quinta-feira, 1 de outubro de 2009

CAPÍTULO XXIX

Dr. Arnaldo estava na calçada, junto do automóvel. Andava de um lado para outro e, de vez em quando, apanhava o relógio no bolso do colete. Olhava a hora e resmungava:
— Tarde!
“E se o miserável”, eis o que pensava. Imaginava as hipóteses mais hediondas. Felizmente fora uma grande idéia mandar Letícia. A presença de uma acom­panhante ou melhor, de uma testemunha, e repetia para si mesmo, com satisfação: — “A presença de uma testemunha constrange, inibe e acovarda o médico”. Em pé, em cima do meio-fio e sempre com a bengala, sus­pira: — “Ah, ser pai!” Durante 18 anos, eis a verdade que precisava admitir o quanto antes — durante de­zoito anos ignorava a filha. E, súbito, a descobre; sabe agora, por experiência própria, que nada se compara a uma envergonhada ternura tardia. Olha, de nôvo, o relógio e tem um espanto indignado: — “Uma hora, já!” Estava inclinado a admitir que, mesmo com a acompanhante, um médico inescrupuloso pode-se per­mitir pequeninos abusos. Na sua cólera de magro, vi­brante em cima da calçada, pensa: — “Meto-lhe a ben­gala!” Neste momento aparecem as duas. Precipita-se. Ainda olhou Engraçadinha, com sofrida curiosidade. Estava calma e sorria-lhe. Êle deduz que ela não so­frera nenhum ultraje bestial. Vem de braço, com a fi­lha, para o automóvel. Com uma excitação quase im­perceptível, baixa a voz:
— Tudo bem, minha filha?
E virava-se também para Letícia. As duas respon­dem, simutâneamente:
— Tudo.
Entram no carro. Êle falaria, mais tarde, com o medico. Ou, por outra, queria ter com aquêle canalha (era indubitàvelmente um canalha da especialidade), queria ter um último e enojado encontro. Não lhe con­cederia senão um mínimo de palavras: — “Quanto é?” Pagaria, e só. E se, mais tarde, o encontrasse, na rua, passaria adiante, sem cumprimentá-lo. No automóvel, com a filha e a sobrinha, passou o braço por trás e puxou Engraçadinha para si. Baixa a voz:
— Doeu?
E ela:
— Pouco.
— Não te disse?
Êle não entendia que, com aquêle recurso cirúrgi­co, tão delicado, rápido e indolor, todo o mundo não fôsse virgem. Embora fôsse, incontestàvelmente, um “gangster” da profissão, o Dr. Bergamini era, ao mes­mo tempo, um achado. Ah, o bandido! “Nego-lhe o cumprimento!”, repetia para si mesmo. Ao lado de Engraçadinha, no automóvel, Letícia lembrava-se do ginecologista e, instintivamente, juntava as pernas, num selvagem pudor. Engraçadinha, de olhos muito abertos, sonhava: — “Êle não me quis!” E já imagina: — “Se eu voltasse lá? Vou voltar. Deixo passar uns dias e, de repente apareço. Mas, ah! Desta vez, quando eu sair do cubículo, nua! Duvido que êle...” Na sua imaginação o médico já não era médico, ou, por outra: — era um ser duplo, um andrógino de médico e gorila. Faz para si mesma a pergunta: — “Será que as outras não pensam o que eu penso? Será que elas não desejaram ser roubadas por um gorila, nuazinhas?” De repente, fixa o pensamento em Sílvio: — “Como é que êle não percebeu que era Letícia e não eu’? Como o homem é burro, meu Deus!” Chegaram em casa. Dr. Arnaldo volta-se para Letícia:
— Almoça aqui. — E, para Engraçadinha: — Você precisa ter um certo repouso. Não precisa?
Enquanto paga ao chofer, ocorre a Dr. Arnaldo uma reflexão que, por fatalidade, coincidia, em tudo por tudo, com a concepção que o Dr. Bergamini fazia da especialidade: — “O ginecologista” — era o que pensava o Dr. Arnaldo ao receber o troco do chofer — “devia ser um casto”. Embolsa o trôco e continua o seu raciocínio: “Casto e santo”. Deixou que Engraçadinha e Letícia passassem à frente, e, começando a subir, jun­tamente com as duas, já imaginava o médico com um par de sandálias severas, de sandálias tristes, entran­do num claustro lúgubre e gelado.
Em cima. Zózimo o esperava:
— Bom dia, Dr. Arnaldo.
Dr. Arnaldo estende a mão, com alegre surpresa:
— Olá Zózimo!
Pensa: — “Essa besta!” Convida, num gesto largo: — “Mas vamos entrar! Vamos entrar!” Agora que En­graçadinha sofrera uma pequena operação, leve e deli­cada como um retoque (exatamente, retoque), agora que Engraçadinha era novamente virgem, o velho já olhava Zózimo com certo desprazer. Fazia-lhe várias restrições, inclusive esta: — “Transpira muito nas mãos. Num marido, a humildade, se não fôr bem medida, tor­na-se abjeta. Isso mesmo: — abjeta!” Passa a mão pela cintura do rapaz (sem abandonar a bengala) e suspira, satisfeito:
— Foi bom você aparecer. Precisamos conversar.
Cruzam com Sílvio. Dr. Arnaldo diz-lhe: “Tudo bem, Sílvio! Tudo bem!” Não lhe piscou o olho, para sublinhar as próprias palavras, porque não seria nobre e afetaria a dignidade de sua atitude. Entra com Zózi­mo no biblioteca. Dr. Arnaldo queria que o outro sen­tasse, ao passo que êle permaneceria de pé. Achava que o simples fato de sentar-se já retira de uma pessoa um pouco de sua compostura. Efetivamente, Zózimo senta-se e começa, com certa avidez:
— Devo-lhe uma explicação...
Rápido, Dr. Arnaldo interrompe:
— Um momento!
“Eu devo falar primeiro”, pensava. “Há um fato nôvo que devo esfregar-lhe na cara!” Depois de uma ligeira tosse nervosa, ergue o rosto e vai falando:
— Acabo de chegar do médico — e especifica, bai­xando a voz: — Ginecologista. Muito bem: — eu fui lá por motivos óbvios.
“Óbvio” era uma palavra que usava muito e com particular agrado. Continuou, com uma excitação pro­gressiva: — “Sou um pai. Tenho meus deveres. Precisa­va saber”. Faz uma pausa. Desconcertado, Zózimo pen­sa: — “Êle me considera um crápula”. Dr. Arnaldo faz-lhe, à queima-roupa, a pergunta: — “Você acredita em Deus?” Vermelho, responde:
— Mais ou menos.
Exulta:
— Por quê “mais ou menos”. Que fé é essa? Pois eu lhe digo: — quando o ginecologista examinou a mi­nha filha e vira-se para mim e diz: — “Virgem!” Foi o que êle me disse. Compreendeu, jovem? Fez todos os exames, absolutamente todos! E quando me disse isso, sabe qual foi a minha reação? Eu pensei: — “Deus existe”.
E, de fato, naquele momento, êle sentia, na biblio­teca, quase que a presença física de Deus. Sim. Deus parecia-lhe algo de pessoal, de tangível, de visível. Es­cancara o olhar e teve a idéia de que, se quisesse, se estendesse a mão, Deus seria algo de materialmente palpável. Afirmava, apaixonadamente:
— A virgindade da minha filha é uma prova, ou você não entende? Uma prova da existência de Deus! Eu fui lá supondo, até, uma gravidez. Nada disso! Gravidez nenhuma e mais virgem do que nunca. Acre­dite em Deus, jovem! Minha filha não depende — isto é o importante! — não depende da generosidade de um noivo.
Atônito, balbucia:
— O que eu queria dizer é que...
Novamente, o velho interrompe:
— Meu amigo, depois do que eu lhe disse, você não acha — pensa bem! — não acha que qualquer comentário é inútil e, mesmo, desprimoroso? Escute, jovem: — o marido que na noite de núpcias constata, êle mesmo que... Você não acha que êsse marido deve dar graças a Deus?

