terça-feira, 29 de setembro de 2009

CAPÍTULO XXVII

No seu desespêro, Letícia teve vontade de descer e, como uma doida, ir procurar o Dr. Arnaldo: — “O médico não me deixou entrar!” O miserável queria fi­cai* só com Engraçadinha. Letícia pensava, confusa-mente, que não há solidão maior e mais desesperadora que a da cliente bonita (sem acompanhante) e o ginecologista (sem enfermeira). Dir-se-ia o único ca­sal da terra. “Ah, porque não estudei medicina?” Mé­dica para examinar Engraçadinha e nada mais. Do lado de fora, procurava escutar o barulho de ferros. Nada ainda; apenas as duas vozes. Não conseguia, po­rém, entender as palavras. Falavam baixo. Ah, creti­no, ah, sujo!
Engraçadinha entrara. O médico, quase belo no seu avental, fechou a porta. De passagem, a menina olha para a mesa, com uma curiosidade maravilhada. Que coisa doce, que coisa linda, despir-se para um ho­mem que não é namorado, nem noivo, nem marido, nem amante! Se a mulher tem um mínimo de imagi­nação, há de comover-se, claro, há de maravilhar-se com êsse abandono diante de um desconhecido! “Vi­rei aqui outras vezes”, decide Engraçadinha. Desde garotinha que invejava as senhoras que iam ao médi­co. Ah, de quando em vez, ela poria a mão no lado, queixando-se: — “Estou com dor aqui”. Sim, fingi­ria a dor para ir ao ginecologista. Eis o que ela dizia a si mesma, por outras palavras: — há um momento em que a senhora honesta experimenta um certo tédio, certa saturação da rotina amorosa. Certos exames são uma maravilhosa imitação de pecado.
Dr. Bergamini está diante dela. Ainda não fala. Sim, o Dr. Bergamini não tem pressa da primeira pa­lavra. Engraçadinha pensa: — “A mesa está detrás de mim”. A mesa, com os seus estribos de metal. O médico apanha um cigarro e o acende. Êle sente que essa pequena, realmente linda, tem o enleio de uma pri­meira vez. Dr. Bergamini conhece muito bem essa cal­ma tensa, essa serenidade vibrante.
Súbito, êle sorri:
— Tem mêdo de mim?
Respondeu sôfrega:
— Não.
E o médico:
— Ou tem?
Contradiz-se, vermelha.
— Tenho.
Não mentia. Aquela voz de homem, densa e, apesar disso, de uma doçura viril, a assustava. Sentia, real­mente, um mêdo instintivo que, ao mesmo tempo, era de uma voluptuosidade quase insuportável. Tôdas as raízes do seu ser estavam crispadas. Engraçadinha já olhara várias vezes os antebraços do médico e pensa com uma angústia deliciosa: — “Parece gorila!” Ao mesmo tempo, imaginou-se raptada, numa floresta, por um macaco gigantesco. Nua, nos braços do King-Kong do filme. Êle continuava:
— Escuta, meu anjo: — primeiro vamos conversar.
Baixa a voz:
— Tenho vergonha.
Esse “Tenho vergonha” foi um exagero, do qual se arrependeu imediatamente. “Não devia ter dito isso”, foi o que pensou. Dr. Bergamini sorria-lhe ainda. Sabia que a adolescente, no ginecologista, tem um escrúpulo muito tênue ou nenhum. E, pelo contrário: — ela põe, no próprio impudor, uma docilidade tocante. Despe-se com uma espécie de ânsia. Salvo, naturalmente, o caso daquelas que têm uma feminilidade escassa ou nula.
Toma entre as suas as mãos leves e macias da cliente:
— Deve ter vergonha. Pode ter vergonha. Acho a vergonha naturalíssima.
Pensava, com bondade, na sua ternura divertida: “Não tem vergonha. Dissimula, mas o quê?” Êle apren­dera no “metier” de muitos anos, que mais importante são os ovários da alma. Polemizava com os colegas: — “Os verdadeiros órgãos genitais estão na alma” Graças a essa “mania da alma”, incompatibilizara-se com tôda a classe. Era apontado pelos médicos em geral como um bandido da especialidade. Muitos recusa­vam-lhe o cumprimento e havia os que diziam aberta­mente: — “Devia estar na cadeia!” E como se não bas­tasse “a alma” que êle esfregava na cara de todo o mundo, ainda tinha o cinismo lúgubre de fazer abortos — às vêzes, vinte por dia. E mais: — tomava dinheiro de umas pobres moças para costurar-lhe a virgindade. Já se esboçava um movimento, na classe, para cassar-lhe o diploma e metê-lo no presídio, como um “gangster” da profissão.
Dr. Bergamini abandona o cigarro pela metade, no cinzeiro. Volta-se para Engraçadinha:
— Escuta: — seu pai conversou comigo. Êle quer que eu faça, em você, uma operação:
Interrompe:
— Que operação?
E êle:
— Olha! É o seguinte: uma coisa rápida que não dói nada. Eu dou uma injeção; você sente apenas a pi­cada da agulha, só. E nem demora nada: uns dez mi­nutos.
Engraçadinha deixa passar um momento. Pergun­ta: — “E se doer? Doutor, eu sou muito covarde para dor!” Novamente, Dr. Bergamini apanha as duas mãos da pequena:
