terça-feira, 27 de outubro de 2009

CAPITULO LV

Silene não entende:
— Capa da onde?
— Cruzeiro.
E ela:
— Cruzeiro?
— Ou Manchete.
A menina riu:
— Quem sou eu?
Mas o Tinhorão, puxando a lata velha, insiste (tem no olhar e no sorriso uma doçura cândida e pungente):
— Te arranjo, sim, batata!
— No Cruzeiro?
Leleco mete-se na conversa:
— Prefiro a Manchete.
Já a menina, umedecendo os lábios, quer saber:
— Mas escuta! Pra sair na capa do Cruzeiro não tem que pagar?
Tinhorão larga um bonito riso de criança (conservava uns restos de infância, apesar da idade e da experiência amorosa, farta e atribulada):
— Depende. Mas é que eu me dou lá. Conhece o Acioli?
— Como é o nome todo?
O automóvel fazia, na estrada, realmente um alarido de lata velha. Vinha do mar o silêncio das ilhas. Tinhorão exulta (uma presença de mulher, sem distinção de cor ou de idade, dava-lhe uma sensação de plenitude total). Silene pergunta:
— Acioli não é um que...
Tinhorão interrompe:
— O Acioli é o diretor do Cruzeiro. E olha: mando no Acioli! É meu! — e repetiu, numa euforia de propriedade: — Meu!
Novamente, Leleco atalha:
— O Acioli não mora ali, acho que em Professor Gabizo? Não mora?
Tinhorão não respondeu, nem ouviu. Ao lado de uma mu­lher tinha a capacidade de se meter numa dessas solidões maci­ças e inexpugnáveis. Naquele momento, só ele e Silene existiam como se fossem o único casal da Terra. Explica:
— Também conheço o Justino, o Justino da Manchete. Falo com o Justino, ou com o Acioli. Um dos dois. Com o Acioli é melhor.
Silene sonha:
— Com o Acioli.
E ele:
— Lá precisam de capas bonitas. Eu te levo... Quer que eu te leve? Eu te levo.
A pequena bate na mesma tecla: “Não se paga nada, nada?” O rapaz continua:
— ...te levo, tira-se umas oito, dez fotografias, pra se escolher. Em cores.
— Cores?
— Pois é. Você é bonita...
— Sou, é?
Tinhorão baixa a voz:
— Você xinga! — e alteia a voz: — Olha: sai uma capa bacanérrima.
Meses atrás, Tinhorão lera uma história não sei de quem. O personagem conquistava todo o mundo prometendo uma capa ou do Cruzeiro ou da Manchete. Tinhorão passou a fazer o mesmo na vida real. Verificou, desde a primeira tentativa, o seguinte: o expediente da ficção era irresistível e fatal. E a capa utópica, inverossímil, inexeqüível ia varando as virtudes mais compactas. Afirmava, com a sua candura terrível: “Está pra nascer a mulher que resista a uma capa do Cruzeiro ou da Manchete.”
Saindo da Avenida Niemeyer, ele faz a pergunta:
— Combinado?
Silene molha os lábios com a língua:
— Batata!
E Tinhorão:
— Qual é teu telefone?
— Não tenho!
— Mas o vizinho tem! Dá o do vizinho.
Decide:
— Escuta, vamos fazer o seguinte. É melhor, ouviu? Tele­fono pra você. Está bem assim? Telefono e pronto.
Tinhorão vacila, ri:
— O diabo é que... Não é por nada, não. Mas sabe como é jornal. Todo telefonema de mulher o sujeito canta.
Silene solta um riso áspero e falso:
— Eu não ligo. Pode deixar. Diz o número.
Tinhorão respira fundo: “Está no papo.” Dita o telefone do jornal. Silene já tirara o lápis e o papelzinho da pasta. Es­creve o número. O rapaz avisa:
— Manda chamar o Tinhorão.
Ergue o rosto:
— Apelido?
— Nome.
E ela, guardando o lápis:
— Gozado.
Silene só não entendia aquele carro que, no momento, atravessava a Avenida Atlântica, aos trancos e barrancos. Se ele conhecia o Acioli, o Justino; se escolhia capas do Cruzeiro e da Manchete, como é que... Tinhorão estava dizendo:
— Lá eu sou copy desk.
— Não ouvi. Como é?
Repete, numa felicidade contínua, ininterrupta, que o afo­gava:
— Copy desk. É o sujeito que corrige o que os outros escrevem.
— Quer dizer que você sabe português pra chuchu?
— Às vezes.
Ela pensa: “Esse carro é que não me entra.” E, no entan­to, o Tinhorão era assim. Sua preferência pelos carros velhos, anteriores aos Fords de bigode, era algo de atroz como certas fixações sexuais. Os amigos falavam em tara. Tinhorão não se dava por achado. Estava mesmo disposto a admitir a tara como tal. Tinha dois ou três dentes destacados como um coelhinho de desenho animado. E ria, com imenso sarcasmo, com triun­fal desprezo, dos carros novos, último tipo.
Ah, ele conhecia garagens semi-enterradas. Ia lá e, com um faro genial, descobria e exumava autênticas preciosidades retrospectivas. Com fanática paciência e meticuloso amor, re­constituía os carros em decomposição; dava-lhes vida. Pagava ao dono do ferro-velho e, contraído de volúpia, invadia o trá­fego com imenso escarcéu. Todo mundo pasmava para essa carroça e esse motor arrancados de uma lúgubre pré-história automobilística. Perguntavam:
— Que marca é essa?
Dizia um nome qualquer. Era uma dessas marcas retardatárias e sepultas.
Na Cinelândia, Silene avisa:
— Olha! Nós saltamos aqui!
Trava, encosta no meio-fio. Ainda pergunta:
— Você mora onde?
— Vaz Lobo.
A distância não lhe metia medo. E, de resto, dar carona era, nele, uma espécie de vocação, destino, sei lá. Enchia de amigos, conhecidos e, até desconhecidos os seus carros ignominiosos. Oferece:
— Eu te levo lá!
Mostrava à menina os seus dois ou três dentes saltados, num riso bom de coelho. Mas o passageiro de tal veículo era um humilhado, um ofendido. Silene queria ver-se livre, o quanto antes. Agradeceu. Salta com Leleco. Tinhorão lembra:
— Não deixa de telefonar.
Dá um adeuzinho:
— Telefono, sim.
Leleco ainda enfia a cabeça:
— Obrigado, meu chapa.

