O Dr. Odorico percebeu que, em coisa de minutos, tornara-se íntimo de Engraçadinha. Segurava as suas mãos e ocorreu-lhe mesmo fazer o seguinte: dar-lhe um tapinha no rosto. Engraçadinha chorava ainda. Ao mesmo tempo que falava, o juiz fazia a si mesmo a pergunta: “Dou-lhe ou não o tapinha?” Um gesto dessa natureza seria de uma inefável intimidade.
Diz, baixo:
— Olha pra mim, olha.
E ela:
— Estou olhando.
Com a garganta contraída, pergunta:
— Acredita em mim?
— Por quê?
— Acredita?
Baixa a vista:
— Sim.
Dr. Odorico respira fundo, ao mesmo tempo que puxa o lenço do bolsinho de cima (fino e perfumado):
— Tome. Enxugue essas lágrimas. Enxugue.
Ao vê-la assoar-se no lenço emprestado, experimentou um prazer agudíssimo. Inflamou-se:
— Eu tenho um defeito, Engraçadinha. Sou sincero, muito sincero — pausa e acrescenta, pigarreando: — Não sou homem de ter uma opinião no bolso e outra na lapela.
Essa frase, que lhe parecia um primor, ele a ouvira do jornalista Oto Lara Resende. Ainda agora, ao mesmo tempo que usava o dito do amigo, pensava, numa admiração tocante: “O Oto tem um bom português! Um português de primeiríssima!” E acrescenta para si mesmo: “Vai longe, esse rapaz! Vai longe!”
Ela devolvia-lhe o lenço:
— Agradecida.
Dr. Odorico acaba de decidir: “Esse lenço não vai pra lavadeira, nem a tiro!” Estava sentado, ergueu-se: “Boa piada essa do bolso e da lapela, digna de La Fontaine.” (Por que La Fontaine, nem ele próprio saberia dizê-lo.) Continuou:
— Olha, Engraçadinha, escuta aqui: se eu digo que salvo sua filha, acredite que... Olha pra mim, olha, e não chora! Não chora, Engraçadinha!
Deu-lhe, finalmente, o tapinha no rosto. Exulta: “Aceitou bem!” Mais animado, otimista, já achava que podia chegar ao beijo. Um beijo na face (por enquanto). Mas controlou-se: “Ainda não. Antes da geladeira, não.” Faz votos, intimamente, para que não apareça a ‘besta’ do marido (textual).
Passando as costas da mão nos olhos, Engraçadinha soluça:
— Minha filha que, afinal de contas, nem 15 anos tem!
Dr. Odorico alteia a voz (“Tomara que não me chegue a besta do marido, nem o filho!”):
— Engraçadinha, você deixa sua filha por minha conta? Deixa?
Faz espanto:
— Como?
Esfrega as mãos:
— Escuta, eu sou juiz, Engraçadinha. Entende? E, nessa terra, o Judiciário, compreende? Digo-lhe isso sem nenhuma vaidade porque sou avesso a essas coisas, nem é do meu feitio. Mas como juiz eu posso, até, requisitar força policial.
Toma um susto:
— Pra quê?
Corrige:
— Falo em tese! Compreendeu? em tese. E, se você tem confiança em mim, sua filha está salva! Eu, como homem, Engraçadinha, e como magistrado, eu lhe dou minha palavra. Depende de você. Responda: você confia a mim a sua filha? Você me dá carta branca? Note bem: carta branca?
Olha, com uma espécie de pavor, o Dr. Odorico. Para intimidá-la ainda mais e varrer-lhe os últimos escrúpulos, o juiz repete a frase do Oto Lara:
— Não sou homem de ter uma opinião no bolso e outra na lapela! Você dá carta branca?
Disse, contraída:
— Dou.
Por um momento, numa tumultuosa alegria, Dr. Odorico não fala. Pensa: “Ah, se o Oto Lara soubesse que uma frase dele ajudou-me a pôr abaixo os escrúpulos de uma protestante!” Está convencido, mais do que nunca, que a geladeira será a última etapa.
Começa a falar (sem dar a perceber a própria excitação):
— Ninguém pode saber do que houve, ninguém!
— Nem o pai?
