domingo, 25 de outubro de 2009

CAPÍTULO LIII

O Dr. Odorico percebeu que, em coisa de minutos, tor­nara-se íntimo de Engraçadinha. Segurava as suas mãos e ocor­reu-lhe mesmo fazer o seguinte: dar-lhe um tapinha no rosto. Engraçadinha chorava ainda. Ao mesmo tempo que falava, o juiz fazia a si mesmo a pergunta: “Dou-lhe ou não o tapinha?” Um gesto dessa natureza seria de uma inefável intimidade.
Diz, baixo:
— Olha pra mim, olha.
E ela:
— Estou olhando.
Com a garganta contraída, pergunta:
— Acredita em mim?
— Por quê?
— Acredita?
Baixa a vista:
— Sim.
Dr. Odorico respira fundo, ao mesmo tempo que puxa o lenço do bolsinho de cima (fino e perfumado):
— Tome. Enxugue essas lágrimas. Enxugue.
Ao vê-la assoar-se no lenço emprestado, experimentou um prazer agudíssimo. Inflamou-se:
— Eu tenho um defeito, Engraçadinha. Sou sincero, muito sincero — pausa e acrescenta, pigarreando: — Não sou homem de ter uma opinião no bolso e outra na lapela.
Essa frase, que lhe parecia um primor, ele a ouvira do jornalista Oto Lara Resende. Ainda agora, ao mesmo tempo que usava o dito do amigo, pensava, numa admiração tocante: “O Oto tem um bom português! Um português de primeiríssi­ma!” E acrescenta para si mesmo: “Vai longe, esse rapaz! Vai longe!”
Ela devolvia-lhe o lenço:
— Agradecida.
Dr. Odorico acaba de decidir: “Esse lenço não vai pra lavadeira, nem a tiro!” Estava sentado, ergueu-se: “Boa piada essa do bolso e da lapela, digna de La Fontaine.” (Por que La Fontaine, nem ele próprio saberia dizê-lo.) Continuou:
— Olha, Engraçadinha, escuta aqui: se eu digo que salvo sua filha, acredite que... Olha pra mim, olha, e não chora! Não chora, Engraçadinha!
Deu-lhe, finalmente, o tapinha no rosto. Exulta: “Aceitou bem!” Mais animado, otimista, já achava que podia chegar ao beijo. Um beijo na face (por enquanto). Mas controlou-se: “Ainda não. Antes da geladeira, não.” Faz votos, intimamente, para que não apareça a ‘besta’ do marido (textual).
Passando as costas da mão nos olhos, Engraçadinha so­luça:
— Minha filha que, afinal de contas, nem 15 anos tem!
Dr. Odorico alteia a voz (“Tomara que não me chegue a besta do marido, nem o filho!”):
— Engraçadinha, você deixa sua filha por minha conta? Deixa?
Faz espanto:
— Como?
Esfrega as mãos:
— Escuta, eu sou juiz, Engraçadinha. Entende? E, nessa terra, o Judiciário, compreende? Digo-lhe isso sem nenhuma vaidade porque sou avesso a essas coisas, nem é do meu feitio. Mas como juiz eu posso, até, requisitar força policial.
Toma um susto:
— Pra quê?
Corrige:
— Falo em tese! Compreendeu? em tese. E, se você tem confiança em mim, sua filha está salva! Eu, como homem, Engraçadinha, e como magistrado, eu lhe dou minha palavra. Depende de você. Responda: você confia a mim a sua filha? Você me dá carta branca? Note bem: carta branca?
Olha, com uma espécie de pavor, o Dr. Odorico. Para in­timidá-la ainda mais e varrer-lhe os últimos escrúpulos, o juiz repete a frase do Oto Lara:
— Não sou homem de ter uma opinião no bolso e outra na lapela! Você dá carta branca?
Disse, contraída:
— Dou.
Por um momento, numa tumultuosa alegria, Dr. Odorico não fala. Pensa: “Ah, se o Oto Lara soubesse que uma frase dele ajudou-me a pôr abaixo os escrúpulos de uma protestante!” Está convencido, mais do que nunca, que a geladeira será a última etapa.
Começa a falar (sem dar a perceber a própria excitação):
— Ninguém pode saber do que houve, ninguém!
— Nem o pai?
Protestou, vivamente: “Muito menos o pai!” E insiste:
— Promete que não dirá a ninguém? Dá a sua palavra? Promete?
— E o meu marido?
Teve de explicar: “Ou você não percebe que outras pes­soas viriam tumultuar o caso?” Engraçadinha cede, afinal:
— Prometo.
Ergue-se o juiz. Anda de um lado para outro. Subitamente, estaca:
— A primeira providência é um exame ginecológico, o quanto antes!
Toma um susto: “Por que esse exame?” Foi taxativo:
— Claro! A menina assiste Les Amants com um rapaz, provavelmente da ‘juventude transviada’. Muito bem: sai do cinema com esse rapaz. Toma um táxi. Vá vendo, Engraçadi­nha, vá vendo! Mora em Vaz Lobo e segue a direção do Joá. Há uma presunção. Não há uma presunção? Convenhamos: há uma presunção.
Diz, perdida:
— Oh, meu Deus!
Ele, porém, sentando-se, toma entre as suas as mãos de Engraçadinha:
— Mas, olha! — e baixa a voz, de olho rútilo: — Ins­truirei os órgãos competentes para que tudo se faça em ‘se­gredo de justiça’. Sua filha será examinada não por um qual­quer mas pelo ginecologista do Estado, entende? Do Estado!
Chora de novo:
— Não sei como lhe agradecer...
Dr. Odorico interrompe:
— Tive outra idéia! Eu assistirei. Na minha qualidade de juiz, assistirei. Estarei, lá, controlando o médico e coagindo! Um ginecologista precisa sofrer, nessa hora, uma coação, uma certa coação.
Engraçadinha ergue-se. Vira-se, numa brusca cólera:
— Eu prefiro a minha filha morta...
Dr. Odorico atalha:
— Não diga isso! Pelo amor de Deus! O papel de mãe é proteger e perdoar! Reze, Engraçadinha, reze por sua filha! Reze!
Foi nesse momento que lhe ocorreu uma outra idéia. Ergue a voz nítida e vibrante:
— Rezemos, Engraçadinha! Rezemos! Eu acompanharei você!
Pela primeira vez, Dr. Odorico admitiu a hipótese da pró­pria conversão. Pensa: “Se eu me converter, talvez não precise nem comprar a geladeira. Mesmo uma Sheer Look é puxado!” Os dois estão de pé. Engraçadinha começa:
— Pai Santo e Glorioso Deus...
Repete, baixo e cavo:
— Pai Santo e Glorioso Deus...
— ...pedimos-Lhe também que Tu nos concedas o pão do espírito...
— ...o pão do espírito.

