sábado, 24 de outubro de 2009

CAPÍTULO LII

Tosse ligeiramente e inclina-se:
— O assunto que me traz aqui...
Engraçadinha, nervosa, pensa: “Vai falar do emprego! Arranjou o aumento!” Na sua íntima efusão, estava prestes a agradecer a Deus. Dr. Odorico prossegue (novo e desnecessá­rio pigarro):
— Aliás, um assunto extremamente desagradável.
E ela, confusa e dilacerada:
— Como assim?
O juiz faz uma pausa. Pergunta a si mesmo: “Devo levan­tar-me?” — e decide: “Vou levantar-me. É bom. Devo falar em pé. Impressiona mais.” Efetivamente, ergue-se e começa a andar de um lado para outro, em silêncio. Ela o acompanha com o olhar e há em si a dúvida: “Mas se não é emprego...” Seu rosto toma essa expressão de avidez que um suspense bem jogado produz sempre. Ele falara em assunto “desagradável”.
Súbito, Dr. Odorico estaca. Faz a pergunta, inesperada e incisiva:
— Engraçadinha! Onde está sua filha, Engraçadinha?
Toma um choque:
— Qual delas?
E ele, alteando a voz:
— A menor! Falo da caçula! Silene, a menor! Podia me dizer onde está Silene?
Responde, meio aterrada:
— Colégio!
Falando e agindo com meticulosa premeditação, estudando as mínimas pausas, Dr. Odorico parece exultar. Esfrega as mãos, numa satisfação a um tempo profunda e cruel:
— Não, Engraçadinha! Não está no colégio! Sua filha...
Faz uma pausa. Senta-se. E, súbito, toma entre as suas as mãos de Engraçadinha. Esse gesto inesperado a confundiu e assombrou. Todavia, o juiz apressou-se em explicar:
— Não interprete mal o que é apenas afeto e, realmente, solidariedade. Digo ‘solidariedade’ porque a notícia que me trouxe é de molde...
Faz, a medo, a pergunta:
— Desastre?
Pensava num atropelamento. Já via a menina ensangüen­tada e quem sabe se... Apertando as mãos de Engraçadinha (oh que mulher gostosa!) Dr. Odorico respira forte:
— Desastre? Não, não. Ou por outra: não deixa de ser desastre. Sob certo aspecto, é, sim, um desastre.
Quis desprender-se. Ele, porém, não a largava. O simples fato de lhe segurar as mãos era, para o Dr. Odorico, um prazer quase mortal (já começava a transpirar). Engraçadinha sente que a voz lhe foge:
— Mas, diga, o que aconteceu a minha filha...
Dá a notícia, à queima-roupa, sem desfitá-la:
— Vi sua filha, com um rapaz, saindo do filme Les Amants! Em seguida, os dois tomaram um táxi!
— Minha filha?
Repetiu, violento:
— Sua filha!
Abandona as mãos de Engraçadinha (era preciso não exa­gerar). Levanta-se, outra vez. E diz para si mesmo, com uma sensação de triunfo: “A reação que senti, ao segurar as mãos de Engraçadinha, prova, à saciedade, que eu não sou tão velho assim.” Fez questão de usar gíria mentalmente: “Ainda dou no couro!” Outra expressão que usava largamente era ‘à sacie­dade’. Engraçadinha ergue-se também: “Seria Durval?” Per­guntou para si mesma, gelada de angústia. Imaginou Durval e Silene assistindo, lado a lado, talvez de mãos dadas, um filme imoral, onde apareciam seios! Crispa-se:
— E o rapaz?
Outro pigarro:
— Não conheço. Nunca vi, mas acho que... É uma im­pressão, não garanto nada. Mas pareceu-me disso que chamam ‘juventude transviada’.
Novo silêncio. Andando de um lado para outro, Dr. Odorico exulta: “Foi uma sorte danada eu ter encontrado os dois...” Parecia-lhe que o episódio do cinema o instalara, de­finitivamente, naquela família. Arranjara, enfim, um pretexto para tomar de assalto a intimidade de Engraçadinha. “Ou papo agora ou nunca mais.” Na sua euforia, estava disposto a dar-lhe geladeira — uma Sheer Look, de sete pés. Simultaneamente, ocorreu-lhe uma outra idéia: um telefone! Conclui: “Um tele­fone, aqui, é genial. Não precisa nem prioridade!” Tinha ami­gos, relações na Telefônica. Por um momento inclinou-se a acre­ditar que o Judiciário servia para isso mesmo ou seja para arranjar telefones, de favor.
Dr. Odorico estaca diante de Engraçadinha. Desesperada, tem a exclamação:
— Então fez gazeta?
Ele foi implacável. Disse tudo:
— A gazeta ainda não é nada — e repetia: — A gazeta é um detalhe! O pior você não sabe! O pior...
Preparava-se para desfechar-lhe o golpe de misericórdia. Engraçadinha interrompe:
— Um momento!
— Como?
Ela baixa a cabeça, fecha os olhos. Começa a falar:
— Pai Santo e Glorioso Deus...
Surpreso e desconcertado, Dr. Odorico faz a pergunta in­terior: “Oração?” Parecia-lhe insólito que alguém incluísse, nu­ma conversa normal e prática, uma prece inteira. Ele não era nada ou por outra: dizia-se livre pensador. Todavia, foi corre­tíssimo e fez questão de exagerar a sua solidariedade. Baixa também a cabeça, entrelaça as mãos e parece dar a sua mais íntima e comovida adesão. Engraçadinha prossegue:
— ...pedimos-Lhe que Tu nos conceda o pão do espírito e abençoe a cada um de nós em particular. Te pedimos estas coisas não porque as mereçamos mas pelos méritos d’Aquele que morreu na Cruz para nos salvar...
Suspira, erguendo o rosto duro:
— Amém.
Dr. Odorico apressou-se:
— Amém.
Dir-se-ia que este simples ‘amém’ os unia ainda mais. “Dou a geladeira! Uma Sheer Look, de sete pés, que é mais em conta!” Faria uma surpresa total. Parecia-lhe que uma ge­ladeira, de sopetão, pode derrubar as mais inexpugnáveis resis­tências femininas. Inclinou-se, reverente, diante daquela mãe tão bonita. Ao mesmo tempo pensava: “Está na idade em que a mulher sobe pelas paredes. Não com o marido, claro. Com o marido, ninguém sobe pelas paredes.”
Então, já mais serena, hirta de fé, Engraçadinha o encara:
— Pode falar. E dizer o pior.
Achou-a uma beleza naquela serenidade fremente. Dr. Odo­rico exaltou-se:
— O pior, minha senhora... — corrige: — Desculpe: o pior, Engraçadinha, é que os dois tomaram um táxi. Ainda corri. Corri porque eu senti aquilo como se fosse uma filha minha. Tomei um táxi também.
Balbuciou: “Táxi?” Sempre ouvira dizer que, num táxi, os casais perdidos costumam praticar as piores abominações, nas costas do chofer. Repetiu, atônita: “Táxi?” Dr. Odorico pensa: “Agora, eu a seguro pelos braços.” Agarrou-a:
— O diabo é que um sinal estragou tudo! Perdi o carro de vista — toma respiração e completa: — Os dois seguiram a direção da Avenida Niemeyer, Engraçadinha, da Avenida Niemeyer, compreendeu?
Ela começa a chorar. O juiz a sacode:
— Mas escuta! Engraçadinha, escuta! Olha!
— Oh meu Deus!
Dr. Odorico exulta: “Minha reação, outra vez, batata!” Houve um instante em que, cego por um desejo brutal — um desejo de vinte anos —, ia dar-lhe um beijo, derrubá-la e... Conteve-se, porém. Baixo e violento, brada:
— Vamos salvar sua filha! Escuta, Engraçadinha! Eu sal­vo sua filha! Salvo! Palavra de honra, eu salvo!

