quinta-feira, 22 de outubro de 2009

CAPÍTULO L

O Ib Teixeira, jornalista (muito moço), estava no Bar do Pepino. Bebera, já, três batidas de maracujá. Duas horas atrás, desembarcara, ali, de um táxi. Um outro jornalista, o Raimun­do Pessoa (de óculos), o acompanhava. Tinham um encontro marcado — no Bar do Pepino — com duas chilenas, uma para cada um. (Não eram bonitas, mas ambos estavam na fase em que a seleção praticamente não existe.)
Ib, pequenino como um japonês, mas com uma voz ines­perada e pesada de barítono, ocupa uma das mesas do canto (a tarde já caía, muito leve e diáfana). Certo de que a sua chilena era uma Heddy Lamar, vira-se para o garçom:
— Meu chapa, traz um... — vira-se para o Raimundo Pessoa — Você quer tomar o quê?
— Batida de maracujá.
O garçom inclina-se:
— Duas?
E o Ib, com a sua voz de Paul Robinson:
— Pode ser duas. Traz duas. Mas olha: escuta.
O garçom retrocede. O Ib queria simplesmente reco­mendar:
— Capricha, porque estamos esperando duas caras,
E começam a esperar. As garotas por um motivo desco­nhecido, e um tanto suspeito, tinham preferido ir encontrar os dois rapazes no próprio bar. Uma hora e meia depois, nada de chilenas. Tomaram a terceira batida. E, súbito, os óculos do Raimundo têm uma cintilação: “Espia!” Ib vira-se, vivamente: era Silene, que descia do táxi. Raimundo sopra:
— Que ‘boa’, rapaz!
Silene passa, rapidamente. Essa visão instantânea aumen­tou, no Ib, o ressentimento da frustração. Bufa: “Cretinas!” E, súbito, a humilhação deflagra a sua agressividade de peque­nino. Põe-se a deblaterar contra o Arnaldo Nogueira, o ve­reador:
— Sabe o que fez? Ah, não sabe? Vou te contar.
E começa, feroz e exultante:
— Eu mesmo li, eu!, no Diário Oficial e te digo: fiquei besta. Fez um discurso, na gaiola, contra o beijo de um menino de 12 anos numa menina de 12 anos. E chama o beijo de ‘atentado à moral’!
Com o cálice vazio, à sua frente (e também já desesperado das chilenas) o Raimundo Pessoa rosna a frase:
— Freud explica isso.
O Ib achava que o verdadeiro ‘atentado à moral’ era o discurso do Arnaldo Nogueira. Perguntava ao companheiro: “O povo elege um sujeito, dá-lhe dinheiro para o cara legislar contra o beijo!” O Raimundo Pessoa, no seu jeito meio soturno, arrisca:
— Feio é se o garoto, em vez de escolher uma garota, preferisse outro garoto!
Com um lampejo no olhar, o Ib espia para o portão numa última esperança das chilenas. Ergue-se, com vontade de cho­rar; esbraveja ainda: “O ódio que há no Brasil contra o amor! A polícia persegue os namorados, os amantes, fecha os hotéis. Temos uma polícia ginecológica!”
Como não acredita mais nas fulanas, toma-se de um jucundo pessimismo nacional. Arrasta o colega:
— Vamos dar uma volta.
Neste momento, aparece um outro jornalista, o Vidal, nor­tista, que andava com um punhal no cinto (um punhal lindo, com incrustações de prata). Vidal acabara de despachar a pequena que viera com ele, uma loura casada. Conversa vai, conversa vem, e passam do Arnaldo Nogueira para a sucessão.
Fazendo a volta do parque do Bar, com os outros, o Vidal pergunta ao Raimundo:
— Você acredita em eleições?
E o outro:
— Acredito e olha: barbada pra o Jânio!
— Barbada?
O Ib pula:
— O Lott vai passar direitinho o Jânio na cara!
Vidal ri, feroz:
— Oh seus zebus! Não vai haver eleição nenhuma! Não há outra saída: é o golpe! A turma se convenceu que, no voto, o Jânio ganha. Ora, ninguém vai dar posse ao Jânio, claro! Ou você acha que alguém vai dar posse ao Jânio?
Raimundo (sem elevar a voz, mas numa convicção inex­pugnável) quer saber:
— E se ele for eleito?
Ib abafa os outros com seu vozeirão: “O Lott ganha ou no voto ou na ignorância!” Vidal grita:
— Um momento! Vocês querem escutar, carambolas? — os outros calam-se e ele continua, triunfante: — Você me chama de ‘pau-de-arara’, mas escuta aqui: O Jânio eleito sem eleição e, talvez, assassinado? — ri, com o lábio encharcado. — O único assassinado que tomou posse foi Inês de Castro.

