quarta-feira, 21 de outubro de 2009

CAPÍTULO XLIX

A princípio, não entende:
— Morrer?
Apanha entre as suas mãos as mãos de Silene. O vento do mar e da montanha batia-lhes no rosto. Silene cala-se por um momento. O sopro da velocidade dá-lhe uma espécie de embriaguez. A tarde nasce das ilhas próximas. Com um olhar atônito de sonho, diz, quase sem voz:
— Terias coragem?
— De morrer?
Olham-se. Silene continua (com uma alegria desespera­dora) :
— Escutai Passaríamos a noite juntos!
— Onde?
Falam quase boca com boca:
— Nesse lugar.
— O Bar do Pepino?
A pequena acha que o simples nome — assim italianado — diz-lhe tanta coisa. Se as coleguinhas de colégio soubessem que ela tinha estado no Bar do Pepino! E que ia morrer no Bar do Pepino! Sonha: “Vão ficar numa inveja danada!” Risca o braço de Leleco com as unhas. Pergunta:
— Ou tens medo?
— Nenhum.
E ela:
— Tu não achas legal um pacto de morte?
Agora, com a cabeça pousada no seu ombro, faz uma re­flexão inesperada: “Morrer com Vavá. Com Vavá, e não Leleco.” Vira-se com violência para Leleco:
— Queres?
Responde, passando a mão por trás de sua cabeça, agar­rando os seus cabelos:
— Quero!
O chofer, na frente, não sabe que eles vão morrer; que, na manhã seguinte, despertarão entre os mortos. (Não têm ve­neno, não têm nada.) Apertando a pequena, Leleco pensa no psiquiatra. Dr. Areal dissera-lhe “Se você tiver vontade de dizer uns palavrões pra pequena diz, pode dizer. É bom. E faz a garota dizer outro tanto. A mulher gosta de pornografia. O palavrão fará bem a você e a ela.” Súbito, o chofer pergunta:
— Eu espero vocês lá?
Silene responde, sôfrega:
— Não.
E o chofer:
— Então, vai ter que me ajudar na volta. Meu amigo, eu trabalho a quilômetro.
Com a euforia dos seis contos no bolso, Leleco responde:
— Dá-se um jeito.
O carro entra no Bar do Pepino. Faz a volta, devagar Silene toma um susto:
— Aqui?
Olha tudo com uma curiosidade maravilhada. O táxi pára. Leleco diz-lhe:
— Espera um momento.
Respira fundo:
— Não demora.
— Volto já.
Entra na casa. Dias atrás, tinha estado lá, com o Bob e o Cadelão. Os dois levavam uma pequena cada um e Leleco nenhuma. Bob puxara o garçom para um canto:
— Queremos um quarto só.
O garçom deu a chave, recebeu o dinheiro e indicou com um movimento de cabeça:
— Aquele ali.
Leleco ficou no carro, esperando. E, agora, voltava com Silene. Está pagando o garçom e recebendo a chave. Lembra-se das palavras do médico: “Você não tem, nunca teve vida se­xual.” Paga o quarto e volta para buscar Silene. A voz do mé­dico parece acompanhá-lo: “Use a pornografia. O palavrão será um estímulo para si e para a mulher.” Puxa a carteira para pagar o chofer. Este pergunta:
— Quer que eu espere?
Silene novamente interfere:
— Não precisa.
E o outro:
— Se quiser eu espero. Posso esperar. Vão demorar muito?
“Não sabe que nós vamos morrer”, pensa Silene, com brus­co sofrimento. Já começa a ver tudo com a violenta doçura de um último olhar. O motorista bate na mesma tecla: “Trabalho a quilômetro.” Leleco faz as contas. Paga a corrida e mais cin­qüenta por cento. O motorista ainda resmunga: “Querendo, eu espero.”
Os dois entram, de mãos dadas. Silene baixa a cabeça, ao mesmo tempo que ele a empurra: “Depressa.” O quarto é o último.
Entram e Leleco fecha a porta. Ela gira sobre si mesma, numa alegre e irresponsável pirueta. “Se as colegas soubes­sem.” Balbucia, apontando o guarda-vestido:
— O espelho!
Ao lado, mudo, ele começa a sofrer. Pensa: “Silene não sabe...” Sim, não sabe que ele tem angústias, suores, pânicos e que... Não esquece as palavras do psiquiatra: “Você não tem vida sexual.” E o conselho: “Diga e faça dizer palavrões. O palavrão é um estímulo.” Agora está sozinho com Silene num quarto do Bar do Pepino. É como se fossem o único casal da Terra. Mas o medo voltou. O psiquiatra parece estar sopran­do, no seu ouvido: “É a repressão educacional que impede a mulher de ser pornográfica. No fundo, ela gostaria de falar no­mes feios.”
Silene puxa-o. Cola o seu corpo ao dele. Entreabre os lábios:
