Na sua fúria, quis segurar-lhe o braço:
— O que é que você está dizendo?
Desprendeu-se, violentamente:
— Tira a mão! E outra coisa: vim aqui só pra te dizer isso! — Olhou-a, de alto a baixo, e com uma satisfação hedionda, atirou-lhe o insulto: — Tarada!
— Vem cá, Sílvio!
Mas êle já se afastava, em passadas largas e firmes. Correu atrás: — “Escuta aqui, seu!” Sílvio estaca:
— Volta ou já sabe! Você não me conhece. Engraçadinha! Olha que eu, bom!
E ela:
— Você vai se arrepender...
Novamente o rapaz vira-lhe as costas e apressa o passo. Ela pensava: — “Tem que ouvir. Dou-lhe uma tapa na bôca!” Em cima da calçada, teve uma breve vacilação. Olha em torno; no alto de uma sacada, uma vizinha estava olhando. Experimentou uma brusca vergonha. Ergue o lábio superior num sorriso falsíssimo, acena com os dedos para Sílvio que, mais adiante, virara-se, por um momento. Gritou-lhe:
— So long, Sílvio!
Fêz questão de cumprimentar a vizinha da sacada com, um nôvo sorriso. E, depois, veio caminhando, num passo bem normal. “A vizinha deve ter percebido tudo. Melhor, e que se dane!” Dizia para si mesma: — “Foi Letícia, claro! Só pode ter sido Letícia!” Fora de si, continuava: — “Eu devia ter dito a Sílvio: — tudo isso é sua mãe, ouviu? A mãe dêle, não! Morreu coitada, nem tem culpa. Mas cachorro!” Teria perdoado tudo, tudo. Se o rapaz lhe dissesse a pior palavra que uma mulher pode ouvir ela gostaria. Há momentos (nem sempre, claro), mas há momentos em que a mulher gosta de ser xingada “Mas dizer que eu gosto de mulher, eu? Ah, não. E só porque Letícia foi soprar no ouvido?” Subindo a escada de pedra, chegava a ter mêdo da própria violência. Pela primeira vez, julgava conhecer o ódio: — “Eu matava Letícia, ah, matava!” No pequeno armário do banheiro, havia uma seringa de borracha. Imaginou-se enchendo aquilo de iôdo e, depois, dando dois esguichos nos olhos de Letícia.
Em cima, Dr. Arnaldo está deixando o telefone. Vira-se, alegremente, para a filha:
— Letícia vem aí.
Balbucia:
— Letícia?
Êle continua, numa satisfação evidente:
— Tudo resolvido.
Espantadíssima pergunta: — “E quê, papai?” Enlaçou-a e foram caminhando para a biblioteca:
— Imagina que eu ando com uns lapsos. Você precisava de uma companhia para ir ao médico. Eu não podia ir, ou, melhor, não devia ir. Entre parênteses, eu acho que, para a filha, o pai não tem sexo. Compreende? Não há entre pai e filha — ou não devia haver — o problema do pudor. Em todo o caso eu não me sentiria bem.
Pára e faz, bruscamente, a pergunta.
— Você teria pudor de mim, minha filha? Ou não?
— Ia responder: — “Sim! Muito!” Atenuou a resposta:
— Um pouco.
Dr. Arnaldo deu-lhe um alegre tapinha no rosto; novamente grave, admite: “É justo! É justo!” Continua:
Eu estava disposto a mandar você sozinha. Outra pessoa não podia, porque ninguém deve saber. Ninguém! Mas veja você como eu ando com a cabeça. Não me lembrei da única pessoa que sabe e que podia ir com você. Só ainda agora, coisa de um minuto, é que eu disse: — “É mesmo! Letícia!”
Nervosíssima, começa:
— Papai...
Pausa. Faz um esforço:
— Quero ir sòzinha.
Admira-se:
— Por quê?
E ela:
— Tenho vergonha.
Não entende:
— De Letícia?
— De Letícia!
Aquilo o irrita:
— Mas não tem cabimento. Ora veja! E por que vergonha de Letícia?
Êle fartara-se do dizer, com ênfase, convicção: — “Sou favorável ao pudor. O pudor é bonito”. Mas ajuntava: — “Há, porém momentos em que... Num parto, por exemplo”. E afirmava, depois de olhar em tôrno com um jeito incisivo, de quem desafia possíveis objeções: — “No parto, não cabe o pudor!” Nessas ocasiões de certeza profunda seu olhar adquiria uma luminosidade intensa. Argumentou:
— Você e Letícia foram criadas como duas irmãs, ou, melhor, como duas gêmeas! Não entendo êsse pudor. Até estranho! E, pelo contrário, a presença de Letícia é uma proteção e...
Faz uma pausa inesperada. Está sofrendo. Continua :
— Minha filha, Letícia vai, porque é preciso e eu faço questão. Mas eu quero te dizer o seguinte: — a mulher deve ter pudor sempre. Mesmo no parto! — E repetia, na sua incoerência: — Mesmo no parto! Teu pudor está certo. Mas Letícia vai.
Pediu: — “Letícia, não!” O velho irritou-se:
— Letícia, sim! Sabe e é a única pessoa que pode ir. Mas escuta!
Baixa a voz, seu rosto toma a expressão de um sofrimento intolerável:
— Só não pode saber que tu e Sílvio... Isso, nunca! Agora, sai um pouco, minha filha, sai um pouco!
