No lotação, fez a viagem pensando, ora em Engraçadinha, ora no corregedor. Pode parecer estranho, mas havia, entre dois seres tão dessemelhantes, uma relação nítida e taxativa. Como todo o homem que se joga todo num amor, o Dr. Odorico passou a levar mais em conta certos valores da vida, tais como o Poder, a Glória, o Dinheiro. Gostaria de depositar aos pés da bem-amada esses bens consideráveis do mundo. E, justamente, o corregedor (“a besta do corregedor”, como ele dizia) era um pesado entrave na sua carreira. Na altura de Ramos, e recebendo aquele cheiro de mar podre, esbravejou: “Eu já podia ser desembargador!” Imaginava que, como desembargador, teria maior autoridade para derrubar os escrúpulos de Engraçadinha. Parecia-lhe fora de dúvida que, entre um juiz e um desembargador, qualquer mulher preferiria este último. “A mulher é mercenária.” Sem sentir e sem saber, está sempre se vendendo por alguma coisa: ou posição, ou glória, ou dinheiro. Quando o lotação entrou na Presidente Vargas, rumo à Candelária, o ódio contra o corregedor atingia o máximo da violência e da malignidade. Pensou: “Desde que esse cara começou de marcação comigo, eu nunca mais dei uma dentro.” E decide: “Eu tenho que ser desembargador de qualquer maneira.” Foi ao descer na Candelária que teve, subitamente, a idéia:
— E se eu telefonar para o Wilson Figueiredo?
Geralmente, ele gostava de parecer desprendido de certas vaidades. Fazia mesmo alarde de sua modéstia e repetia muito, como aquele personagem de Dickens: “Eu sou humilde, muito humilde!” Todavia, a frustração doeu-lhe tanto que resolveu, impulsivamente: “Vou telefonar para o Wilson e o resto que se dane!” O Wilson, chefe de redação do Jornal do Brasil, era (como o Oto Lara, o Hélio Pelegrino e poucos mais), um dos valores saídos das ‘novas gerações’. Em plena Candelária, Dr. Odorico faz a pergunta a si mesmo: “Onde acharei um telefone?” O juiz gostava do Wilson. Este era um dos três ou quatro brasileiros (inclusive o Sette Câmara) que ainda se ruborizavam neste país. E o Dr. Odorico acreditava, piamente, que o simples rubor da face é uma indicação de sentimentos elevados. Caminhando pela Avenida, atrás de um telefone, diz para si mesmo: “Não creio que o Gustavo Corção se ruborize, nunca. O Gustavo Corção é um pálido!” Dr. Odorico tinha-lhe não propriamente ódio mas uma forte antipatia. Achava que Corção não escrevia uma vírgula sem uma vaidade de prima-dona decotada.
Finalmente, achou o telefone. Pedindo ao homem da caixa uma prata de dois cruzeiros, ou duas de um (estava numa casa de petisqueiras portuguesas), Dr. Odorico ainda lutava com os próprios escrúpulos: “É uma fraqueza. E que idéia fará de mim o Wilson Figueiredo?” Dr. Odorico pensa em dar ao telefonema um tom ameno e divertido. Faz a ligação. “Bom menino, o Wilson!” E aquela capacidade de ruborizar-se revelava a sensibilidade moral das novas gerações.
Atendem do outro lado. Ele pigarreia:
— Senhorita, podia me chamar o Wilson Figueiredo?
E a telefonista, uma simpatia de voz:
— Seu Wilson? Ah, seu Wilson está no outro telefone. Quer esperar?
Disse:
— Espero, sim, minha filha, espero!
Enquanto espera, sorri, sem ter de que, para o homem da caixa; e repete, para si: “É um pálido, o Corção!” Sim, ele fazia duas objeções ao Gustavo: era um pálido e um magro. Do outro lado da linha, a telefonista perguntava:
— Já falou?
— Não, meu bem. Ainda não.
E a menina (com uma vozinha muito doce):
— Um momentinho, que o seu Wilson vai falar.
— Obrigado.
Quando o Wilson apareceu na linha, Dr. Odorico estava tão comovido que fez a reflexão: “O ruborizado agora sou eu.” De fato, sentia as faces em fogo. Todavia, procura parecer de uma alegre naturalidade:
— Wilson? Como vai, ilustre?
— Quem é?