*

Vendo a menina na cama, Leleco vacila. Seu primeiro impulso, logo reprimido, foi da fuga pânica. Sofrendo como nunca, olha a cadeira, no meio do quarto. Lá estão as roupas de Silene. “É linda, tão linda, mas...” Pergunta a si mesmo, desesperado: “Por que ela se despiu? Por que não esperou?” A menina chama:
— Vem.
Do lado de fora, junto à janela do quarto, há uma dis­cussão. Dois ou três homens discutem. Um deles exalta-se:
— Olha aqui; se derem um golpe! Mas escuta! Se de­rem um golpe! Vocês me deixam ou não me deixam falar?
Leleco aproxima-se, lentamente, da cama: “Por que eu não sou como os outros? Ela não sabe que eu não sou como os outros!” E não entende que ela não perceba a sua angústia. O próprio Leleco está espantado. Pensa: “Não sei como se pode sofrer tanto.”
Apanha na cadeira a saia da menina. Volta e, sem uma palavra, cobre a nudez de Silene. A garota não entende (come­ça a sofrer):
— Não gostou?
— Gostei, mas...
Pára, sem ter nada que falar. Ao mesmo tempo, faz a si mesmo a pergunta: “Digo ou não digo que não sou como os outros?” Do lado de fora, um sujeito está dizendo (junto à janela):
— A salvação é o golpe!
Outro responde:
— Se tocarem no Jânio, toma nota: é a guerra civil!
E o primeiro:
— Você viu o Jânio na televisão? Em Noite de Gala? O Jânio estava com um ar de primeira vítima! E olha! O pró­prio Jânio anda espalhando isso. Ele está adorando morrer no 5.° ato, como uma Sarah Bernadt!
Silene está com a saia por cima da nudez. Leleco senta-se na cama:
— Escuta.
Pergunta:
— Não me quer?
E ele:
— Vamos morrer?
Faz espanto:
— Sem amor?
Vacila. “Não tem veneno, mas...” Lembra-se do cani­vete. “Cortar os pulsos”, sonha. “Cortaria os meus e os dela.” A menina olha-o. Pensa: “Morrer virgem?” Leleco inclina-se para ela:
— Morrer no mar.
Segurando a saia na altura dos seios, repete:
— Mas sem amor?
Os homens de fora ainda berram:
— O Lott devia tomar o poder no peito! Ditadura mi­litar!
Outro reage:
— Com que roupa?
Mais berro:
— O dólar vai para quatrocentos cruzeiros! Ouçam o que eu estou dizendo: quatrocentos cruzeiros! Com o dólar a qua­trocentos cruzeiros, só há um recurso: baixar o pau!
Dir-se-ia que estão falando dentro do quarto. “Que gente!” é a raiva de Silene. Decide: Morrer virgem, não! “Por que ele espera? Estou nua e me cobre? Por quê?” E, sobretudo, não quer morrer no mar. Sabe que os afogados têm os olhos bran­cos e a boca obscena. No mar, não.
Deitado a seu lado, sentindo a vida misteriosa dos seus quadris, ele fala ao seu ouvido:
— Silene, eu não sou como os outros, Silene. Eu...
O psiquiatra falara: “As senhoras de família seriam me­lhores mães e esposas se dissessem palavrões.” Silene está pen­sando no filme. Agarra-o; aperta sua cabeça com os braços; diz, trincando os dentes: “O filme! o filme!” Leleco custa a perceber. De repente, uma selvagem alegria rompe das profun­dezas do seu ser. Ergue o rosto. Os dois se olham e se entendem.
Junto da janela do quarto, o sujeito berra, exultante:
— Com esse dólar histérico é um crime não dar o golpe!
Réplica de um terceiro:
— Golpe, vírgula! guerra civil!

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