A menina abandona a biblioteca. Êle vem sentar-se no divã: — “Não sei como uma mulher — qualquer uma! — pode ir a um ginecologista com naturalidade”. Ergue-se e, andando de um lado para outro, prossegue, numa espécie de polêmica consigo mesmo: “Naturalidade nenhuma!” E pelo contrário: — parecia-lhe que a mulher devia entrar num gabinete ginecológico com certa unção, como quem atravessa um misterioso limite. Êle não saberia explicar por que “unção” e nem que desespera-dor limite era êste. Pensava confusamente essas coisas mas sem lhes encontrar uma formulação exata.
* * *
Deixando Engraçadinha, Sílvio apanhou uma condução, em seguida. Ia para o bairro das mulheres. Durante o trajeto, pensou: — “Engraçadinha é que devia estar lá!” Imaginava — e com que envenenada satisfação! — a menina, lá, de combinação, numa das janelas iluminadas. Êle teria preferido Geni — a que levava em cada seio o risco da navalha. Mas, já que esta andava com Barone, lembrou-se de uma outra. Hula, judia de olhos verdes e verruga no queixo. Por mais estranho que pareça, Sílvio queria apenas perguntar a Geni, Hula ou outra qualquer:
— O que é que você acha da mulher que gosta de mulher?
Não desejava ninguém, e perguntava a si mesmo: — “Nem Engraçadinha?” Nem Engraçadinha. Não desejaria ninguém naquele momento. Talvez Engraçadinha. Ou nem essa. Essa, menos do que qualquer outra. Letícia o esperava. Pensa: — “Amo Letícia”. Chega no bairro das mulheres e dirige-se à pensão que freqüentava. Não podia imaginar, porém, que teria de viver ali uma das experiências mais estranhas e abjetas de tôda a sua vida. Logo ao entrar na sala, vê Zózimo, completamente embriagado (bebera a tarde tôda), no meio de mulheres e fregueses. Êle acabara de dizer qualquer coisa e todo mundo rebentava numa gargalhada. Sílvio teve a idéia de retroceder. O bêbado, porém já o vira. Chamava-o:
— Vem cá! Chega aqui!
Geni que estava numa mesa com o Barone, ergue-se e veio ao seu encontro. Bebera também: — “Sumiu? Vem!” Baixa a voz: — “Amanhã te espero!” O Barone, a distância ,sorria-lhes, paternalmente. O ex-campeão de luta-romana, inteiramente careca, uma barriga quase intransportável, sorria de tudo e de todos. No meio da sala, Zózimo desvencilhava-se de alguém que quer agarrá-lo. Aponta Sílvio, que se aproxima:
— Êle conhece! — vira-se para Sílvio, com lábio encharcado: — Você não conhece?
A nova gargalhada ofende e humilha Sílvio como uma agressão indefensável. Quer segurar o rapaz: — “Vamos, Zózimo!” O outro puxa o braço, num repelão:
— Tu não conhece a minha futura?
Quer puxá-lo, novamente:
Geni vem de lá: — “Êsse Zózimo é um número! Uma bola!” Zózimo dá murros no próprio peito:
— Eu! Eu, sim, eu! — Entorta a bôca e começa a desafiar todo imundo: — Minha noiva está grávida de outro, sim, senhor! E aqui o Sílvio conhece a minha noiva. Não conhece? — Ri, pesadamente: — Não é um bijú?, um bijú!
Tenta arrastá-lo.: — “Vamos embora”. Mas o outro continua, na sua idéia fixa:
— Minha noiva está grávida e nem sei quem é o cara. Mas escuta, Sílvio! Eu estou dizendo aqui a êsses cretinos...
Olha em torno. Abraça o amigo. Grita:
— ...estou dizendo — tenho razão ou não tenho ? — Estou dizendo que não se chama uma adúltera de adúltera! Não é, Sílvio? Você acha que eu vou chamar de adúltera uma moça que traiu antes do casamento?
Assombrado, Sílvio fora sentar-se numa mesa vaga, num canto. Hula não aparecia; devia estar com alguém, de longe, olha aquela abjeção com uma espécie de deslumbramento. O bêbedo anda circularmente pela sala; súbito, estaca:
— Vou reconhecer o filho. Faz de conta que é meu. Sou muito homem pra mudar a fraldinha do meu filho!
Desata a chorar. Um gaiato faz voz de falsete: — “Chuta tua noiva pra mim!” Zózimo gira sôbre si mesmo, procurando o gaiato: — “Vocês não entendem! Ninguém entende!” E repete: — “É uma indignidade insultar uma adúltera”. Outro bate-lhe nas costas: — “Já de chifre, rapaz!” O bêbedo ri:— “Chifre!” E súbito, baixa a cabeça e, no passo pesado e incerto, sai dando marradas no ar. Apesar da embriaguez, ocorre-lhe uma reminiscência de cinema. Pára e, num esforço de equilíbrio, raspa o chão com o pé como um touro de desenho animado. De repente, cambaleia e acaba derramando-se no chão. Foi carregado; Sílvio ajuda. Na cara de Zózimo as lágrimas vêm misturar-se com a baba. Chora:
— Minha adúlterazinha!
* * *
No meio do jantar, aparece Letícia. Engraçadinha crispa-se na cadeira. Dr. Arnaldo mostra a cadeira vaga: — “Sente-se, Letícia”. Respondeu, numa alegria agressiva:
— Acabei de jantar.
Atônita, Engraçadinha não tira os olhos do pai. Êste acaba de enxugar os lábios com o guardanapo:
— Vem passar a noite aqui, Engraçadinha. O médico é de manhã. Letícia dorme contigo.
sábado, 26 de setembro de 2009
CAPÍTULO XXIV
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