quarta-feira, 30 de setembro de 2009

CAPÍTULO XXVIII

Ao mesmo tempo que perguntava se era para “ti­rar tudo”, Engraçadinha pensava: — “Nenhum médi­co faz o que êle fêz”. Sem a ter visto nunca, apanhara as duas mãos e beijara uma e outra. Ela não se dei­xara iludir pela falsa naturalidade dessa ternura.
Dr. Bergamini, que, a princípio, não ouvira, cor­rige :
— Tudo, não. Só a calcinha.
Quando Engraçadinha reaparece, êle, que fumava usando a mão esquerda, encosta o cigarro no cinzeiro. Já estava de luva. Vira-se para ela:
— Chega aqui, meu anjo.
A menina aproxima-se. “É agora”, dizia para si mesma. Para o médico, aquêle momento já se repeti­ra, na sua vida profissional, umas mil vezes. Mas êle não teve a sensação de uma experiência conhecida e banalizada. Pelo contrário: — contraiu-se como se fôs­se uma primeira vez, sempre uma primeira vez. Cos­tumava dizer para os colegas que ainda o cumprimen­tavam: — “Há uma ocasião em que o ginecologista precisa sentir-se um S. Francisco de Assis”. Êle perde, por um instante, a sua identidade convencional, para viver, apaixonadamente, a sua plenitude franciscana. Ai daquele (era o Dr. Bergamini que o dizia), ai da­quele que, na ginecologia, não consegue jamais pros­trar-se como um S. Francisco de Assis. Começava a vi­ver, exatamente, êste momento.
Engraçadinha já não finge mais o enleio da ado­lescente que não é de todo mulher. Ergue a fronte com uma certa paixão. Por debaixo do vestido os quadris estão livres e vibrantes. “Vou trair Sílvio”, foi sua ex­clamação interior. Traí-lo sem que êle soubesse. Hu­milhá-lo.
Dr. Bergamini segurava nas pontas da toalha de li­nho. Chama.
— Você põe os pés aqui. Aqui, é.
Abria a toalha na frente de Engraçadinha. Êle re­petia sempre: — “A partir do momento em que a cliente introduz o salto dos sapatos...” Sim, o salto nos estribos de metal (referia-se à cliente de primei­ra vez), a partir desse momento, o médico deixa de ser o simples profissional atento, o simples técnico; transcende a si mesmo. O Dr. Bergamini achava que, em tais ocasiões, o ginecologista não devia sentar-se no banquinho próprio, mas ajoelhar-se. Ficar de joe­lhos, numa humildade total.
Dr. Bergamini sabe que a cliente de primeira vez faz, para o ginecologista, um jogo de pequeninas simu­lações. Ela não pode dar a perceber que leva em si uma voluptuosa curiosidade, um sentimento de pecado — mas um pecado sem mácula.
O médico vê Engraçadinha de olhos fechados, bôca crispada. Faz-lhe uma breve exortação. O que quer dar a entender, em suma, é que aquêle não era um local próprio para o pudor. Acrescenta:
— O médico, aqui, não é nada. A cliente, tudo. Ou por outra — faz de conta que eu sou, aqui, um S. Fran­cisco de Assis.
Gostaria de dizer, ainda, que a cliente, seja qual fôr, é o ser imaculado. Para si mesmo, repetiu: — “Nes­te momento você não tem mácula, nenhuma, nenhuma”. Ao mesmo tempo, reconhece que S. Francisco não ra­ciocinaria tanto e que... Calou-se. Disse apenas:
— Você aqui não deve ter pudor.
Abriu os olhos; ergueu a cabeça:
— Não é pudor.
Os dois se olharam. Encostou, novamente, a cabeça no pequeno travesseiro. “Bem feito, Sílvio!”, pensava Engraçadinha. Lá fora, na sala de espera, Letícia trin­cava os dentes, unia os joelhos. Ah, o cachorro daque­le médico! Pensa que, se estivesse lá dentro, ah, se es­tivesse lá dentro! Odiou o ginecologista que lhe barra­ra a entrada.
Dr. Bergamini ergue-se. Pergunta, com sofrida hu­mildade (sentia-se, realmente, um S. Francisco de Assis):
— Isso quando aconteceu:
Engraçadinha fixa o médico. Seu olhar é, agora, a um só tempo mais doce e mais profundo. Responde com outra pergunta:
— Estou?
Insiste: — “Quando foi?” Ao saber que tudo acon­tecera há dias, disse:
— É cedo.
A menina entreabria os lábios, sem desfitá-lo. Com a língua umedecera o sorriso. Perguntava a si mesma:
— “Será que êle não percebe? Ah, se eu fôsse o médi­co!” Imaginou-se no lugar do Dr. Bergamini (Dr. Ber­gamini diante de uma cliente de 18 anos. Em primei­ro lugar, quando a cliente perguntasse: — “Tiro tudo?” — responderia: “Tudo”. Estava só, sem acom­panhante e sem enfermeira. E se a cliente perguntara é que admitia, claro, ela própria, a necessidade de des­pir-se de maneira absoluta. Logo que aparecesse nua, êle começaria por tomar-lhe o peso. Diria: — “Sobe na balança!” Subiria, nuazinha, na balança. Êle faria o comentário: — “Sabe que você é linda?” Repetiria: — “Linda!” E, súbito, a beijaria no pescoço, nas costas, na curva do ombro).
Engraçadinha pergunta:
— O que é que o senhor vai fazer, doutor?
Ela sentia no médico uma perturbadora humilda­de. Dir-se-ia que Dr. Bergamini a olhava como que adorando. Sim, adoração e não desejo. “O Zózimo me adora”, pensou. Dr. Bergamini respondia:
— Vou-lhe fazer aquela operaçãozinha. Uma coisa à-toa.
