sábado, 26 de setembro de 2009

CAPÍTULO XXIV

Na sua fúria, quis segurar-lhe o braço:
— O que é que você está dizendo?
Desprendeu-se, violentamente:
— Tira a mão! E outra coisa: vim aqui só pra te di­zer isso! — Olhou-a, de alto a baixo, e com uma sa­tisfação hedionda, atirou-lhe o insulto: — Tarada!
— Vem cá, Sílvio!
Mas êle já se afastava, em passadas largas e fir­mes. Correu atrás: — “Escuta aqui, seu!” Sílvio estaca:
— Volta ou já sabe! Você não me conhece. En­graçadinha! Olha que eu, bom!
E ela:
— Você vai se arrepender...
Novamente o rapaz vira-lhe as costas e apressa o passo. Ela pensava: — “Tem que ouvir. Dou-lhe uma tapa na bôca!” Em cima da calçada, teve uma breve vacilação. Olha em torno; no alto de uma saca­da, uma vizinha estava olhando. Experimentou uma brusca vergonha. Ergue o lábio superior num sorriso falsíssimo, acena com os dedos para Sílvio que, mais adiante, virara-se, por um momento. Gritou-lhe:
— So long, Sílvio!
Fêz questão de cumprimentar a vizinha da sacada com, um nôvo sorriso. E, depois, veio caminhando, num passo bem normal. “A vizinha deve ter percebido tudo. Melhor, e que se dane!” Dizia para si mesma: — “Foi Letícia, claro! Só pode ter sido Letícia!” Fora de si, continuava: — “Eu devia ter dito a Sílvio: — tudo isso é sua mãe, ouviu? A mãe dêle, não! Morreu coitada, nem tem culpa. Mas cachorro!” Teria perdoado tudo, tudo. Se o rapaz lhe dissesse a pior palavra que uma mulher pode ouvir ela gostaria. Há momentos (nem sempre, claro), mas há momentos em que a mulher gosta de ser xingada “Mas dizer que eu gosto de mu­lher, eu? Ah, não. E só porque Letícia foi soprar no ouvido?” Subindo a escada de pedra, chegava a ter mêdo da própria violência. Pela primeira vez, julga­va conhecer o ódio: — “Eu matava Letícia, ah, mata­va!” No pequeno armário do banheiro, havia uma se­ringa de borracha. Imaginou-se enchendo aquilo de iôdo e, depois, dando dois esguichos nos olhos de Le­tícia.
Em cima, Dr. Arnaldo está deixando o telefone. Vira-se, alegremente, para a filha:
— Letícia vem aí.
Balbucia:
— Letícia?
Êle continua, numa satisfação evidente:
— Tudo resolvido.
Espantadíssima pergunta: — “E quê, papai?” En­laçou-a e foram caminhando para a biblioteca:
— Imagina que eu ando com uns lapsos. Você preci­sava de uma companhia para ir ao médico. Eu não podia ir, ou, melhor, não devia ir. Entre parênteses, eu acho que, para a filha, o pai não tem sexo. Compreende? Não há entre pai e filha — ou não devia haver — o problema do pudor. Em todo o caso eu não me sentiria bem.
Pára e faz, bruscamente, a pergunta.
— Você teria pudor de mim, minha filha? Ou não?
— Ia responder: — “Sim! Muito!” Atenuou a res­posta:
— Um pouco.
Dr. Arnaldo deu-lhe um alegre tapinha no rosto; nova­mente grave, admite: “É justo! É justo!” Continua:
Eu estava disposto a mandar você sozinha. Outra pessoa não podia, porque ninguém deve saber. Nin­guém! Mas veja você como eu ando com a cabeça. Não me lembrei da única pessoa que sabe e que podia ir com você. Só ainda agora, coisa de um minuto, é que eu disse: — “É mesmo! Letícia!”
Nervosíssima, começa:
— Papai...
Pausa. Faz um esforço:
— Quero ir sòzinha.
Admira-se:
— Por quê?
E ela:
— Tenho vergonha.
Não entende:
— De Letícia?
— De Letícia!
Aquilo o irrita:
— Mas não tem cabimento. Ora veja! E por que vergonha de Letícia?
Êle fartara-se do dizer, com ênfase, convicção: — “Sou favorável ao pudor. O pudor é bonito”. Mas ajuntava: — “Há, porém momentos em que... Num parto, por exemplo”. E afirmava, depois de olhar em tôrno com um jeito incisivo, de quem desafia possíveis objeções: — “No parto, não cabe o pudor!” Nessas ocasiões de certeza profunda seu olhar adquiria uma luminosidade intensa. Argumentou:
— Você e Letícia foram criadas como duas irmãs, ou, melhor, como duas gêmeas! Não entendo êsse pudor. Até estranho! E, pelo contrário, a presença de Letícia é uma proteção e...
Faz uma pausa inesperada. Está sofrendo. Con­tinua :
— Minha filha, Letícia vai, porque é preciso e eu faço questão. Mas eu quero te dizer o seguinte: — a mulher deve ter pudor sempre. Mesmo no parto! — E repetia, na sua incoerência: — Mesmo no parto! Teu pudor está certo. Mas Letícia vai.
Pediu: — “Letícia, não!” O velho irritou-se:
— Letícia, sim! Sabe e é a única pessoa que pode ir. Mas escuta!
Baixa a voz, seu rosto toma a expressão de um so­frimento intolerável:
— Só não pode saber que tu e Sílvio... Isso, nunca! Agora, sai um pouco, minha filha, sai um pouco!
A menina abandona a biblioteca. Êle vem sentar-se no divã: — “Não sei como uma mulher — qualquer uma! — pode ir a um ginecologista com naturalidade”. Ergue-se e, andando de um lado para outro, prossegue, numa espécie de polêmica consigo mesmo: “Naturalidade nenhuma!” E pelo contrário: — parecia-lhe que a mulher devia entrar num gabinete ginecológico com certa unção, como quem atravessa um misterioso limite. Êle não sa­beria explicar por que “unção” e nem que desespera-dor limite era êste. Pensava confusamente essas coisas mas sem lhes encontrar uma formulação exata.

