domingo, 1 de novembro de 2009

CAPÍTULO LX

Estava rente à parede, de costas para o cadáver. Balbu­ciou, para si mesmo: “Silene.” Repetiu: “Silene.” Lembrou-se da menina aos cinco, seis anos, correndo na calçada e já com um brilho atrevido no olhar (as pernas e coxas tão bem feitas). Vira — há muitos anos — D. Engraçadinha ralhar:
— Senta direito, menina! Você tem um modo muito feio de sentar. Fecha as pernas, anda, fecha as pernas’! Mas que menina!
Leleco, quatro anos mais velho, taludo, já gostava da garota. E não se esquecia de uma vez, em que Silene subira na goiabeira e ele, de baixo, a garganta apertada, olhava para cima. Do alto, Silene ria bonito:
— Pode olhar, que eu estou de calça!
E agora, que era assassino — acabara de matar —, ele sentia uma brusca e desesperadora solidão de Silene. Estar sem ela, era estar tão só! Ah, se pudesse, chegaria à janela. Lá, gritaria seu nome, até ver seu nome perdido no fundo da noite:
— Silene!
“Não quero morrer”, disse para si mesmo. Naquele dia, acontecera tanto, ou antes: naquele dia, acontecera tudo. Re­cusara a morte duas vezes — no Bar do Pepino e, agora, no apartamento; pela primeira vez, possuíra uma mulher (o psi­quiatra ia bater-lhe nas costas: “Eu não disse?”); e matara um homem. “Eu não me mato”, repete. Morreria com Silene e não sozinho. Talvez se matasse, mas depois de vê-la uma última vez. Matar-se diante de Silene e aos pés de Silene. Ela gritaria ao vê-lo agonizar e morrer aos seus pés. Imaginou-se abraçado a Silene e confessando:
— Eu matei, Silene! Matei, porque eu sou homem! Ouviu, Silene? Matei para não deixar de ser homem! Sou homem, Silene!
“Ah, ser homem!” Antes, até o canivete de filme metia-lhe medo. Quando apertava a mola e via o jato da lâmina, sen­tia um misto de nojo e deslumbramento. E não mataria nin­guém, nunca. Só mataria para não deixar de ser homem.
Súbito, deflagra-se o impulso da fuga. Corre, abre a porta e sai. Por um momento, não sabe o que fazer. Há, entre ele e o cadáver — entre o assassino e a vítima —, uma porta fe­chada. Respira fundo: “Oh graças! Graças!” Cola o ouvido, como se pudesse sentir, através das portas, o rumor da morte, as palpitações do morto. Precisava descer, correr daquele edi­fício, ir para o outro lado da cidade, para que caísse entre ele e o morto a sombra de outras ruas, outros bairros, outros edifícios.
Eis o que pensa: “Se aparecer alguém agora, neste mo­mento, seja conhecido ou desconhecido. Se aparecer alguém, eu cairei de joelhos, gritando: Fui eu! Fui eu!” Então, correu para a escada e foi descendo, um a um, todos os andares. Con­tinua repetindo, para si mesmo: “Se aparecer alguém...” E, sobretudo, tinha medo de ser olhado. Se alguém o olhasse, di­ria, soluçando:
— Eu sou o assassino!
Eram quase dez horas. Chegou embaixo, sem ter encon­trado ninguém. Já no térreo, pensa: “Vou passar pelo porteiro. O porteiro vai me ver.” Ah, desejaria encontrar todas as ruas desertas, como imensos corredores gelados. Atravessa o hall do edifício e não vê ninguém. O porteiro estava no cubículo cochilando. Não o viu passar, rente à parede, quase correndo.
Na rua teve uma sensação brutal de liberdade. Sua cara se contraiu num espasmo de alegria. O cadáver ficara lá em cima, trancado, com o canivete ao lado. Ali, na rua, não há morto nenhum. Estava livre e...
Súbito, escuta a voz:
— Leleco!
Podia ter desatado a correr. Mas sentia as pernas tão bam­bas que se desse um passo cairia, irremediavelmente. Encos­tou-se à parede. Essa pessoa, cuja voz ainda não identificara, sabia, certo, que ele era assassino. “Eu me entrego. Quem quer que seja, eu me entrego.”
Estava tão indefeso e tão perdido que se entregaria a um menino, a uma criança, a uma mocinha. Pensou: “Eu fui obri­gado a matar. Eu tenho pena de Cadelão.”

