segunda-feira, 26 de outubro de 2009

CAPÍTULO LIV

Repetia, andando de um lado para outro, a frase perfeita, irretocável do Oto Lara:
— Não tenho uma opinião no bolso e outra na lapela!
Estava agitado e não era para menos. Conquistara, de golpe, a intimidade de Engraçadinha. Decide: “Em vez da ge­ladeira, a conversão!” As vantagens da conversão eram tão óbvias que não hesitou mais. Vira-se:
— Engraçadinha, hoje é dia das surpresas!
Suspira:
— Que seria de mim sem o senhor!
Tem um repelão:
— Por que ‘senhor’? Ah, tenha santa paciência, mas não aceito! Desculpe, mas...
Ela corrige, entre risonha e acanhada:
— Você.
E o Dr. Odorico, exultante:
— Agora, sim! Entre amigos, já sabe! E eu creio, Engra­çadinha, que sou seu amigo. Não sou seu amigo?
Sorri, num enleio:
— Protetor.
Sempre que se emocionava, Dr. Odorico tinha a impressão de que a úlcera soltava faíscas. Ao ser chamado de ‘protetor’, sentiu como que um pisca-pisca na lesão duodenal. Insiste con­sigo mesmo: “Basta a conversão. Não precisa a geladeira.”
Começa:
— A outra surpresa é a seguinte...
Precisava dizer tudo, antes que aparecesse, como ele dizia, ou pensava, ‘um chato’. Estava realmente comovido. “Há vinte anos que desejo esta mulher.” Continua, com uma súbita e estúpida vontade de chorar (por que estúpida?):
— Que diria a minha amiga se eu, veja bem!, se eu me convertesse?
Silêncio. Tem sensação de que a úlcera despede estrelinhas. Atônita, balbucia:
— Não entendi.
Dr. Odorico sente que precisa ser mais claro e incisivo para não perder o efeito. Alteia a voz:
— Se eu abraçasse a sua religião?
— A minha?
Não parou mais. O mais espantado com a própria violên­cia e a própria sinceridade era Dr. Odorico. Ao mesmo tempo, pensava: “Eu, ao lado de Engraçadinha, no ginecologista, vendo o exame de Silene!” Prossegue, cada vez mais exaltado:
— Quero ir com você e note: levado por você, pela sua mão, à igreja que você... O exemplo de sua fé, compreende? A minha vida, ah, você não sabe o que é a minha vida! Infeliz­mente, eu não sou bem casado...
Arqueja. Diz, de si para si: “Ah, se o Oto Lara estivesse aqui, vendo, ouvindo! Genial a idéia de conversão, genial!” Conseguira realmente comovê-la. Andando na sala, Dr. Odorico já não se controlava. E coisa estranha! O coração estava firme: a úlcera é que, em palpitações furiosas, parecia cardíaca. Afliti­vamente, ele procurou lembrar-se de uma frase qualquer do Oto Lara sobre Religião, Fé, Deus, Infinito. Mas não lhe ocorria nada. Teve que falar por conta própria:
— O Tristão de Ataíde. É um sábio católico. Sujeito de bem, ouviu? De bem! Pois o Tristão disse que se tirassem do homem a Vida Eterna, o homem cairia de quatro, imediata­mente!
Parou um momento para tomar fôlego. Continua:
— Entende, Engraçadinha? É a vida eterna que impede o homem de trotar, na Avenida Presidente Vargas, montado por um Dragão da Independência! Um dragão de penacho!
Nova pausa. Transpirando, sentia-se varado de dúvidas. Perguntava, de si para si: “Foi mesmo o Tristão quem disse isso?” E olhando para o alto não entendia o S. Jorge numa sala de protestante. Quase que lhe escapa a pergunta: “Que faz o S. Jorge aqui?” Sempre ouvira dizer que aquela era uma religião sem santos.
Como um esgar de choro (estava realmente quase reben­tando em soluços):
— Você me ensina a rezar? Ensina a ter fé? Ensina a acre­ditar em Deus?
Não lhe saía da cabeça a cena do ginecologista: ele, Engraçadinha e Silene no médico. Imaginava a própria atitude, de uma correção implacável, a face hirta, o olhar gelado, o comportamento quase inumano. Dr. Odorico disse, ainda:
— Você aceita esta missão?
A úlcera estava tão ativa que, ao sair dali, teria de tomar Neutralon com beladona. Engraçadinha responde, erguendo a fronte:
— Aceito.