Sabia e, ainda assim, perguntou:
— Pra que, hem Doutor?
E êle:
— Você não quer sair daqui virgem? Não quer?
Endureceu o rosto:
— Não!
— Por quê?
Estava espantado e inquieto. “Tôdas querem, você, não?” Fêz a volta da mesa. Engraçadinha repete: — “Eu, não”. E continua:
— Doutor, eu vou ser franca. O senhor prefere, não prefere? Que eu seja franca? Pois é, Doutor, eu sou noiva de um e isso aconteceu com outro.
Dr. Bergamini começou a sofrer. Fêz espanto: — “E seu noivo? Você não gosta do seu noivo?” Res­pondeu :
— Gosto.
Não gostava de Zózimo, claro. Mentia, porém, com uma intenção. Queria que êle sentisse que ela podia gostar de Silvio, Zózimo e, até dêle, médico. Fêz-lhe um desafio:
— O senhor acho que uma mulher pode gostar de mais de um ao mesmo tempo? Acha?
Dr. Bergamini não sabe o que responder. (Apren­dera, em 20 anos de ginecologia, que a mulher normal, equilibrada, é capaz de amar dois, três, quatro ao mes­mo tempo. O amor múltiplo é uma exigência sadia de sua carne e de sua alma. A exclusividade que ela dá, e que o homem exige, representa um equívoco ou, pior: — um aviltamento progressivo e fatal. Cada minuto de fidelidade significa assim um nôvo desgaste. Há tão pouco amor por isso mesmo: — porque o degradam com devêres, com obrigações. Como dever, como obri­gação, a fidelidade é uma virtude vil) ! Com uma ver­gonha mesclada de asco, êle responde:
— A mulher só deve amar um de cada vez.
Ao mesmo tempo que dizia isso, teve ódio de si mesmo e da própria covardia. Gostaria de responder, aos berros: “Ame. A mulher séria é a que ama. En­quanto não ama, ela não é nada. A mulher que não ama acaba apodrecendo”. Diria ainda: — “Não amar é apodrecer”. Era o que tinha aprendido na sua clínica ginecológica. Até aquela data, não encontrara um cân­cer feminino que não tivesse sua origem na pura e sim­ples falta de amor. Mas como poderia atirar essas ver­dades eternas e brutais para uma adolescente que começava a amar? Fazia abortos, desafiando a ética da classe; era considerado um bandido da especialidade; mas não tinha coragem de aconselhar a uma cliente ca­sada: — “Não ama seu marido? Pois ame alguém e já. Não perca tempo, minha senhora”. Perplexo e angus­tiado, ouvia Engraçadinha dizer:
— Eu me conheço, doutor. E não adianta. Se o se­nhor fizesse isso, daqui a um mês ou dois aconteceria a mesma coisa, compreende? E eu teria de voltar sempre.
Deixara de ser menina. De um momento para ou­tro, tornara-se mulher. Pedia, por fim: — “Vamos fa­zer o seguinte: — eu digo a papai que o senhor fêz a operação e o senhor confirma”. Êle quis saber, pela úl­tima vez: — “Não quer, então? Eu faço o que você qui­ser. Não quer mesmo?” Deu-lhe a mão para que des­cesse da mesa. Engraçadinha sentia nos quadris livres uma selvagem plenitude. Oh, peito de gorila! Rígido, como qualquer colega convencional, êle manda:
— Vá se vestir.
Tirara a luva. Repetia, com surdo sofrimento: se fôsse realmente um S. Francisco de Assis, e não um po­bre ser degradado por escrúpulos, teria dito a essa me­nina: — “Ame!” O médico senta-se, apanha o cigarro. Engraçadinha pensa com surdo sofrimento: — “Man­dou que eu me vestisse!” Na sala de espera, Letícia junta mais os joelhos, como se tivesse pudor pela pri­ma. Dr. Bergamini insistia:
— Meu anjo, vá se vestir, vá!
Estava sentado. Em pé. Engraçadinha teve o la­mento: — “Êle não quer! Êle não quer!” Por um mo­mento, não sabe o que fazer. Quase sem desfitá-lo, diz, lentamente:
— Eu estou vestida. Eu não quero me vestir mais do que estou.
Atônito, o cigarro esquecido nos dedos, êle com­preende, subitamente, tudo. Engraçadinha inclina-se, entreabre os lábios, oferecendo a bôca para o beijo. Dr. Bergamini ergue-se, e, novamente, apanha as duas mãos da pequena e beija uma e outra. Baixa a voz, doce, mas firme:
— Vá se vestir.
Diante dêle, pergunta:
— Não me quer?
E êle:
— Vá se vestir.
Passa por êle, de cabeça baixa, dilacerada de ver­gonha. Põe a pecinha elástica e minúscula: — “Creti­no!” Sentado, eis o que pensa o Dr. Bergamini: — “Se eu fôsse S. Francisco de Assis, teria dado amor a essa pequena!” Sentia-se de uma pusilanimidade abjeta. Engraçadinha aparece. Êle continua com a idéia fixa: — “Não sou um S. Francisco de Assis! Eu não diria nunca a uma esposa”: — “Traia o seu marido, para não apodrecer!” Passa a mão no ombro de Engraçadinha:
— Eu mentirei para seu pai. Direi que fiz a ope­ração.
Levou-a até a porta. Disse para Letícia, com certa tristeza:
— Devolvo-lhe a nossa amiga.
Sentia-se um fracassado. As duas despedem-se: no meio da escada, Letícia, que imaginava não sei que iniqüidades, pergunta quase chorando: — “Abusou de ti? Fala! Abusou”. Olhou-a, firme:
— Quem sabe?
Acabava de decidir: — “Hoje vou abrir a porta para Silvio!”

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