*

Antes de ir para casa, Dr. Odorico passou no Largo do Machado. Ia comprar cigarros. Aliás, não tinha pressa nenhuma de chegar em casa. Nos seus desabafos interiores, gemia: “O lar é o mais cretino dos túmulos!” E admitia que fosse esta a opinião de 90% dos casais brasileiros. Daí a dois ou três anos faria as suas bodas de prata. Eis o que dizia a si mesmo, num sarcasmo secreto e inapelável: “A troco de que, eu e minha mulher, dormimos na mesma cama?” Ele a considerava, tex­tualmente, “uma víbora de túmulo de faraó”. Pagava os cigar­ros quando sente alguém bater nas suas costas:
— Como vai V. Excia.?
Vira-se e tem a alegre surpresa: era o Carlos de Oliveira, crítico literário, e um dos valores mais pujantes das novas ge­rações. Certa vez, na redação do Diário de Notícias, Dr. Odo­rico vira o rapaz identificar-se ao telefone: “É o Carlinhos!” Pareceu-lhe que um sujeito que se chama a si mesmo pelo di­minutivo é — como direi? — um passarinho. E, de fato. Carlos de Oliveira dava essa impressão de fragilidade pânica. O próprio Oto Lara espalhara, já, aos quatro ventos: “O Carlinhos é uma cambaxirra!” E sempre que via o crítico, Dr. Odorico tinha vontade de oferecer-lhe alpiste na mão. A presença do Carlos (ou, por extenso, José Carlos de Oliveira) foi uma satisfação para o juiz. Tinha um pretexto a mais para demorar-se na rua. Carlinhos chamava-o, com jovial ênfase, de ‘V. Excia.’. E perguntava:
— Ainda fuma aquele mata-rato?
Era célebre, em todo o Judiciário, a preferência do Dr. Odorico pelos cigarros fortes. Achava o fumo suave uma es­pécie de ópio de gafieira. Explicava: “Gosto de cigarro que me queime a garganta.” E, agora, depois de receber o troco do charuteiro, virava-se para o crítico:
— Tem visto o Oto?
E Carlinhos:
— Pois é. Nunca mais.
Dr. Odorico dá-lhe um tapa afetivo no braço:
— Você foi injusto com o Oto naquele artigo! Muito se­vero!
O crítico tomou-se de um alegre pânico:
— Mas não era o Oto! Absolutamente!
O juiz ria, convicto:
— Era, sim, senhor, era o Oto! Você não deu nome aos bois, mas era o Oto, oh se era!
Carlinhos teve um riso interno que o sacolejava como um liqüidificador. Tempos atrás, com efeito, o crítico escrevera um imenso artigo, no qual descrevia um sujeito que era um Rimbaud no bate-papo, um Miguel Ângelo da piada. Exaurindo-se no puro e irresponsável brilho oral, o Fulano produzia escas­samente. E, no tal artigo, o Carlinhos só faltava aconselhar que aquele gênio verbal pagasse um taquígrafo para perpetuar-lhe os bate-papos, as piadas.
Dr. Odorico insistia:
— Era o Oto! Confessa, aqui, entre nós: não era o Oto Lara? Era o Oto! Aliás, eu vou fazer também o meu venenozinho, o Oto me lembra, sabe o quê? Um cano furado.
Carlinhos recua, num fingido horror:
— Cano furado?
Então, o juiz, subitamente grave e, mesmo nervoso, ten­tou uma frase original, que vinha elaborando há 15 dias:
— Perfeitamente, cano furado! Não lhe parece que...
Eis o que, por outras palavras, ele queria dizer: assim como o cano furado esbanjava água num esguicho perdulário, assim o Oto Lara esbanjava espírito na conversa fiada. Aflito da própria originalidade, Dr. Odorico respirou fundo:
— Não lhe parece correta a analogia? Nem a água chega à torneira, nem o espírito à página impressa e perdurável. Fa­lei bem?
O juiz queria ouvir, a todo transe, a opinião de um crítico das novas gerações. Carlinhos entornou o riso pela boca. Mas a figura e o assunto Oto Lara deflagravam, nele, um sentimento de culpa. Quis saber, inesperadamente:
— Vossa Excelência vai pra Brasília ou não vai?
A pergunta, de sopetão, deu-lhe quase um susto. Puxa um pigarro: “Bem...” E pensa: “Esse negócio de Brasília é meio pau, meio chato.” Em seguida, faz uma nova e mais alar­mante reflexão: “Se eu for para Brasília, deixo Engraçadinha!” Responde:
— Depende, depende. Eu sou um soldado disciplinado. Se o Judiciário for para debaixo de uma ponte, lá estarei, firme.
Despede-se do Carlinhos. Mais do que nunca, achou que o Oto Lara tinha razão de chamar aquele rapaz (brilhante e iconoclasta) de cambaxirra. A caminho de casa gemia (“Oh, que mulher abominável a minha!”).

*

Era uma voz feminina, que ele não conhecia. Vira-se e balbucia, aterrado:
— Janet!
E ela (tão linda e tão doce):
— Está doente? Tão pálido!
Leleco conhecia Janet há anos. Sempre que a via pensava: “Se não existisse Silene, o meu amor seria Janet.” E não en­tendia por que ela o chamava no momento em que ele se fizera assassino. Por um instante, não diz nada. Se falasse, reben­taria em soluços.
Ela pergunta, ainda:
— Mas está sentindo alguma coisa?
E o rapaz, com um esgar de choro:
— Janet, eu... Realmente, eu...
Decide: “Vou dizer tudo. Janet vai ter pena de mim. Já sinto que tem pena de mim.” Naquele momento, a ternura in­quieta e instintiva de Janet foi para ele o mais lindo e desesperador bem na Terra.

Nenhum comentário: