sexta-feira, 30 de outubro de 2009

CAPÍTULO LVIII

Assim era Cadelão, um misto de força maciça e de agili­dade, digamos assim, incorpórea. Sabia judô, praticava alterofilismo, nadava e, dois anos atrás, tirara o título de ‘melhor físico de 1957’. Ele próprio dizia (tinha o riso curto, ofegante), dizia: “Duvido que algum cara saia de uma gravata minha!” Não exagerava, ah não. Usava camisa de manga curta, numa ostentação de antebraços de pedra ou de ferro.
Deu a gravata brutal. Leleco teve uma sensação de verti­gem. Cadelão trinca o riso:
— Sim ou não?
A voz saiu estrangulada:
— Sim.
O outro afrouxou, ligeiramente, a gravata. Leleco tirou o canivete de filme. Costumava brincar com aquilo. Apertava uma mola, e havia, então, o jato da lâmina. Os conhecidos da Praça Saenz Peña riam: “Você não é de nada!” O próprio Le­leco reconhecia, para si mesmo: “Eu não mato ninguém!” O canivete, ou pen-knife, servia-lhe de enfeite ou brinquedo (ao mesmo tempo, uma arma no bolso dava-lhe uma ilusão de segu­rança e de poder).
Se Cadelão apertasse um pouquinho mais a gravata, Le­leco teria perdido os sentidos. Mas era tão mais forte que não se lembrou do canivete. E mal sentiu a penetração macia, quase indolor. Estava ferido de morte e não sabia.
Súbito, sente a vista turva. Larga Leleco, com a exclama­ção interior: “Ué!” Olha para baixo e passa a mão no ventre. Leleco dá dois passos atrás. Antes do medo, Cadelão tem o espanto. Arranca da própria carne a lâmina cravada tão fundo. Cambaleando, deixa cair o canivete.
Diz, sem desfitá-lo:
— Você...
Cai de joelhos. Põe a mão sobre a ferida. No seu assom­bro, vê o sangue escorrer por entre os dedos. Tem o lamento:
— Você me matou, Leleco!
Entre uma faixa e outra, o long-play alucinante faz um silêncio. Leleco aproxima-se, lentamente. Assombrava-o que alguém pudesse ter tanto sangue. Começa, chorando:
— Eu não queria e foi você que...
O outro, sempre com a mão no ventre — a mão ensopada de sangue —, deita-se, agora, no soalho. Leleco curva-se:
— Você queria me forçar no dia em que eu... Hoje, eu fui homem, Cadelão... Ela foi toda minha e talvez esteja grá­vida... Eu sou homem!
Repetiu, com uma violenta nostalgia da vida (há, o medo de ser enterrado!):
— Você me matou, Leleco!
E o outro, chorando:
— Vou chamar a assistência!
Agarra-o:
— Não! Pelo amor de Deus! Fica comigo! Não me deixe!
Leleco está de joelhos:
— É um instantinho só!
O outro segura-o com a mão livre:
— Não quero ficar só... Você me matou, Leleco, oh Leleco, você me matou...
Tem que berrar mais alto que a vitrola:
— Eu chamo a assistência!
Pede, ainda:
— Não. Assistência, não... Fica aqui...
Sua voz está mais pesada. Fora de si, Leleco atira-se contra a vitrola e corta o som. Estava tão saturado de barulho que o brusco silêncio foi, por um momento, ensurdecedor. Volta para junto do ferido.
Cadelão fala sem ódio, com uma doçura de menino:
— Diz a meu irmão, meu irmão... Diz... Meu irmão... Diz, Leleco...
A voz lhe foge, ele não pode completar uma frase. Leleco está com o ouvido quase encostado na sua boca. Novo esforço:
— Diz ao mano... Ao mano... Que eu mandei pedir perdão...
Leleco agarra-se:
— Escuta! Eu quero me casar... Ouviu, Cadelão? Eu vou ficar noivo e escuta aqui: está me ouvindo? Você me ouve, Cadelão? Mas olha: eu não podia, logo hoje, justamente hoje, eu não podia, você está ouvindo?
O ferido ainda respirava. Mas a agonia fechara sobre ele uma solidão tão intensa que nada, que ninguém poderia romper. Leleco agarrou-o pelos cabelos; fala, rosto com rosto:
— Eu não quero que você morra! Você está me ouvindo, Cadelão? Eu não quero que você morra! Eu não posso ser assassino! Eu não sou assassino... Não morre, Cadelão!
Pára. Espia a cara do amigo. O moribundo tomava uma expressão de paz, de gelada serenidade. Estupefato, Leleco vê que a cabeça do rapaz tomba, docemente. Levanta-se e recua:
— Morreu — diz, baixo, para si mesmo.
Ainda não sofre, ainda não começou a sofrer. Pensa: “Eu sou assassino.” Experimenta a necessidade de repetir, em voz alta:
— Eu sou assassino. Eu matei. Eu sou assassino.
A própria voz pareceu-lhe de outra pessoa. Continua, de si para si: “Se eu não matasse...” Recua; encostado à parede, decide: “Eu não vou olhar mais para lá, não quero!” Pensa ainda: “Se eu não matasse, ele...” Tinha nos ouvidos a voz do psiquiatra: “Essa inibição passa. Passa. Pode crer que passa.”
Lembrava-se, ao mesmo tempo, do banheiro do Bar do Pepino. Silene nua e molhada; ele passando, nas suas costas, a toalha grande e felpuda. E a virgindade tênue, rósea, translúcida. “Logo no dia em que eu, pela primeira vez...” Diz alto:
— Eu não fui culpado de nada!
Nesse momento, sente que o elevador parara no andar. Pergunta: “Será que é pra cá?” Alguém introduz a chave na fechadura. Corre para o banheiro. “Vão descobrir! Vão me prender!” Mas coisa curiosa! O medo desaparecera no fundo do seu ser até o último vestígio. Por um momento, sua vontade foi de abrir a porta, ele mesmo, e entregar-se. Imaginou-se erguendo os braços:
— Prendam-me! Eu sou o assassino!