Suspira:
— Confio, mas... vacila e pergunta: — Pra que a operação?
O médico beija uma e outra mãos da menina:
— A operação é para você casar direitinho, na igreja, de véu e grinalda.
Numa brusca euforia, Engraçadinha diz para si mesma: — Já começou! Êsse negócio de beijar minhas mãos! Aposto que, daqui a pouco, êle vai querer que eu sente no colo! E pensava: — “Ah, Silvio aqui!” Compa­rou os dois: o médico e o namorado. Silvio era claro, fino, depilado; Dr. Bergamini, pesado, maciço e peludo. Novamente, Engraçadinha imagina-se arrebatada por um gorila, através da floresta; imagina-se triturada pelo bicho. Gostaria de passar a mão, de lixar a mão na barba do médico. Barba bem feita, mas de uma sombra azulada e intensa. Ela estremecera quando Dr. Berga­mini beijara as duas mãos.
O médico prossegue:
— Mas olha! Farei isso, claro, se você quiser. Não importa o seu pai — e repete: — O que importa é você. O cliente é mais importante do que tudo.
Êle gostaria de dizer — mas a menina não enten­deria — gostaria de dizer que para o médico e, sobre­tudo, para o ginecologista, a cliente é algo assim como uma Joana D’Arc. Achou graça (o próprio Dr. Bergamin achou graça) do espanto de Engraçadinha se êle bruscamente, a chamasse de Santa Joana. Repete sem desfitá-la:
— Neste momento, para mim, só você existe.
Novamente, estêve para dizer-lhe que, diante do ginecologista, a meretriz mais vil deve ser venerada. Todavia a palavra “veneração”, que usou mentalmen­te, chocou-o porque lembrava uma doença do seu “metier”. “Não devia me tocar!” Eis o que repetia para si mesma Engraçadinha. “Silvio pensa que eu gosto de mulher. Bem feito!” Dr. Bergamini não larga­va as suas mãos. Ela já o olhava mais firme e quase com desafio; e, sem querer, começava a entreabrir os lábios, talvez numa leve insinuação de beijo. Dr. Ber­gamini gostaria de continuar a afirmar-lhe que, se fôsse o caso, estaria com a cliente e contra o pai, a fa­mília, a sociedade.
Súbito, Engraçadinha fêz a pergunta:
— E se eu estiver grávida?
E êle:
— Bem. Isso é o que vamos ver. Mas admitamos que sim. Eu acho — eu, pessoalmente — que você deve ter o filho. Quer ter o filho, caso esteja... Quer?
Disse, com súbita paixão:
— Quero!
Êle, que havia abandonado as mãos da menina, volta a apanhá-las. Disse-lhe, então, por outras pala­vras, que só um canalha, um verdadeiro canalha, pode discriminar a “mãe solteira” da outra.
— Então, escuta: — tenha seu filho. Não interessa o seu pai, ou sua mãe, ou a vizinhança. Tenha o filho de qualquer maneira!
Ela queria ter, sim, o filho. Com as mãos livres, faz uma inconsciente carícia no próprio ventre. “Não vou tirar!” Se o pai quisesse bater-lhe, fugiria até de casa. O filho de Sílvio. Não podia casar. Muito bem: — ficaria com o filho de Sílvio. E quando estivesse já com a deformação da gravidez, passaria pelo ser ama­do, e o olharia, como se dissesse: — “Teu filho!” Zó­zimo (bobão!) passaria por pai. Carregaria o menino, ou a menina, com o carinho de sua falsa e abjeta pater­nidade.
“Por que é que êle não me examina logo?”, pergun­tava Engraçadinha a si mesma, com sofrida impaciên­cia. O corpo de Sílvio era branco, como o de uma moça, e o do médico, sólido e escurecido de cabelos. Dr. Bergamini ergue-se:
— Vem cá!
Levanta-se também. Crispada, espera. O médico indica uma porta na extremidade do consultório:
— Está vendo ali?
— Estou.
E êle:
— Entra lá e muda a roupa.
Engraçadinha experimenta uma contração no es­tômago. O médico vai apanhar a luva. Para êle, aquê­le momento jamais fora rotina, hábito ou monotonia profissional. Pelo contrário: — era algo de nôvo, de perpétua e violentamente nôvo. E não pelos órgãos puramente físicos. Como ignorar, como fazem tantos im­becis convencionais, os ovários da alma? A partir do momento em que a cliente acomodava o salto nos estribos de metal, tornava-se santa.
Engraçadinha entrou no pequeno cubículo ladrilhado. “Vou te trair, Sílvio!” Oh, impudor que nenhu­ma igreja condena! Por um momento, deu-lhe a ten­tação de fingir uma desesperadora inocência e tirar tudo, fazer como fizera com o Sílvio, na biblioteca. He­sita, um momento. Que diria ao médico se, de repente, aparecesse absurdamente nua? Quis experimentá-lo. Entreabre a porta. Pergunta:
— Doutor, tiro tudo?
E se êle dissesse: — “Pode tirar”? Dr. Bergamini, que estava colocando a luva, disse:
— Não ouvi.
Repetiu:
— É para tirar tudo?

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