*

Leleco tapa-lhe a boca:
— Mais baixo! Podem ouvir!
Silene foge com o rosto e morde-lhe a mão. O rapaz le­vanta-se e vai ligar o alto-falante. Aumenta o som. Toca um bolero. Volta:
— Agora pode gritar!
Silene passa a mão no seu rosto:
— Suado!
E ele:
— Você também!
Essa mistura de suor deu-lhes uma brusca alegria. Rosto com rosto, ele pergunta:
— Gostou?
— E você?
— Estou maluco!
Silene está admirada:
— Quase não sangrou!
Já não ouvem mais a discussão lá fora. O som forte do bolero abafa tudo. Silene vira-se e agarra-o pelo cabelo:
— Responde: sou gostosa?
Ele sente no corpo o próprio suor e o da menina. Baixa a voz (com uma nostalgia aguda de tudo e dela mesma):
— Vamos morrer?
— E o veneno?
Leleco levanta-se. Apanha na calça o canivete e o abre. Com o olhar ainda velado de prazer, a menina pensa: “Morrer nua ou vestida?” E faz a si mesma outra pergunta: “Se eu não morresse — teria filho? Ficaria grávida?” Do lado de fora, Vidal está, ainda, sob a obsessão do dólar:
— Com o feijão a noventa cruzeiros e o dólar subindo. Olha! Quando o dólar chegar a quatrocentos cruzeiros, hei de ver o Schmidt, o Frederico Schmidt. Como é mesmo, o... Ah, o Augusto Frederico Schmidt. Pois é: hei de ver o Schmidt comendo rapadura como um flagelado. Sentado no meio-fio e comendo rapadura, como um retirante de Portinari. O Schmidt, o Elmano Cardin, o Edmundo da Luz Pinto roendo rapadura como uns paus-de-arara!

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