*

Senta-se na cama (levanta a cabeça num movimento ousa­do e lindo):
— Não quero morrer.
— Não?
E ela:
— Nunca mais.
Ri:
— Nem eu!
Puxa a cabeça do rapaz:
— Que tal a minha classe?
— Fabulosa!
Súbito, lembra-se do relógio de pulso: “Deixa eu ver a hora! Ih, tarde pra chuchu!” Pensa ainda: “Quase não saiu sangue!” Leleco arrasta a pequena:
— Vamos tomar banho.
A menina corre. Leleco diminui o bolero do alto-falante. No banheiro, ele pergunta:
— Quente ou frio?
— Frio mesmo.
Silene recebe o jorro quase gelado no peito, no pescoço. Vira-se para molhar as costas. Pergunta, ensaboando-se:
— Será que a gente arranja táxi?
Toma um susto: “É mesmo! Mandamos o táxi embora!” Agora que o bolero toca em surdina, ouvem melhor a discussão, lá fora. Alguém está dizendo:
— Escuta, Tinhorão! O Juscelino está seco para morrer antes de terminar o mandato!
— O Juscelino?
E o outro, numa convicção feroz:
— Olha! Não há presidente que não sonhe com os fune­rais de Chefe de Estado! Te digo: o defunto presidencial é de um exibicionismo ululante!
Leleco apanha a toalha:
— Deixa que eu te enxugo! Pode deixar: eu te enxugo!
Milhões de gotas na sua nudez. E ele tem a exclamação interior: “Eu nem me lembrava do filme!” Silene suspira:
— Estou admirada. Saiu tão pouquinho de sangue!
— Agora, vira! Vira!

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