quinta-feira, 10 de setembro de 2009

CAPÍTULO XXI

O escritório era num segundo andar. Descendo as escadas, o Dr. Arnaldo ia pensando: — “Eu não devo ir” — e repetia: — “Não posso ir. Afinal sou muito conhecido”. Sim, que diriam seus inimigos se o vissem num ginecologista, com uma filha solteira? Lembrou-se do Aprígio — o deputado obsceno — e conclui: — “Êste soltaria foguetes”. Que fazer? Dr. Arnaldo pára, um momento, no último degrau da escada. Ao mesmo tempo, admite que a filha não podia ir sòzinha, sem uma assistência, sem uma proteção.
Dr. Arnaldo vacila e acaba voltando. Sobe os dois lances da escada, com certo sacrifício (o coração não andava bem). Entra e anuncia o que era óbvio:
— Voltei.
Vasconcelos pára de bater a máquina. Antes de começar, o velho teve de vencer um último escrúpulo. Põe a mão no joelho do companheiro:
— Há um momento da vida em que o homem pre­cisa confiar em alguém. Preciso de ti, Vasconcelos. Só você pode me ajudar, percebeu?
Dr. Arnaldo acabava de decidir: — “Tenho que acompanhar Engraçadinha ao ginecologista. Sou Pre­sidente da Assembléia Legislativa, mas preciso estar ao seu lado”. Ao subir as escadas, de volta, imaginara a hipótese de que o médico pudesse desrespeitá-la bes­tialmente. Admitia: — “Não é provável, mas é possí­vel”. De resto, olhava os ginecologistas em geral com a maior suspeição: — “Quem me diz que um dêles, ou, precisamente, êsse Bergamini, não venha a abusar de minha filha?” Continuou:
— Vasconcelos, vou explicar porque confiei — pigarreia e prossegue — em você. Pelo seguinte: — você pode ser safado, mas tem filhas.
(Dr. Arnaldo empregou a palavra “safado” com certo esforço, certo constrangimento). O Vasconcelos entende de fazer a ressalva:
— Olha! Eu sei que nesse particular, sou mais sujo do que pau de galinheiro. Mas há o seguinte: — eu não como ninguém, ou, por outra: só de maior idade. Você sabe disso. É uma atenuante.
Dr. Arnaldo pigarreia: — “Prefiro não respon­der”. Estava mais do que nunca decidido a não desam­parar a filha. Ergue-se e começa a andar, em silêncio, de um lado para outro. Pensa; “Eu preciso acreditar na bondade do Vasconcelos”. Estaca diante do amigo:
— Aliás, uma de suas filhas, se não me engano, é da idade da minha, pouco mais ou menos. Bem: eis o que eu queria dizer: — a tal afilhada não é afilhada. É minha filha.
Põe a mão no ombro do amigo: — “Ter que con­fessar isso é uma humilhação para mim”. Respira fun­do e acrescenta: — “É a maior humilhação da minha vida”. Os dois se olham; Dr. Arnaldo desvia os olhos: — “Acabo chorando”. Não era duro, não era rijo como antes; e passa adiante:
— Vasconcelos, você tem intimidade com êsse Bergamini, não tem? Deve ter claro. Êsse homem é, na­turalmente, um canalha...
Vasconcelos atalha: — “Tem filhas”. O velho exalta-se:
— Tem filhas e faz isso! Mas, não importa: — pre­cisamos exatamente de um canalha. Um médico decen­te não faria isso. Escuta, Vasconcelos: — quero levar Engraçadinha numa hora especial, de preferência à noite? Você me entende? Fora do expediente. Não que­ro que ninguém veja, ninguém saiba!
— Dá-se um jeito. Posso citar o seu nome?
Suspira (estava achando a ginecologia uma espe­cialidade hedionda):
— É bom. Convém que êle saiba que sou eu. Mas uma coisa te juro: — se êsse crápula falar, eu o ponho na cadeia, ah ponho!
Vasconcelos levanta-se. — “Telefono já”. E o velho, sentando-se: — “Telefona”. Sofre agora como nunca: — “Eu ter que contar isso a terceiros!” Mas queria acreditar que o Vasconcelos, um “canalha sexual” fôsse, apesar disso, um bom. No telefone, o Vasconce­los está dizendo:
— Exatamente: — o Dr. Arnaldo, sim. Queria ter uma conversa contigo. Assunto particular. Olha: — um negócio sério, ouviste? Você pode vir agora? Está certo. Vem. Está aqui. Esperamos.
Vira-se para o Dr. Arnaldo: — “Vem. Não te dis­se”? O velho tem um esgar de nojo:
— Eu queria saber se êsse bandido fazia um ne­gócio dêsses numa das filhas!
Então o Vasconcelos baixa a voz:
— Não brinca, que uma das filhas dêle suicidou-se. E olha: — vais gostar do Bergamini.