Protestou, vivamente: “Muito menos o pai!” E insiste:
— Promete que não dirá a ninguém? Dá a sua palavra? Promete?
— E o meu marido?
Teve de explicar: “Ou você não percebe que outras pessoas viriam tumultuar o caso?” Engraçadinha cede, afinal:
— Prometo.
Ergue-se o juiz. Anda de um lado para outro. Subitamente, estaca:
— A primeira providência é um exame ginecológico, o quanto antes!
Toma um susto: “Por que esse exame?” Foi taxativo:
— Claro! A menina assiste Les Amants com um rapaz, provavelmente da ‘juventude transviada’. Muito bem: sai do cinema com esse rapaz. Toma um táxi. Vá vendo, Engraçadinha, vá vendo! Mora em Vaz Lobo e segue a direção do Joá. Há uma presunção. Não há uma presunção? Convenhamos: há uma presunção.
Diz, perdida:
— Oh, meu Deus!
Ele, porém, sentando-se, toma entre as suas as mãos de Engraçadinha:
— Mas, olha! — e baixa a voz, de olho rútilo: — Instruirei os órgãos competentes para que tudo se faça em ‘segredo de justiça’. Sua filha será examinada não por um qualquer mas pelo ginecologista do Estado, entende? Do Estado!
Chora de novo:
— Não sei como lhe agradecer...
Dr. Odorico interrompe:
— Tive outra idéia! Eu assistirei. Na minha qualidade de juiz, assistirei. Estarei, lá, controlando o médico e coagindo! Um ginecologista precisa sofrer, nessa hora, uma coação, uma certa coação.
Engraçadinha ergue-se. Vira-se, numa brusca cólera:
— Eu prefiro a minha filha morta...
Dr. Odorico atalha:
— Não diga isso! Pelo amor de Deus! O papel de mãe é proteger e perdoar! Reze, Engraçadinha, reze por sua filha! Reze!
Foi nesse momento que lhe ocorreu uma outra idéia. Ergue a voz nítida e vibrante:
— Rezemos, Engraçadinha! Rezemos! Eu acompanharei você!
Pela primeira vez, Dr. Odorico admitiu a hipótese da própria conversão. Pensa: “Se eu me converter, talvez não precise nem comprar a geladeira. Mesmo uma Sheer Look é puxado!” Os dois estão de pé. Engraçadinha começa:
— Pai Santo e Glorioso Deus...
Repete, baixo e cavo:
— Pai Santo e Glorioso Deus...
— ...pedimos-Lhe também que Tu nos concedas o pão do espírito...
— ...o pão do espírito.
*
Senta-se na cama (levanta a cabeça num movimento ousado e lindo):
— Não quero morrer.
— Não?
E ela:
— Nunca mais.
Ri:
— Nem eu!
Puxa a cabeça do rapaz:
— Que tal a minha classe?
— Fabulosa!
Súbito, lembra-se do relógio de pulso: “Deixa eu ver a hora! Ih, tarde pra chuchu!” Pensa ainda: “Quase não saiu sangue!” Leleco arrasta a pequena:
— Vamos tomar banho.
A menina corre. Leleco diminui o bolero do alto-falante. No banheiro, ele pergunta:
— Quente ou frio?
— Frio mesmo.
Silene recebe o jorro quase gelado no peito, no pescoço. Vira-se para molhar as costas. Pergunta, ensaboando-se:
— Será que a gente arranja táxi?
Toma um susto: “É mesmo! Mandamos o táxi embora!” Agora que o bolero toca em surdina, ouvem melhor a discussão, lá fora. Alguém está dizendo:
— Escuta, Tinhorão! O Juscelino está seco para morrer antes de terminar o mandato!
— O Juscelino?
E o outro, numa convicção feroz:
— Olha! Não há presidente que não sonhe com os funerais de Chefe de Estado! Te digo: o defunto presidencial é de um exibicionismo ululante!
Leleco apanha a toalha:
— Deixa que eu te enxugo! Pode deixar: eu te enxugo!
Milhões de gotas na sua nudez. E ele tem a exclamação interior: “Eu nem me lembrava do filme!” Silene suspira:
— Estou admirada. Saiu tão pouquinho de sangue!
— Agora, vira! Vira!
domingo, 25 de outubro de 2009
CAPÍTULO LIII
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