* * *

Silvio vinha passando pelo corredor, quando En­graçadinha o puxa pelo braço: — “Vem cá!” E fala baixo (o pai e Zózimo estavam na biblioteca):
— Você e Letícia no meu quarto, de madrugada, hem? Que dois!
Vira-se, estupefato: — “Letícia?” Ela contrai a bôca com cínica voluptuosidade:
— Letícia, sim! Ou você não percebeu que era Le­tícia e não eu? Eu estava lá, mas olha: — Letícia dei­tou-se na minha cama e eu dormia em cima da colcha, no chão, junto do guarda-vestido! Sim, senhor!
Lívido, com uma orla de suor em cima do lábio superior, não quer acreditar: — “Letícia? Foi Letícia?” com o olhar procura a noiva. Engraçadinha o desafia: — “Quer que eu chame Letícia?” Foi ao encontro da prima e a trouxe pelo braço: — “Quem é que estava na minha cama, esta madrugada? Quem?” Letícia tem vontade de chorar. Murmura, com um olhar de súplica intolerável:
— Eu.
Sílvio olha ora uma, ora outra. De repente, os três sentiram-se unidos por uma dessas cumplicidades im­placáveis. Todavia, não saberiam explicar que vín­culo muito tênue e, ao mesmo tempo, irredutível, aca­bava de ligá-los. Dir-se-ia que, a partir daquele momento, teriam um destino comum e espantoso. Sílvio encostou a mão na parede. Experimentava uma espé­cie de vertigem. Abria a bôca e não conseguia falar. Elas, caladas, perceberam a sua angústia. Não era an­gústia, mas um prazer tão violento, tão brutal que êle sentia-se subitamente gelado, sim, de volúpia. “Foi Le­tícia e não Engraçadinha!” Possuir uma pela outra, amar Letícia e não Engraçadinha, e na presença de Engraçadinha! Embora com ódio de si mesmo, embora achando-se um ser vil, chama uma e outra. Com a garganta crispada de prazer (um prazer que êle não conhecia), pergunta:
— Vocês fariam isso outra vez? Letícia, escuta: — dorme aqui, Letícia. Arranja uma desculpa e dorme aqui.
De nôvo, os três sentiram que, quisessem ou não, eram cúmplices. Foi tal o sofrimento de Sílvio (e eu­foria) que a voz lhe fugiu. Com um olhar turvado pelo desespêro, continua, afinal: — “Nada se compara, nada...” Queria dizer, por outras palavras, que não há embriaguez mais completa, não há delícia mais pro­funda do que ver o ser amado traindo. Aperta o pulso de Engraçadinha: — “Você não quer vêr? Responde, Engraçadinha! Você, que me ama, você não quer vêr — eu e Letícia? Ver?” Olha a cara atônita de Engraçadi­nha. Esta passa a mão pelo rosto — confusa e dilace­rada.
Sílvio repete:
— Sim ou não?
Engraçadinha vira-se lentamente para Letícia:
— Você dorme aqui?
E a outra, baixo:
— Sim.
Sílvio sente que começa o martírio:
— Deixa a porta encostada.
Respondeu:
— Deixarei.
Êle saiu dali como um louco. Mais tarde, na cidade, entra numa loja de ferragens. Pede:
— Eu queria uma navalha.

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