* * *

Quando Engraçadinha saiu do banheiro, de rou­pão, ainda enxugando a nuca, Sílvio apareceu na outra extremidade do corredor. Ela o esperou. Tomara um banho muito demorado. Perfumara todo o corpo e a própria nudez lhe parecia mais doce do que nunca. Não queria lembrar-se de Letícia. Que pensaria o médico? Êle não era de pedra. Se ela própria enamorava-se de si mesma (tinha uns seios pequenos e tão absurda­mente lindos!) Uma vez por outra, durante o banho, ao mesmo tempo que fazia espuma pelo busto, suspi­rava por Sílvio. “Êle me esperava”. (E não queria pensar no desejo de Letícia). Podia ter atravessado do banheiro para o quarto. Parou, porém, Sílvio apressa o passo. Engraçadinha não se move. Tem mêdo que venha alguém. Sílvio baixa a voz:
— Por que não abriu?
Tem os olhos do desejo e, com uma dor surda, imagina que ela veste o roupão por cima da pele. En­graçadinha responde;
— Por que não quis!
Gosta de vê-lo sofrer. “Oh, querido! Você não sabe! Eu não posso! Queria, mas não posso!” O rapaz se enfurece:
— Sua cínica!
Sorri-lhe, docemente:
— Pode xingar.
E êle:
— Responde: — se você não gosta de mim, por que fêz aquilo na biblioteca?
— Mas eu gosto de ti!
— Mentira!
A qualquer momento, podia aparecer uma empre­gada, uma tia, ou o próprio Dr. Arnaldo. Sem desfitá-lo, diz:
— Adeus.
Quer passar, mas o outro a segura pelo braço:
— Abre e fecha o roupão. Um instantinho só. Abre.
Por um momento, ela duvidou, tentada. Trincou os dentes:
— Não posso. Adeus.
No desespêro de perdê-la, humilha-se:
— Promete que, de noite, deixa a porta encos­tada? Promete?
E ela:
— Primeiro responde: — você me ama?
O rapaz pensa em Letícia:
— Te digo logo mais — repete. — Te dou a resposta, no quarto, logo mais. Posso vir de noite?
Enxugou a nuca:
— Quem sabe?
Tiveram de separar-se, porque ouviam passos. Rá­pido. Sílvio entrou no banheiro e Engraçadinha no quarto. Fecha a porta à chave. Erguendo o rosto, dei­xa o roupão escorregar. Nunca se sentira tão nua. O médico fingiria, no exame, um interêsse castamente profissional. Mas havia de sentir o encanto da virgem sòmente possuída duas vêzes.

* * *

Dr. Bergamini veio no melhor automóvel de Vi­tória. Era rico, milionário, e acabava de mandar uma filha estudar na Suíça, outra nos Estados Unidos. Di­zia-se, dêle, com um humor brutal, que restaurava a virgindade até de viúvas. Ao vê-lo, Dr. Arnaldo faz o comentário interior: — “Eis o homem que reconsti­tui!” Cumprimenta o deputado, com um sorriso de dentes bonitos e gengivas sadias. Disse a banalidade inevitável: — “Já o conhecia muito de nome”. E ajuntou:
— Eu votei no senhor.
Dr. Arnaldo foi muito sêco:
— Obrigado.
Vasconcelos puxa o Dr. Bergamini para a sacada. Em voz baixa, conta-lhe o caso. Dr. Arnaldo anua de um lado para outro: — “É estúpido que só agora, depois de tantos anos, eu me sinta pai. Só agora”. Vasconcelos está dizendo: — “Você faz o serviço com um pé nas costas”. Voltam os dois. O que surpreende no médico, é a intensidade e, ao mesmo tempo, a do­çura do olhar. Inclina-se:
— Pois não. Faço, não direi com prazer, mas com carinho.
Dr. Arnaldo pensa: — “Fabrica virgindade, o ca­nalha!” E foi nesse momento que ocorreu uma coisa muito curiosa. O médico põe a mão no ombro do depu­tado e diz-lhe, como se lêsse no seu pensamento:
— O senhor deve estar fazendo um péssimo juízo de mim, não é verdade?
Dr. Arnaldo atrapalhou-se; quis ainda assim res­ponder duramente: “Meu amigo, eu não julgo nin­guém. O senhor é um profissional. Preciso dos seus serviços. Nada mais”. O outro continuou, e agora com uma ironia delicada, mas bem nítida:
— Faço questão de explicar. Um momento! É rá­pido. Como eu ia dizendo: — eu era um médico que usava a ética tradicional como todo o mundo. Achava o abôrto uma indignidade e nunca me passaria pela cabeça a idéia de devolver a virgindade de uma pobre moça. Note que eu falo ao pai e não ao deputado, ao homem público. Não me interessa o Poder, a Auto­ridade, o Estado. Mas eu linha uma filha, justamente a mais velha, linda garota, linda. Minha filha gostou de alguém e, vamos usar a expressão do povo: — deu um mal passo. Família rigorosa, muito preconceito e, resumindo: — minha filha se matou. Ora, eu lhe digo, ao senhor que é pai, digo-lhe com a maior naturali­dade: — eu daria tudo e insisto: — absolutamente tudo para que minha filha tivesse encontrado um crápula. Um crápula igual a mim, sim, senhor. Entendeu?
Dr. Arnaldo pigarreia: — “Realmente”. O olhar do médico é, agora, de uma doçura desesperadora. Diz ainda:
— Parece falso, eu sei. Mas eu farei quantas vir­gens puder.
Ao lado, o Vasconcelos que, além de sátiro, era um emotivo, um sentimental irrecuperável, tinha von­tade de chorar. Dr. Arnaldo concluía: — “Fala bem, o miserável!” Dr. Bergamini combinava tudo. Mas quando o deputado falou em acompanhar a filha, foi incisivo:
— Meu amigo, eu falei claro. Entenda: — a me­nina que quer ser virgem é, exatamente, a minha filha. Sim, a que morreu. Desculpe, não me leve a mal. Sua filha sòzinha. Dez da manhã. Passar bem.

Um comentário:

Messias disse...

Que texto forte! Muito bom! parabéns, voltarei mais vezes aqui!