sábado, 31 de outubro de 2009

CAPÍTULO LIX

Zózimo quis segurá-la:
— Vem cá!
E ela, recuando ligeiramente:
— Não me toque!
Engraçadinha pensa, desesperada: “Não tenho direito de odiá-lo. É meu marido. Está bêbedo, mas é meu marido.” Olha-o com uma curiosidade nova e atônita, como se o visse pela primeira vez. “É meu marido”, repete para si mesma.
Zózimo balbucia:
— Sou teu marido!
Silêncio. Ela não se contém:
— Bêbedo!
E ele:
— Mas sou teu marido!
Engraçadinha vira o rosto:
— Fala, mas de longe!
Nada a exasperava mais que o bafo de bebida ordinária. “Cachaça!”, foi seu ódio. Zózimo apóia-se no guarda-roupa:
— Olha! Eu bebi, sim, eu bebo, porque... Olha pra mim, sua!
Pausa. Tem um riso estrangulado:
— Você sabe por que é que eu bebo. Sabe, não sabe? Fala. Sabe?
Chora:
— Cala a boca!
Prosseguiu, na sua tenacidade obtusa de bêbedo:
— Eu bebo, você sabe, bebo porque nunca vi minha mu­lher nua. É ou não é? Confessa. Alguma vez te vi nua?
Disse, quase sem voz:
— Não respondo.
Teria vontade de gritar: “Escuta, Zózimo, escuta: tenho nojo de ti! Sabes o que é nojo? É o que sinto!” Estavam casa­dos há vinte anos, talvez mais. Jamais, em momento nenhum, desejara esse homem. Não lhe devia um único instante de prazer. “Certos maridos fazem a esposa odiar o sexo”, eis o que ela pensava por outras palavras.
Ele arquejava:
— Mas hoje, ouviu?, eu acho que tenho o direito... Sou teu marido. O marido pode ver a mulher nua...
De olhos fechados, Engraçadinha começa, em voz baixa, mas nítida:
— Pai Santo e Glorioso Deus...
Zózimo explode:
— Não sou teu marido?
Diz, cortante:
— Você está bêbedo! — e continua: — Pai Santo e Glo­rioso Deus... Não me segura! Tira a mão! — prossegue, er­guendo a fronte: — Pai Glorioso...
E ele, falando, ao mesmo tempo:
— Pra te ver nua eu tive que olhar pelo buraco da fe­chadura!
Engraçadinha baixa, agora, a cabeça:
— ...pedimos, oh Senhor! Pedimos, também, que tu nos concedas o pão...
O marido tem uma cólera exultante:
— Mas olha! Escuta! Pára, com essa reza! Uma vez, pelo menos uma vez, escuta: uma vez eu te vi nua! Ou não foi? Foi! Aquela vez!
Engraçadinha alteia ligeiramente a voz:
— ...nos conceda o Pão do Espírito!
Zózimo a segura pelo braço:
— Quando eu falar, presta atenção! Eu sou o marido...
Puxa o braço:
— Bêbedo não é marido de ninguém! — muda de tom: — Pai Santo, Glorioso Deus!
Ela ia dizer-lhe que não ouvia uma única de suas palavras ou por outra: que apenas ouvia a própria oração. Zózimo ri, sórdido:
— Naquele dia do buraco da fechadura, naquele dia...
Perdia-se em repetições. Prosseguiu:
— Naquele dia, eu vi você... Você ficou de frente para o buraco da fechadura... Enxugou-se de frente para o buraco da fechadura... Enxugou-se, eu vi... Você se enxugando, eu vi!
Engraçadinha perde a cabeça:
— Seu indecente!
Avança para ela:
— Tira tudo... Tira a roupa... Agora!
Ela foge com o corpo e, fora de si, o esbofeteia:
— Bêbedo!
Recua, cambaleando:
— Engraçadinha!
Encostando-se no espelho, a mulher pensa: “Esbofeteei meu marido!” Chora de raiva, de vergonha, de remorso. E, súbito, o marido cai de joelhos. Abraçado às suas pernas, solu­ça a sua dor de bêbedo:
— Meu amorzinho!
A mulher não faz um gesto, não diz uma palavra. Está hirta de nojo.

