domingo, 27 de setembro de 2009

CAPÍTULO XXV

A mãe, que já ia saindo, atendeu o telefone. Grita:
— Pra ti, Letícia!
— Quem é?
E a velha:
— Tio Arnaldo!
Estremeceu. Por um momento, e só por um momen­to, teve a tentação de mandar dizer que não estava. Mas a mãe havia de estranhar: — “Que é que há?” Estava no quarto, sentada diante da penteadeira. Ergueu-se, com um frio correndo pelo estômago. Veio dilacerada por uma suspeita ou, melhor, por uma quase certeza: — “Engra­çadinha falou!” Ainda hesitou diante do telefone; repe­tiu para si mesma: — “Eu não devia ter beijado. Devia ter esperado um pouco mais, Ainda não era a ocasião”. Atende:
— Alô, titio!
E Dr. Arnaldo:
— Ah, Letícia? Tudo bem? Escuta, Letícia: — eu queria um favorzinho teu, pode ser?
A moça experimenta uma brusca euforia: —”Não sabe! Nem desconfia!” Êle a tratava como sempre, com uma grave ternura. Mas o velho continuava: — queria que ela acompanhasse a prima ao médico. Letícia encos­tou-se à parede, transfigurada. Balbuciou:
— Vou, sim! Levo, claro! Titio, não há problema!
Êle tossiu ligeiramente:
— Êsse exame, você compreende, não compreende? Convém uma acompanhante. E ninguém melhor que você, que está a par...
Que coisa linda, que selvagem doçura ouvir aquilo! Todo o seu ódio extinguiu-se de repente, no fundo do seu ser, até o último vestígio. “Oh, Engraçadinha! Perdoa que eu tivesse dito aquilo ao Silvio! Eu pensei que te odiasse e menti!” Dr. Arnaldo concluía:
— Escuta, Letícia. O médico é de manhã. Por que é que você não passa a noite aqui, não dorme com Engraçadinha? Posso então contar contigo?

* * *

Agora está na casa de Engraçadinha. Ora falava com uma tia, ora com outra, numa excitação meio febril. De vez em quando, olhava para Engraçadinha, que, um pouco atônita, tentava ler uma revista. Letícia precisava não dar a perceber a violência de sua felicidade. Tinha vontade de rir, de chorar. Houve um momento em que cantarolou não sei que verso. Seu mêdo era que perce­bessem a sua excitação. Disfarçou. Mas, sem olhá-la, Engraçadinha sentia a naturalidade vibrante, a calma fremente da outra. Dr. Arnaldo ergueu-se:
— Chega aqui, Letícia.
Ela trincava os dentes para não chorar de felicidade. O velho a levou para a varanda. Enquanto o ouvia, Letí­cia pensava: — “Ah, se eu fôsse o médico! Eu queria ser êsse médico!5’ Por um momento, ocorreu-lhe uma fanta­sia absurda: — imaginou-se estudando Medicina, só para tratar de Engraçadinha. Só a receberia depois do expe­diente. Diria para a enfermeira: — “Pode ir. Pode ir”. A enfermeira sairia. Dr. Arnaldo estava dizendo, velando a voz, para que ninguém os ouvisse (e quase não fazia mo­vimento com os lábios):
— Você sabe que tudo isso tem que ficar entre nós.
Sussurrou:
— Sei.
Pensava, mais do que nunca, no imaginário consultó­rio, onde ela, de avental, como uma médica de filme tra­taria de Engraçadinha. Desejaria que o consultório fôsse exclusivamente da prima. Mas está claro que não seria possível essa exclusividade. Que diriam os parentes? Os colegas? A cidade? Precisaria aceitar outros clientes, sem discriminação. Mas êstes seriam apenas um disfarce. A enfermeira não podia desconfiar de nada, isola! Ao lado do tio Arnaldo, imaginava a cena do consultório e com uma nitidez tão meticulosa e implacável que começou a sentir uma espécie de vertigem. O velho estava dizendo:
— Eu caí na asneira de contar a Zózimo. Imagine! Contei a Zózimo que Engraçadinha estava grávida. Pre­cipitação imperdoável!
— Contou?
Suspira:
— Contei. Na conversa, aquilo saiu. Mas, Zózimo reagiu bem. Rapaz de caráter. Reagiu bem, disse que casava. Uma mentalidade superior. Mas, em matéria de casamento, não convém favores e é de todo o interesse que o marido encontre uma virgem. Você entende, Letícia ?
— Também acho.
Animou-se:
— O casamento que começa por um favor está liqui­dado. Em sexo, não cabem os favores! E Engraçadinha vai ao médico... Olha, Letícia! Confio em você! Vai ao médico, justamente, para — não sei como dizer — para fazer uma operação que... Coisa sem importância cirúr­gica, mas que... Em, suma: sairá do consultório virgem. Então, eu poderei dizer ao Zózimo: — “Aquilo que eu lhe disse é falso!”
Riu, sombriamente. Letícia teve um lamento inte­rior: “Por que não sou eu o médico de Engraçadinha!-” Sempre falando baixo, inflamou-se:
— Pode parecer absurdo — e a juntou com uma sa­tisfação feroz: — Mas será menos absurdo quando êle constatar, êle próprio constatar que... Letícia, Engra­çadinha é como se fôsse sua irmã...
Apanhou a mão da sobrinha, apertou-a: — “Eu sei que posso confiar em você”. Letícia começava a ter raiva do médico do dia seguinte. O ginecologista ia tratar En­graçadinha como se fôsse uma cliente normal ou talvez a desejasse, quem sabe? Letícia sabia, através de uma amiga casada, que o ginecologista começa, normalmente, com a pergunta: — “Quando foi deflorada?” Isso quando é, naturalmente, uma cliente de primeira vez. Faz a per­gunta e vai enchendo uma ficha. Deu-lhe ódio que um desconhecido tratasse Engraçadinha com essa brutalidade profissional. Dr. Arnaldo baixava ainda mais a voz:
— Entendeu? Para todos os efeitos, Engraçadinha é virgem. E olha, Letícia: — Você não diga isso nem a sua mãe. A ninguém.
Ele respira fundo, ao mesmo tempo que pensa em Sílvio. Precisava falar com o filho. Decide, porém: — “Ainda não. Mais tarde”. Tinha mêdo daquele encontro. “Eu o evito e êle me evita”. Tanto êle, como o filho, sen­tiam-se humilhados e tristes. Enquanto Letícia volta para a sala, Dr. Arnaldo lembra-se, ao que ouvira, certa vez, na Camara. “Se não me engano foi o Aprigio”. O Aprigio afirmara que no Rio, e um pouco em São Paulo, a vir­gindade era um detalhe. O miserável assoalhara: — “Lá ninguém é virgem. Ninguém quer ser virgem”. Só a pena de morte!

* * *

Engraçadinha está com a revista abandonada no regaço. Já a folheara sem ler uma linha, sem olhar uma foto. Ergue o rosto, encosta a cabeça. Está desesperada de ódio: — “Eu sei o que ela está pensando. Por Deus do céu, estou com vontade de fazer, sabe o quê? Apanho a seringuinha de borracha e encho de iôdo”. Ah, se a outra tivesse a coragem! “Ela não me conhece”. A pró­pria Engraçadinha já não se entendia mais. Aquêle sen­timento envenenado, aquela onda selvagem que rompia de não sei que profundezas, era desconhecida na sua vida. Deixaria a seringuinha com iodo dentro da gaveta da mesinha de cabeceira. E se ela se aproximasse...
— Engraçadinha.
Abre os olhos, assustada. Era Letícia. Aproximara-se sem rumor. Estava sentada a seu lado. Com uma voz quase inaudível, disse:
— Você é muito cínica!
E a outra:
— Deixa eu falar. Engraçadinha!
Dr. Arnaldo, porém, aproxima-se. Estava olhando o relógio de pulso::
— Como é, pessoal? Está na hora de dormir. Vocês não vão dormir?
As duas levantaram-se. Engraçadinha vai na frente. Pensa: — “Como e que Sílvio pode achar que eu... Mas êle não tinha a culpa. A culpada era a Letícia, a sem-vergonha. Como, de um momento para outro, uma amizade de tantos anos amizade de tôda uma vida, podia extinguir-se num beijo, um simples beijo?”
Entraram as duas no quarto. Automaticamente, Letícia, que passara por último, torceu a chave. Sem uma palavra e com uma rigidez de máscara no rosto, Engraçadinha vai ate a porta e a deixa apenas fechada com o trinco. Letícia balbucia, sem nenhuma afetação, e com ardente humildade:
— Desculpe.
Não quer assustá-la. Engraçadinha decide: — “Vou deixar a porta encostada”. Eis o que lhe ocorrera — estar com a prima num quarto trancado seria aceitar uma intimidade quase física. Ao passo que Letícia, em silêncio, sentia, em todo o ser um sereno deslumbramento. “Passar tôda uma noite, no mesmo quarto, com Letícia”, eis o sofrimento, o mêdo surdo de Engraçadinha. Diz para si mesma: — “Não mudo de roupa”. Parecia-me que abrir um botão da blusa seria um gesto de abandono, uma sugestão de impudor, quase uma cumplicidade. “Vou-me deitar vestida”. Só com os pés livres e nus, os pés que, certa vez, fizeram Letícia dizer: — “São bem feitos! Lindos!” E o eram realmente, de um modelado voluptuoso e perfeito.
Com mêdo de olhá-la e velando a voz, Letícia per­gunta:
— Posso apanhar um pijama?
De costas, respondeu:
— Apanha.
Só. Mas qualquer palavra que Engraçadinha lhe dissesse era uma carícia. Apanhando o pijama, Letícia pensa: — “Vou passar a noite em claro”. Já fechou a gaveta; está de pé. Sonha, ao mesmo tempo que desabotoa o vestido nas costas: — “Morrer com Engra­çadinha”. E continua: — ser enterrada com a prima, lado a lado, unidas na mesma eternidade nupcial. Engra­çadinha está na janela: — “Ela vai tirar tôda a roupa. Pensa, naturalmente, que eu vou olhar. Pois sim!” Sem virar-se, Engraçadinha está dizendo:
— Você dorme na cama.
— E você?
— Eu me arranjo.
— Mas, Engraçadinha!...
E ela:
— Não aborrece, Letícia! A eterna mania!
Baixou a cabeça: — “Está certo, Engraçadinha, está certo!” A própria sujeição deu-lhe um prazer agudo. Só depois que a prima deitou-se é que Engraçadinha veio apanhar uma colcha e improvisou, longe da outra, uma espécie de cama, no chão. Letícia ainda perguntou: — “Você não muda a roupa?” Disse: — “Não”. Foi só. Na felicidade de tê-la tão próxima, Letícia pensa: — “Não direi mais nada”. Imóvel na cama, os pés unidos, as mãos entrelaçadas como uma morta, Letícia imagina-se ginecologista da prima. Engraçadinha não sabe se fecha ou não a luz. Tem mêdo das trevas. Sílvio brigara. Sílvio não viria. Diz sem voz, apenas com o movimento dos lá­bios: — “Sílvio”. Finalmente, levantasse e apaga o quarto. Vem deitar-se. Tem mêdo. Sente que anda um abismo solto nas trevas.

* * *

Sílvio chegou cêrca das três horas. Não entende por que o tio ainda não o chamara. Acabara de deixar o Zó­zimo em casa. O bêbedo, agarrado a êle, chorando sòrdidamente, repetia, na sua fixação de ébrio: — “Você co­nhece a minha futura. Não conhece? A minha futura, Sílvio? Conhece. Grávida, não sei de quem, nem interessa”. Aquêle bêbedo, obcecado pelo perdão da adúltera, era terrível. Sílvio largara-o nos braços dos pais. Agora, entrava em casa. Conseguira não pensar em Engraçadi­nha. Súbito, lembra-se da tara como de uma flor secreta, que tivesse nascido em não sei que solidões tremendas. Êle vem caminhando, mansamente, através do silêncio. Estaca, diante do quarto de Engraçadinha. Ainda vacila. Empurra a porta, que cede. “Abriu!” — foi sua excla­mação interior. Avança na direção da cama. Diz, fora de si:
— Engraçadinha!

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