*

Bob e o Cabeça de Ovo desceram e caminharam, lenta­mente, até a esquina. Bob cospe o fósforo que estava mascando:
— Por essas e outras é que o Cadelão me chateia!
Cabeça de Ovo apanha um cigarro:
— Chato, sim!
E o outro:
— Pois é. Quando ele me chamou, disse que era só pra ver, pra assistir. Eu estou pensando que o Leleco ia topar. Vocês não dizem que o Leleco não é homem, que não sei o quê? Olha aí. Homem pra burro!
Entram no bar da esquina. Ocupam uma mesa dos fundos. Pedem cerveja e Bob explica:
— Com mulher eu topo tudo. Mas o Cadelão tem essa mania...
Chega o garçom com a cerveja e os dois copos. Bob pros­segue:
— Não pode ver um menino mais jeitoso. Até aí, vá lá. Mas o Leleco, que diabo! O Leleco, não! Anda com a gente e por quê, pra quê?
Bebem em silêncio a cerveja. Por fim, o Cabeça de Ovo bufa:
— E se, naquela hora, o Leleco se joga lá de cima?

*

Antes de dormir, Engraçadinha veio falar com Silene, na sala (Zózimo ainda não chegara). A menina estava em cima do caderno, fazendo os deveres do dia seguinte. Engraçadinha avisa:
— Olha: amanhã, já sabe, você não vai à aula.
— Por quê?
E ela:
— Você vai sair comigo.
Deu muxoxo:
— Oh mamãe! Logo amanhã que...
— Sossega. Preciso de você. Fica quietinha.
Volta para o quarto. Silene fazia questão de ir à aula no dia seguinte para contar tudo a Vanda. Imaginava: “A Vanda vai cair de cara no chão!” Apanha os caderno e boceja. Já que não vai à aula, decide: “Vou dormir. Faço o resto amanhã.” Ia mentir para Vanda, inventar uma hemorragia. Nesse mo­mento, aparece Durval e, logo em seguida, Zózimo. O pai foi direto para o quarto.
Durval tira o paletó:
— Procurei o Leleco. Sabe que... Fiquei com pena, coi­tado! Não gosto de humilhar ninguém e... Mas amanhã falo com ele. Só quero que ele não se meta com você.
Ela sorri, muito doce e muito linda:
— Você acha que eu vou dar confiança a Leleco? Tem dó!
Zózimo entra no quarto. Fecha a porta a chave. Diante da penteadeira, Engraçadinha arruma o cabelo. O marido apro­xima-se. Anda arrastando os pés, pesadamente, como um escafandro. Pára diante da mulher e inclina-se sobre ela:
— Querida, hoje, vamos fazer amorzinho, vamos?
Engraçadinha ergue-se, insultada:
— Você bebeu! Chega pra lá!
Aquilo doeu-lhe na carne e na alma:
— Você me enxota? Afinal, sou ou não sou seu marido?
Tem um esgar de nojo: “Álcool puro!” E ele, rouco:
— Bêbedo ou não, sou teu marido. E olha: acabou esse negócio de luz apagada! Quero te ver nua pela primeira vez, nua!

Nenhum comentário: