segunda-feira, 28 de setembro de 2009

CAPÍTULO XXVI

Murmurou:
— Engraçadinha.
Letícia estava acordada e a prima também. Senti­ram quando alguém empurrou a porta. Engraçadinha pensa, dentro da escuridão: — “Sílvio. Acha que eu gos­to de mulher e veio. Tem ódio de mim e veio. Seu ódio é amor”. Ela mesma já não sabe o que é amar, e o que é odiar. Só sabe que Sílvio entrou e pisa de leve, tão leve, que mais parecem pés imateriais, calçados de silêncio.
A princípio, Letícia não entende: “Alguém!” eis o que pensa. “Alguém!”, repete para si mesma, ao mes­mo tempo que o estômago se contrái numa náusea de mêdo. Tranca os lábios para não gritar. O ser desconhecido está junto da cama. Diz, quase sem voz:
— Engraçadinha!
Sílvio, que procura a prima e a deseja! Oh, Sílvio! Letícia não responde. Ser chamada de Engraçadinha. Sente a mão de Sílvio deslizando e segurando, apertando um dos seus pés. Letícia quase não respira, como se o seu hálito pudesse trair-lhe a identidade. Por um mo­mento, Sílvio segura na mão a vida delicada e vibrante daqueles pés. Letícia está pensando: — “Sílvio! Eu não sou Letícia, eu sou Engraçadinha!” E continua, sentin­do na carne a mão áspera e quente: — “Ah, se eu fôsse Engraçadinha, eu me acariciaria...” Ela não entendia como certas mulheres não têm desejo por si mesmas ou ainda: — como certas mulheres não se possuem a si mes­mas. A mão de Sílvio abandona os pés. Sobe, Letícia mal respira: — “Êle não desconfiou ainda”. A mão pousa­da no joelho. E pensa: — “Engraçadinha viu Sílvio en­trar. Sabe que êle está comigo”. E passar por Engraça­dinha, ser Engraçadinha, viver a vida da outra, ter por um momento o seu nome, receber as suas carícias! Sílvio deixa-se enganar pela insânia dos sentidos.
Engraçadinha não se mexe. E se eu me levantar e acender a luz? Já, não; ainda não. Acaricia-se a si mes­ma: “Como é bom! Como é bom!” Ouve Sílvio balbuciar seu nome ainda uma vez, num lamento estrangulado:
— Engraçadinha.
Quer que ela fale. Bôca com bôca, Sílvio diz a Letícia: — “vim, querida! Não queria e vim!” Passa-lhe a mão pelo rosto e não sente que não são as feições de Engraçadinha. Depois, a agarra pelos cabelos, que não são tão leves e macios como os da mulher desejada; nem os lábios têm a mesma voluptuosidade. Êle gostaria que Engraçadinha fizesse como da primeira vez, que Engraçadinha trançasse os pés no alto. Hoje, ela se conserva pas­siva — atônita no sonho da carne e da alma. Sílvio repete para que a falsa Engraçadinha ouça:
— Te amo! Meu amorzinho!
Virá sempre. Tôdas as noites, empurrará a porta. Chegará alta madrugada e empurrará a porta. Pela primeira vez, ela não fala. É possuída no silêncio e nas tre­vas e sem uma palavra. Não chora como antes; não solu­ça, como antes: — “Oh, Sílvio! Sílvio! Sílvio! Oh, Sílvio”. Repetir seu nome e, depois, mordê-lo, estraçalhá-lo. Dila­cerar nos dentes o seu nome! Por fim, ficar sùbitamente hirta, gelada. Assim fora da última vez e agora não. Agora deixa-se possuir em silêncio. Não diz uma única vez o nome do ser amado. Êle sente apenas o rumor dos dentes trincados. E êle não percebe o beijo de Letícia não tem o gosto da bôca de Engraçadinha. Esta, na outra extremidade do quarto, rola; está de bruços, com o rosto amassado contra o travesseiro. Morde a fronha. Pode­ria chamá-lo: — “Estou aqui, Sílvio!” Ou ainda: poderia levantar-se para acender a luz. Mas fica onde está. Repe­te para si mesma: — “Eu não posso, Sílvio! Quero e não posso!” Sentir que era ela que estava sendo desejada e possuída — e não Letícia — dava-lhe um prazer quase mortal.
Letícia perdera o sentimento da própria identidade. Não era Letícia, jamais fora Letícia. Teve vontade de repetir num sôpro de voz: — “Eu sou Engraçadinha e não Letícia!” Ah, se ela pudesse perder a memória de si mesma, nunca mais ser Letícia, transformar-se em Engra­çadinha! Nos braços de Sílvio, sonhava. Enlouquecer e, como certos loucos, tomar uma nova e fantástica identi­dade, imaginar-se para sempre Engraçadinha. E, depois, ao morrer, queria que gravassem, no túmulo triste em letras de bronze, o nome de Engraçadinha e não de Letícia. Oh, ser enterrada como Engraçadinha e assim apodrecer!
De bruços, Engraçadinha sente que êles sofrem agora e que há, nas trevas, um grito prestes a subir como um dardo de loucura. Os dois parecem agonizar, parecem morrer. Sílvio morde as palavras como se elas pudessem sangrar: “Querida! Vidinha! Ah, querida! Querida!” E no chão, Engraçadinha os acompanha. “Sou eu, não ela! Sou eu e não Letícia! Eu, Sílvio!” O grito, que gostaria de dar, não chegou a erguer-se; partiu-se no fundo do seu ser. Súbito, uma paz imensa no quarto. Êle não sabe nada. Engraçadinha sente um vazio de êxtase perdido. Sílvio levanta-se. Depois do desejo sente o asco. Inclina-se sobre O rosto da outra e diz, quase chorando:
— Sua vaca!
Tateando, apanha o paletó no chão, junto da cama. Vai cambaleando. Pensa: — “Letícia, o que sinto por Engraçadinha não é amor, é desejo. Desejo Engraçadinha e nada mais. Só amo você, Letícia”. Sai do quarto; sem rumor, encosta a porta. Caminha, rente à parede. No seu desespêro, imagina, novamente, para si, uma mutila­ção hedionda. Não desejar Engraçadinha. Não deseja1: ninguém.

* * *

Pode parecer estranho, mas eis a verdade: depois que Sílvio saiu, não houve, entre as duas, uma única pala­vra. Engraçadinha decide, acomodando a cabeça no tra­vesseiro: — “Eu não direi nada. Faz de conta que não sei de nada”. Letícia sentia-se dentro ainda do sonho: — “Por um momento, deixei de ser eu mesma” — e repete, com o ser erguido em adoração — “Eu fui Engraçadi­nha”. Queria para si: — “No meu túmulo o nome de Engraçadinha e, por baixo, também em bronze, as duas datas: — de nascimento e da morte de Engraçadinha”. Adormeceram quase ao mesmo tempo. Engraçadi­nha teve um dos sonhos mais exasperantes de sua vida. Via o interior de uma igreja, de belos santos seminus; nos altares o sono dos círios. Duas noivas ajoelhadas. No sonho, Engraçadinha exclama: — “Sou eu!” Era, sim, uma das noivas; e a outra: — Letícia. A voz de um invisível padre estava perguntando se ela queria mesmo ser espôsa de... No próprio sonho, Engraçadinha fazia es­panto: — “Mulher já pode ser espôsa de mulher?” Coisa curiosa! Ela observava a possibilidade com um espanto divertido mas sem horror. Horror nenhum. E, subitamen­te, Sílvio apareceu no lugar de Letícia. Em seguida, já não era mais Sílvio e sim o ginecologista. De joelhos, Engraçadinha virou-se para ver os santos seminus, real­mente lindos.

* * *

Bateram na porta:
— Engraçadinha! Engraçadinha!
Era o Dr. Arnaldo. Letícia acorda, assustada:
— Já vai, titio!
O tio vinha somente advertir:
— Olha a hora do médico!
Eram sete e meia da manhã. Antes de bater na porta da filha, o velho passara no quarto do filho. Du­rante a noite, chegara a uma decisão: “Preciso falar com Sílvio o quanto antes”. Concluíra, com o maior desprazer, que estava com mêdo de uma explicação, cara a cara. Dr. Arnaldo vivia dizendo: — “Medo é uma palavra que risquei do meu dicionário!” E, realmente, só recua­va, só transigia por exigências da vida política, social e familiar. E nunca por covardia. “Não sou covarde!” Bate no quarto do filho e encontra o chão imundo de cinza e pontas de cigarro. Tem; um espanto consternado.
— Que é isso, meu filho?
O outro, que estava nu da cintura para cima, a cara incendiada de febre, enfia o paletó de pijama:
— Insônia.
O fato de chamá-lo “meu filho”, embora convencio­nalmente, perturbou-o. Antes de entrar ali, Dr. Arnaldo premeditara cada palavra e a respectiva inflexão: — “Devo ser prático e objetivo”. Sílvio especula: — “E se êle me insulta ou me agride?” Imaginou-se esbofeteado pelo tio e obrigado a reagir, ou, pelo menos, a defender-se. Sem alterar a voz e sem nenhuma emoção aparente, o velho disse tudo:
— O que passou, passou. Vamos passar uma esponja no passado. O que houve entre você e Engraçadinha foi um pesadelo. O remédio é esquecer. Esquecer e perdoar. Você vai casar-se com Letícia e Engraçadinha com Zó­zimo .
Calou-se, realmente satisfeito. Decorara as frases e conseguira repeti-las integralmente, sem acréscimo ou omissão de uma vírgula. Essa fidelidade da memória o envaideceu. Desesperado, mas contido, Sílvio respondeu sem olhá-lo: — “Está bem, titio!” Dr. Arnaldo respirou fundo e despedia-se: “Até já!”
Andara bem evitando uma referência direta e obje­tiva. A palavra “pesadelo” fora um achado. “Fui feliz”, admitia. Pouco depois, chamava Engraçadinha. No quarto, Sílvio acendia um nôvo cigarro que, como os anteriores, não fumaria até o fim: — Oh, como Engraçadinha estava diferente! Deixara-se possuir com uma passividade de amo­rosa ressentida.
Entre as duas primas, não houve um “bom dia”, nada. Não se falavam. Ambas sentiam-se ainda traumatizadas pelo prazer da noite. Letícia levara, na bolsa, uma escôva de dentes; preferiu, porém, usar a de Engraçadinha. De­pois que a outra saiu. Engraçadinha entra no banheiro. Lavou-se com deleite e o requinte de quem vai pecar. Ouvira alguém dizer (ou lera) que o ginecologista é o adultério da mulher fiel. Na porta do quarto, já pronta, Letícia teve ciúmes desse banho que não acabava mais. Mais do que nunca, sofreu não ter estudado medicina (só para examinar Engraçadinha). Finalmente, Engra­çadinha voltou para o quarto. Letícia quis acompanhá-la, mas ela se opôs:
— Fica do lado de fora.
Implorou:
— Queria falar contigo. Um momento, um instantinho.
Parou, junto à porta: — “Pois fala”. Baixou a voz:
— Te juro que nunca mais. Te dou minha pala­vra de honra. Eu não faço — pela vida de minha mãe! — Não faço nunca mais, Engraçadinha! Você me perdoa?
Ergueu o rosto duro:
— Você morreu para mim. E me espera aí fora, sim?
Dr. Arnaldo levou-as de carro. Eis a verdade: es­tava emocionado. Recomendou: — “Quero que Letícia assista. Olha, Letícia: — você fica ao lado de Engraça­dinha”. Engraçadinha vira-se para o velho: — “Papai, eu não quero que ninguém me olhe”. Dr. Arnaldo afagou-a nos cabelos: — “Criança!” Engraçadinha sonha­va: — “Só quero ver a cara dêle na hora!” Na esqui­na do médico, as duas saltam. Dr. Arnaldo indicou o lugar onde as esperaria. Disse: — “Felicidades”.
Sobem. Tocam a campainha. O próprio médico abre a porta. Olha uma e outra; pergunta:
— Quem é a Engraçadinha?
A menina dá um passo: — “Eu”. Dr. Bergamini faz um sinal: — “Entra”. Engraçadinha obedece, com o comentário interior: — “Que velho bonito, meu Deus do céu!” O médico está dizendo a Letícia:
— Fica sentadinha na sala de espera. Acompa­nhante do lado de fora.
Engraçadinha sentia que, ao primeiro olhar e an­tes da primeira palavra, êle a desejara.

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