*

Quando Silene aparece e vê, lá, o Dr. Odorico toma um susto. Engraçadinha ergue-se:
— São horas?
Silene aperta a mão do juiz. Ao mesmo tempo, está pen­sando: “Quase não sangrou!” Põe a pasta em cima do aparador; vira-se para Engraçadinha:
— Essa condução, mamãe, caso sério!
Pouco antes, Dr. Odorico e Engraçadinha haviam combi­nado tudo. Ele estava cada vez mais convencido de que, até então, só vegetara: “Agora sim é que eu começo a viver.” Na sua euforia de convertido estendera as duas mãos para Engra­çadinha, como se esta pudesse dar-lhe, materialmente, num embrulho, a Vida Eterna. Quanto a Silene, Engraçadinha queria falar-lhe, encostá-la na parede. Dr. Odorico opôs-se:
— Não adianta. Pode crer: não adianta. Eu entendo disso. É quase meu métier. Escuta, Engraçadinha: a primeira tendên­cia de uma menina, nessas condições, qual é? Negar. Ela só confessa na hipótese ou de uma gravidez ou de um aborto mal-sucedido. Afinal, certas hemorragias não se escondem.
Eis o que ele propunha: “Primeiro, leva-se a menina a um ginecologista particular. De confiança ou por outra: de relativa confiança. Claro que um ginecologista é, afinal, um homem como outro qualquer... Por isso mesmo, estarei lá, firme!”
Com um enleio quase imperceptível, Engraçadinha arrisca: “Mas você vai entrar?” Numa ênfase larga, que a envolveu e desconcertou, foi taxativo:
— Pois claro! É como se fosse filha minha, entende? De mais a mais, a acompanhante feminina é antipsicológico. Outra mulher aumenta, é uma hipótese, mas pode aumentar a excita­ção! Ao passo que um homem, e eu serei uma espécie de pai de Silene, o homem impõe!
Ele pensava: “Ah, que coisa linda falar de exame ginecológico com Engraçadinha! Isso é terrível.” Foi nesse momento que Silene entrou. Dr. Odorico levanta-se e apanha o chapéu:
— Já vou.
De passagem, dá um tapinha na face de Silene: “Adeus, menina!” No portão, despede-se de Engraçadinha:
— Lembranças — e baixa a voz: — Combino tudo com o ginecologista e, ao meio-dia, espero seu telefonema.
Parte. Leva a decisão tomada: “Apesar da conversão, dou a geladeira.” Engraçadinha volta. Passa pela filha, sem uma palavra. Entra no quarto, fecha a porta a chave. Agora, apanha no gavetão a calcinha de nylon, que arrancara da menina. Por um momento, ficou em pé, no meio do quarto, imóvel. Tem uma brusca tentação. Rapidamente — e com uma sensação de crime — troca as duas pecinhas. Põe a da filha. Lentamente, aproxima-se do espelho. Levanta a saia e, pela primeira vez, vê o efeito do nylon na sua carne. Diz, trincando os dentes, para a própria imagem:
— A mulher que usa isso é uma prostituta!

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