— Beija, me beija.
O rapaz puxa um pouco a blusa para beijá-la no ombro. Fora de si, Silene apanha o seu rosto com as duas mãos e pro­cura a boca. Leleco já sabe que ela termina o beijo mordendo. Beija e é beijado, mas está gelado até os ossos. A obsessão do psiquiatra não o abandona. É como se o outro estivesse, ali, repetindo: “O medo mata o desejo, mata o prazer. O palavrão é um estímulo. Na intimidade sexual, a mulher gosta de porno­grafia.”
Silene desprende-se:
— Ah, como é bom! Como é bom!
Leleco arqueja. Ela o agarra, de novo:
— Gostou do filme?
Respira fundo:
— Mais ou menos.
Ri, com uma doçura nova no olhar:
— E daquela cena?
Ah, Silene não sabe de nada! Se ele pudesse dizer-lhe: “Sou homem feito e não tenho vida sexual.”
A pequena sentou-se na cama. Atira longe os sapatos e arranca as meias. Olha os pés livres e nus. Em seguida, deita-se. “Ela me espera”, é a angústia do rapaz. Silene fala:
— Vira o espelho.
— Pra quê?
Ergue meio corpo:
— Nessa direção. Vira o espelho nessa direção. Pra gente ficar olhando.
“Se as colegas soubessem!” Atônito, Leleco obedece. A pequena ri, ainda mais linda:
— Agora vem.
(E só pensa no filme e na cena.) Desesperado, o rapaz pergunta a si mesmo: “Qual é mesmo aquele remédio que eu li na reportagem do Pinheiro Júnior? O nome, eu não me lem­bro do nome! Ah, Dexin! Isso mesmo, Dexin! O Pinheiro Júnior disse que o Dexin é batata!” A esperança rompe da angústia: “Será que a besta do garçom me arranjava um Dexin?” Cur­va-se para a menina:
— Meu bem, olha, eu vou ver se arranjo, sabe o quê?
Num movimento instintivo, ela já abre o primeiro botão da blusa. Está imaginando a bomba que vai ser no colégio a notícia de sua morte e de Leleco, num quarto do Bar do Pepi­no! Decide: “Vou morrer vestida. Ou nua? Não. Vestida é me­lhor. Vou morrer, sim, vestida.” O rapaz continua:
— Há um troço que é um tiro e que...
Quis agarrá-lo: “Não precisa arranjar nada! Vem!” Leleco desprende-se, com surda irritação: “É um minuto só. Agüenta a mão.” Sai, procura e acaba descobrindo o garçom. Começa, fingindo uma alegre naturalidade:
— Nossa amizade, você é capaz de me fazer um favor de mãe pra filho caçula?
O outro inclina-se, numa correção total: “Se estiver ao meu alcance.” Crispado, pergunta:
— Por acaso, vocês têm aí Dexin?
— Como? Dex o quê?
— Dexin. Têm?
Respondeu, com a sua polidez implacável:
— Não, não temos.
Odiou aquele homem com toda a crueldade de sua frus­tração. Insiste:
— Melhoral, vocês têm. Não têm? Pelo menos Melhoral?
— Também não.
Deu-lhe uma fúria; e pensava: “Mas é o cúmulo! Um lugar como esse! Essa espelunca deve ser freqüentada por ve­lhos bombardeados e devia ter...” Ah, nem o garçom, nem Silene sabiam que ele dependia de um comprimido, uma pas­tilha, um excitante qualquer! Sentia-se tão perdido que abriu o coração para aquele desconhecido (o homem era quase doce de tão cortês):
— Escuta, nossa amizade. É o seguinte: eu estou nesse estado assim, assim. Acho que é nervoso, não sei. Estou com medo de fracassar, compreendeu? Medo besta, mas sabe co­mo é...
O garçom pigarreia:
— Quer um conselho?
— Fala.
E o outro:
— Não tome nada. O senhor é moço e não convém. Pra quê? Isso passa. Daqui a pouco passa.
Tem vontade de chorar:
— E se eu não der no couro? Com que cara vou ficar?
— Meu amigo, faz o seguinte: volta pra junto da peque­na. Conversa um pouco. Pode crer que passa.
Pensa: “Ele não sabe. A melhor menina do Rio de Janei­ro me espera e eu não sinto desejo, não sinto prazer, nada, nada.” Volta, lentamente, para o quarto. A voz do médico não o larga: “As mulheres seriam menos desequilibradas se disses­sem palavrões.” Por que o cretino do psiquiatra não lhe recei­tara um excitante pesado? Ainda por cima, deixara o morango, o éter, em Senador Dantas!
Dilacerado, pára, um momento, sem coragem de empurrar a porta apenas encostada. Entra, finalmente.
Logo estaca, porém. Olhou para a cama e o que viu deu-lhe vontade de fugir, gritando.

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