sexta-feira, 23 de outubro de 2009

CAPÍTULO LI

Cerzindo uma combinação rosa, na sala de jantar, Engraçadinha canta, a meia voz, para si mesma:
Foi Cristo quem me salvou,
Foi Cristo quem me salvou.
Quebrou as cadeias e me libertou,
Foi Cristo quem me salvou.
Parou um momento para molhar a ponta da linha na lín­gua. Continua:
Quebrou as cadeias e me libertou.
Ao mesmo tempo, pensa: “O Senhor não permitirá que Durval e Silene...” Fez para si mesma a pergunta: “Por onde andará Silene?” Súbito, lembra-se do momento — há vinte anos atrás — em que se despira e... Desesperada, alteia a voz e canta com inconsciente agressividade:
Foi Cristo quem me salvou!
Abandona a combinação no regaço. Ergue a fronte, como se desafiasse os pequeninos demônios da carne. Tem ódio da própria fragilidade; e um certo asco. Embora cante com raiva, pensa ainda naquela noite em que sua nudez se enroscara em outro corpo. Diz: “Não quero pensar!” Levanta-se, põe a cos­tura em cima da cadeira e aperta a cabeça entre as mãos.
Foi nesse momento que bateram lá fora. Vai atender e tem a surpresa:
— Ah, Dr. Odorico!
O juiz tirava o chapéu:
— Como vai, Engraçadinha?
Por um instante, ela tem o breve e desesperado escrúpulo de mandá-lo entrar. Estava sozinha e que diria a vizinhança? Afinal, embora fosse um senhor já, era um homem. Por outro lado, refletiu: “Quem sabe se ele conversou na Prolar? Mas por que não veio em outra hora, meu Deus?” O canto estava na sua cabeça: “Foi Cristo quem me salvou!” Desceu os três ou quatro degraus de pedra:
— Mas tenha a bondade, Dr. Odorico!
O juiz corrigiu, com alegre polidez:
— ‘Doutor’, não. Odorico.
Balbuciou, vermelha:
— Entre. Tenha a bondade.
Engraçadinha vai na frente. Ele, atrás, concluiu: “É me­lhor do que a filha, muito melhor do que a filha.” E continua, para si mesmo: “Tenho visto poucas mulheres tão bonitas!” Entram na sala e ela, titubeante, apanha um jornal no soalho:
— Desculpe a desarrumação, Dr. Odorico.
Ela estaca, num afetuoso escândalo:
— Outra vez! E por que ‘Doutor’ Odorico? Vamos, diga: Odorico. Quero ver: Odorico, diga — e adverte, risonho: — Olha que eu me ofendo e...
Disse, com duas rosetas na face (ele achou esse carmim natural inteiramente divino):
— Odorico.
O velho exultou:
— Viu? Não foi tão fácil, tão simples tirar o doutor do meu nome? Escuta, Engraçadinha. Eu sou da seguinte teoria. Com licença, vou me sentar. Da seguinte teoria: onde há ami­zade...
Em pânico, Engraçadinha acaba de lembrar-se de sua combinação em cima da cadeira. Interrompe, agoniada:
— Um instantinho.
Nervosa, passa pela cadeira, apanha a combinação e, de costas para ele, a enfia na primeira gaveta. Volta-se. Sua espe­rança é que o juiz esteja, ali, por causa do emprego do filho. Ele prossegue:
— Onde é que eu estava? Ah, sim! A minha teoria é que onde há amizade, digo amizade sincera, real, não cabe a cerimônia. Tenho ou não tenho razão?
Respondeu, atarantada:
— Bem, naturalmente que... Depende do ponto de vista e aliás...
Ouvindo-a com imenso deleite, Dr. Odorico considerava: “Toda mulher que se ruboriza, facilmente, é sensual!” Aliás, a palavra que ele usou, no seu íntimo, foi ‘quente’. Sorria e confirmava, mentalmente: “Com a capa de convertida, é uma ‘mulher quente’!” Imaginava também que Zózimo não seria dos maridos mais indicados para uma das mais belas mulheres do Rio. Pensou ainda que, na conversão de uma senhora casada, o que existe, no fundo, é um fracasso de alcova.
Houve uma pausa. No alto, perto do teto, a pequenina lâmpada azul ardia por S. Jorge. Dr. Odorico põe as duas mãos em cima dos joelhos:
— Engraçadinha, o que me trouxe aqui foi...
“O aumento de Durval!” era a sua aflita esperança.