* * *

Deixando Engraçadinha, Sílvio apanhou uma condu­ção, em seguida. Ia para o bairro das mulheres. Durante o trajeto, pensou: — “Engraçadinha é que devia estar lá!” Imaginava — e com que envenenada satisfação! — a menina, lá, de combinação, numa das janelas ilumina­das. Êle teria preferido Geni — a que levava em cada seio o risco da navalha. Mas, já que esta andava com Barone, lembrou-se de uma outra. Hula, judia de olhos verdes e verruga no queixo. Por mais estranho que pa­reça, Sílvio queria apenas perguntar a Geni, Hula ou outra qualquer:
— O que é que você acha da mulher que gosta de mulher?
Não desejava ninguém, e perguntava a si mesmo: — “Nem Engraçadinha?” Nem Engraçadinha. Não deseja­ria ninguém naquele momento. Talvez Engraçadinha. Ou nem essa. Essa, menos do que qualquer outra. Letícia o esperava. Pensa: — “Amo Letícia”. Chega no bairro das mulheres e dirige-se à pensão que freqüentava. Não podia imaginar, porém, que teria de viver ali uma das experiências mais estranhas e abjetas de tôda a sua vida. Logo ao entrar na sala, vê Zózimo, completamente em­briagado (bebera a tarde tôda), no meio de mulheres e fregueses. Êle acabara de dizer qualquer coisa e todo mundo rebentava numa gargalhada. Sílvio teve a idéia de retroceder. O bêbado, porém já o vira. Chamava-o:
— Vem cá! Chega aqui!
Geni que estava numa mesa com o Barone, ergue-se e veio ao seu encontro. Bebera também: — “Sumiu? Vem!” Baixa a voz: — “Amanhã te espero!” O Barone, a dis­tância ,sorria-lhes, paternalmente. O ex-campeão de luta-romana, inteiramente careca, uma barriga quase intransportável, sorria de tudo e de todos. No meio da sala, Zó­zimo desvencilhava-se de alguém que quer agarrá-lo. Aponta Sílvio, que se aproxima:
— Êle conhece! — vira-se para Sílvio, com lábio encharcado: — Você não conhece?
A nova gargalhada ofende e humilha Sílvio como uma agressão indefensável. Quer segurar o rapaz: — “Vamos, Zózimo!” O outro puxa o braço, num repelão:
— Tu não conhece a minha futura?
Quer puxá-lo, novamente:
Geni vem de lá: — “Êsse Zózimo é um número! Uma bola!” Zózimo dá murros no próprio peito:
— Eu! Eu, sim, eu! — Entorta a bôca e começa a desafiar todo imundo: — Minha noiva está grávida de outro, sim, senhor! E aqui o Sílvio conhece a minha noiva. Não conhece? — Ri, pesadamente: — Não é um bijú?, um bijú!
Tenta arrastá-lo.: — “Vamos embora”. Mas o outro continua, na sua idéia fixa:
— Minha noiva está grávida e nem sei quem é o cara. Mas escuta, Sílvio! Eu estou dizendo aqui a êsses cretinos...
Olha em torno. Abraça o amigo. Grita:
— ...estou dizendo — tenho razão ou não tenho ? — Estou dizendo que não se chama uma adúltera de adúl­tera! Não é, Sílvio? Você acha que eu vou chamar de adúl­tera uma moça que traiu antes do casamento?
Assombrado, Sílvio fora sentar-se numa mesa vaga, num canto. Hula não aparecia; devia estar com alguém, de longe, olha aquela abjeção com uma espécie de deslumbramento. O bêbedo anda circularmente pela sala; sú­bito, estaca:
— Vou reconhecer o filho. Faz de conta que é meu. Sou muito homem pra mudar a fraldinha do meu filho!
Desata a chorar. Um gaiato faz voz de falsete: — “Chuta tua noiva pra mim!” Zózimo gira sôbre si mes­mo, procurando o gaiato: — “Vocês não entendem! Nin­guém entende!” E repete: — “É uma indignidade insul­tar uma adúltera”. Outro bate-lhe nas costas: — “Já de chifre, rapaz!” O bêbedo ri:— “Chifre!” E súbito, baixa a cabeça e, no passo pesado e incerto, sai dando marradas no ar. Apesar da embriaguez, ocorre-lhe uma reminiscência de cinema. Pára e, num esforço de equilíbrio, ras­pa o chão com o pé como um touro de desenho animado. De repente, cambaleia e acaba derramando-se no chão. Foi carregado; Sílvio ajuda. Na cara de Zózimo as lágri­mas vêm misturar-se com a baba. Chora:
— Minha adúlterazinha!

* * *

No meio do jantar, aparece Letícia. Engraçadinha crispa-se na cadeira. Dr. Arnaldo mostra a cadeira vaga: — “Sente-se, Letícia”. Respondeu, numa alegria agres­siva:
— Acabei de jantar.
Atônita, Engraçadinha não tira os olhos do pai. Êste acaba de enxugar os lábios com o guardanapo:
— Vem passar a noite aqui, Engraçadinha. O médi­co é de manhã. Letícia dorme contigo.

Nenhum comentário: