha para a filha. Esta grita:
— Não, papai! O senhor nunca me bateu, papai!
E êle, fora de si;
— Não corra!
Engraçadinha tenta fugir, colocar-se detrás dos móveis. Mas, recuando, de costas, tropeça e cai em cima do divã. Dr. Arnaldo bate nas costas, nas pernas, nos braços. Dir-se-iam lambadas de fogo. Ela esganiça a voz:
— Não, paipaizinho, não!
O velho continua, porque o terror da filha o exas­pera. Está conhecendo um prazer inesperado, uma em­briaguez devoradora. Ela berra: — “Basta! Basta!” Êle pára, bruscamente. Engraçadinha soluça ainda, enovelada no divã:
— Papaizinho!

Um comentário:

M. Nilza disse...

Textos fortes!!...

Boa semana pra vc menina
beijos