*

Batera em Vaz Lobo na esperança de encontrá-la sozi­nha. Ainda teve que vencer uma dúvida: lotação ou táxi? Deci­diu-se por este último. Calculou: “A essa hora, ela deve estar sozinha...” Havia também uma eventualidade, que rejeitou, de não encontrá-la em casa. O homem apaixonado (e seu dese­jo fazia vinte anos) é, via de regra, fatalista. Pensou: “Seja o que Deus quiser” e disse ao chofer:
— Vaz Lobo.
Com a irritação de quem vai pagar um taxímetro devorador, fez o exagero, entre jocoso e amargo: — “É o lugar mais longe do mundo.” Enquanto viajava, pôde chegar à premedita­ção dos mínimos detalhes. Pretendia dramatizar ao máximo o episódio; e mais: era sua intenção aparecer como, digamos, um quase salvador de Silene. Engraçadinha ficaria gratíssima pelo seu zelo. Diria o seguinte:
— Vi sua filha saindo do Les Amants e... Sim, perfei­tamente: com um rapaz. Um rapaz que eu não conheço. Pois bem: sua filha e o rapaz, que, entre parênteses, eu não afirmo, é uma presunção. Mas o tal rapaz me pareceu da ‘juventude transviado.
Diria também que perseguira os dois em outro táxi, mas que, por infelicidade, um sinal atrapalhara tudo. Imaginava o terror de Engraçadinha quando, em tom cavo, completasse:
— Os dois seguiam, provavelmente, a direção da Ave­nida Niemeyer.

*

Pensando no filme, Leleco crispa-se de felicidade: “Estou salvo!” Estende-se e, transfigurado, cicia:
— Sabe dizer palavrão?
Ria baixo, ofegante. E ela:
— O quê?
— Você sabe dizer nome feio? Sabe, não sabe?
— Por quê?
Agarra o seu braço nu:
— Diz um.
Reage:
— Perde a poesia.
Teima:
— Um só.
E ela:
— Mas não sei dizer.
Com surdo sofrimento, implora:
— Diz um e pronto. Pelo menos um. Um só, está bem? Está com os olhos cheios de lágrimas. Quer convencê-la:
— Sabe por quê? É pelo seguinte, escuta: o meu médico, o médico que eu consulto, que é formidável, ele diz que nessa hora o palavrão é gostoso, necessário, ouviste?
Silene enfia os dedos nos cabelos do rapaz. Vacila ainda. Ele está quase chorando:
— Olha: diz baixinho, aqui, no meu ouvido. Baixinho. Não custa, diz!
Silene vira-se e encosta a boca na sua orelha. Fala. Leleco exulta. Há, em todo o seu ser, uma feroz ressurreição. Ri, nu­ma embriaguez súbita e brutal:
— O médico tem razão! O que ele disse é batata!
Ela está mordendo o seu ombro. Tira a boca e olha, ma­ravilhada: sangra a marca dos seus dentes. Por sua vez Leleco a beija no ombro, no pescoço e, finalmente, morde a ponta de sua orelha. Lá fora, ainda se discute. Um dos sujeitos afirma, jucundo:
— O Jânio vai ficar satisfeitíssimo com o próprio assas­sinato! E toma nota: quando o dólar chegar a quatrocentos cruzeiros, porque vai chegar, ah vai!, fecha o tempo!
Resposta:
— Com o dólar a quatrocentos cruzeiros, quem toma conta do Brasil é o Jânio!
A primeira voz afirma:
— A cronologia é: morte de Jânio, golpe, guerra civil!
No quarto, o rapaz pede ainda:
— Repete! O mesmo, repete! No meu ouvido! Diz! Pode ser o mesmo!
Silene fala ao seu ouvido. Ele soluça:
— Oh, querida! Querida!
Fora de si, a pequena morde o outro ombro. Leleco de­safia:
— Mais! Mais! Pode morder! Morde, anda! Tira sangue!
Pula da cama. “Vem cá”, chama. Carrega Silene nos bra­ços. De longe, muito longe, vem a voz do psiquiatra: “Às ve­zes, um palavrão que a mulher possa dizer produz milagres. Um simples palavrão!” Sempre carregando a menina, gira sobre si mesmo, num delírio:
— Minha! Minha!
Silene cerra os dentes:
— Faz de conta que é uma curra. Que você me pega, que me bate, que...
Atira a menina na cama. Quando ela se volta, Leleco a derruba com uma bofetada. Silene corre nua dentro do quarto. Finge para si mesma um terror louco. E esse falso medo é de um prazer quase insuportável para os dois.
Ela agora está presa nos seus braços. Lá fora, os três ho­mens engalfinham-se pelo Brasil. Um deles jura que, no mo­mento, precisa jorrar mais que o petróleo, precisa jorrar san­gue, muito sangue.

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