*

Tomara banho, mas sem molhar os cabelos, claro. Agora, diante do espelho, puxava o fecho ecler da saia. Leleco empres­ta-lhe o pente. De lado, beijando-a no pescoço, sopra:
— Você dizendo palavrão é um estourinho!
Silene passa o pente no cabelo de um castanho macio e dourado:
— Chama o táxi!
— É mesmo!
Bate a campainha chamando o garçom. Junto da janela, a discussão está a um milímetro do tapa. O Vidal é um sangui­nário jucundo:
— Olha! Quando começar a nossa boliviana...
— O brasileiro não tem vergonha! É um povo sem ver­gonha!
O Vidal teima, num ódio alegre, numa fúria sadia:
— Escuta! Escuta! Posso falar? Bem: quando houver a boliviana, eu seguro o Schmidt! Seguro e...
Protestaram:
— Quando houver a boliviana, o Schmidt está longe!
Vidal solta palavrões, a torto e a direito. Dão-lhe final­mente a palavra. E ele:
— Eu, tomem nota, eu penduro o Schmidt no primeiro poste!
Alguém protesta:
— Mas oh animal! Ninguém pendura o Schmidt! O Sch­midt é que... Schmidt passa qualquer Revolução na cara! Se houver uma boliviana, o primeiro sujeito a saquear o Disco é o Schmidt! O primeiro sujeito a saquear-se a si mesmo é o Schmidt! Vocês viram o Schmidt na televisão? Não viram? O Schmidt falando em ‘objetividade’?
Um terceiro rosna:
— Objetividade é amarelinha no bolso!
No quarto, o garçom bate na porta. Leleco abre com a pergunta:
— Chegou?
— Não tem.
— Táxi?
— Nenhum no ponto.
Vira-se para Silene:
— Não tem táxi, Silene.
Assusta-se.
— E agora?
Leleco coça a cabeça: “Pois é.” Pergunta ao garçom:
— Mas não há um jeito? Ou há? Há um jeito?
O garçom vacila:
— Só se eu falar com o Tinhorão. Conhece o Tinhorão? Não conhece? O jornalista? Posso falar com o Tinhorão. Vai sair agora e... O único que pode dar uma carona é o Tinhorão. Falo?
— Fala.
Sai o garçom. Silene tem medo: “Espeto! Espeto!” Pensa em Durval. “Vavá me mata!” No parque, estão dizendo:
— Você não sabe a melhor do Edmundo da Luz Pinto.

*

O garçom leva o Tinhorão do grupo:
— Escuta: tem um casal assim, assim, que está sem con­dução e...
— Dou carona! Mas vem cá: e a menina? Sabe o nome? Sim, o nome da cara?
— Silene.
Tinhorão apanha o caderninho, que era a sua lista sexual-telefônica. Acrescentou um na relação de 237 nomes femininos: Silene. Pergunta: “Branca?” O garçom confirma e ele põe, ao lado de ‘Silene’, entre parênteses, a indicação: ‘branca’. Em­bolsa o caderninho, com o olho rútilo.
O Vidal conta:
— Ouve essa do Edmundo da Luz Pinto que é boa! Essa é ‘boazinha’! Um dia, estão o Edmundo e o Schmidt numa esquina e vem um enterro de luxo. Coroas pra burro, coche de penacho, o diabo a quatro. Então, o Edmundo cutuca o Schmidt: “Estás com inveja do defunto, hem?” O Schmidt ficou besta com a piada. Contou pra todo o mundo. Admiração na­cional!
— E daí?
Vidal conclui, exultante:
— A piada não era do Edmundo, era do Eça! Do Eça de Queirós! Carta do Fradique ao Bento! Como o Schmidt não leu o Fradique, ninguém sabe que o Edmundo da Luz Pinto mama espírito no Eça! O brilho não é dele, é do Eça!

*

Quando Leleco e Silene apareceram (ele mais encabulado do que ela), o Tinhorão fez o convite:
— Pode vir na frente.
Silene sorri:
— Dá?
— E sobra!
Leleco deixa Silene passar, e entra, em seguida. “Que lata velha horrorosa!” foi o comentário interior da menina. Pergunta a si mesma: “Será que vou apanhar barriga?” É que não entendia que tivesse sangrado tão pouco. Outras têm hemorra­gia. Leleco quer explicar que não havia táxi no ponto. Tinhorão, que era homem das intimidades súbitas, vira-se para Silene:— Quer que eu te arranje uma capa no Cruzeiro? Eu te arranjo. Quer? No Cruzeiro?

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