*

Bob e Cabeça de Ovo saem do elevador e, por um mo­mento, ficam, junto à porta, escutando. Cabeça de Ovo arrisca:
— Parece que o Leleco topou.
Bob enfia a chave:
— Pelo jeito, parece.
Abrem a porta. No banheiro, Leleco diz para si mesmo: “Cadelão morreu. Eu matei. Sou assassino. Morreu. Vai ser enterrado.” Repete, no seu espanto: “Cadelão morreu.” Toda­via, o que há, nele, mais do que a dor e o medo, é o espanto. Aperta a cabeça entre as mãos: “Eu não sou assassino.” Sente, no mais profundo de si mesmo, que não mataria ninguém. Não é mau: “Eu sou bom”, pensa. Quando Silene soubesse, quando a mãe, a mãe, todos soubessem.
Bob entra e, logo, estaca. O Cabeça de Ovo, que vinha em seguida, esbarra nas suas costas. Bob tem um gemido:
— Cabeça de Ovo!
O outro olha por cima do seu ombro: .
— Meu Deus!
Por um momento, não se mexem. No banheiro, Leleco imagina: “Eles vêm aqui, já, já. Vão me encontrar aqui e...” Bob e Cabeça de Ovo avançam alguns passos. De olhos semi-abertos, em cima do próprio sangue, Cadelão tem, no rosto, uma espantosa doçura.
Cabeça de Ovo balbucia:
— Morto?
E Bob:
— Morto.
O canivete está no chão, ao lado. Bob recua, puxando o outro:
— Vamos embora.
Recuam, de frente para o cadáver. Cabeça de Ovo per­gunta:
— Foi Leleco?
— Sei lá.
— Mas só pode ser o Leleco.
— Vamos embora.
Fecham a porta. Sem rumor, descem, pelas escadas dois andares. Só então chamam o elevador. Lívido, Cabeça de Ovo diz:
— Não temos nada com isso!
— Vai dar o maior galho!
O elevador pára. Entram. Antes de chegar ao térreo, Bob vira-se para o companheiro. Pensa: “Foi o maior fora que eu dei. Por que é que eu topei esse troço? Sou uma besta.” Agarra o Cabeça de Ovo:
— Vamos voltar?
O outro recua:
— Pra lá?
— Vamos?
Esbraveja:
— Está de porre?
Bob quer explicar:
— Escuta, deixa eu falar! Olha: a gente pode...
O elevador chegava ao andar térreo. Bob aperta o botão do nono andar. Felizmente, ninguém esperava o elevador. Fu­rioso, Cabeça de Ovo empurra Bob: “Subir pra quê?” Nova­mente, Bob tenta explicar:
— Tenho uma idéia, ouviu? Uma big idéia. Escuta, rapaz!
— Temos que dar no pé!
— Primeiro, ouve.
Naquele momento, Leleco saía do banheiro. “Não olho”, pensava. “Passo sem olhar.” Não queria ver o morto nunca mais. Rente à parede, de costas para o cadáver, aproximava-se da porta. Lembrava-se do pacto de morte falhado, no Bar do Pepino. Ele podia estar morto, lado a lado de Silene. Mortos os dois e abraçados. Quietos na morte para sempre. Ele não seria assassino. “Os dois mortos numa cama do Bar do Pe­pino.” Silene morta e linda, morta e nua. “Silene nuazinha!” A virgindade ferida de Silene. Mas não seria assassino.
Quase ao chegar à porta, estaca. “Mas eu ainda podia morrer.” Se morresse, não seria mais assassino. Não pensaria mais em Cadelão; imagina:
— Posso correr até a janela e me jogar de lá.
Não queria, porém, passar pelo cadáver, perto do cadáver. Súbito, tem uma outra idéia: atirar-se dos fundos do aparta­mento e cair no pátio interno do edifício. Nunca mais ver Si­lene. Morrer.

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