Pilheriou:
— Aqui fala o mais obscuro, o mais humilde juiz das nossas varas!
Com a exuberância da sua juventude ‘informal’ (muito usada atualmente a expressão ‘informal’), Wilson o saudava:
— Obscuro coisa nenhuma! Nem humilde!
Dr. Odorico insiste no tom leve e irônico, que lhe pareceu menos comprometedor:
— Ah, eu sou o juiz que nunca será desembargador! Não me querem lá, Wilson! Acham que eu tenho idéias muito avançadas!
Essa falsa lamentação, que era lamentação mesmo, conduziu-o ao corregedor. E pensava: “Se eu já fosse desembargador impressionaria mais Engraçadinha!” No telefone, falando com o Wilson, Dr. Odorico pintou o inimigo com cores que ele próprio achou ‘cruéis’. “Meu caro Wilson, o corregedor entra nos lugares dando patadas.” E acrescentou:
— É um centauro!
— Centauro?
E o Dr. Odorico:
— O corregedor é um centauro, um centauro que fosse a metade cavalo e a outra metade também!
Do outro lado da linha, o Wilson Figueiredo enchia a redação com o seu riso incontrolável, selvagem: “Genial! Genial!” Então, mais animado, Dr. Odorico admite, para si mesmo, que fora feliz: “É uma piada de fazer inveja ao próprio Oto.” O juiz trata de tirar partido do êxito:
— Escuta, aqui, Wilson: eu precisava de um favorzinho teu.
— V. Excia. manda!
Tosse ligeiramente:
— Você conhece o Hermano Alves? O que faz ‘Rondo’? Conhece, claro.
— Trabalha aqui comigo! Ao meu lado!
Baixa a voz:
— Que tal se você falasse com o Hermano pra botar um veneno? Um veneno na seção dele. Olha aqui: dizendo, por exemplo, que o corregedor anda de marcação com o juiz tal. Você fala?
— Com o Hermano? Falo!
Dr. Odorico inflamou-se:
— Você sabe que eu sou um homem sem vaidades. Mas tudo tem um limite. Pois é: e o homem vive me torpedeando e, afinal de contas, você não acha, Wilson? Seja sincero. Não acha?
Ao sair do telefone, Dr. Odorico levava uma violenta sensação de vitória. Fazia bem em acreditar nos homens que ainda se ruborizam numa terra em que... Cumprimenta o sujeito da caixa e deixa aquela simpática (e asseada) casa de petisqueiras portuguesas. Pensa: “Um simples ‘bom-dia’ põe o Wilson vermelho!”, definitivamente um lívido. Estava mesmo disposto a não ler mais o Gustavo. Culpava-o de ter uma aridez de alma que podia também transmitir-se ao leitor. Quanto ao ‘Rondo’, seria oportuno que, em plena paixão, seu nome saísse em jornal. “Uma publicidadezinha não faz mal a ninguém.” Finalmente, entrando num táxi, disse, de si para si, num brado interior de guerra: “Ao ginecologista!” E repetiu, feliz: “Ao ginecologista!”
*
Leleco desceu na Praça Saenz Peña. Imaginava: “A turma deve estar subindo pelas paredes!” Passou na esquina do Carioca e não viu nenhum deles. Foi até ao Metro e nada. Queria dar uma explicação. Não lhe saía da cabeça o Bar do Pepino. Ah, o banho com Silene. Via-se a si mesmo passando a toalha naquela nudez molhada; e, sobretudo, não esquecia o momento (antes do chuveiro), em que seu suor pingara entre os seios da pequena. Pensava também: “Sangrou tão pouco. Quase não sangrou.” Ele acaba entrando no Ao Prato do Dia. Encontrou, lá, numa mesa de canto, os três: Cadelão, Bob e Cabeça de Ovo. Aproxima-se (só o Cadelão metia-lhe medo).
Chega dizendo:
— Imagina vocês que...
Cadelão interrompe:
— Você é um sujo!
E Bob, virando-se:
— Isso é papel?
Puxa uma cadeira, senta-se, desorientado:
— Vocês não sabem o que me aconteceu. Quando eu ia pra lá. Mas escuta! Sob minha palavra de honra, eu...
Cadelão segura-o por um braço:
— Fica sabendo que o sujeito só me faz de palhaço uma vez!
Tem um ritus de choro: “Mas eu juro que...” O único que não diz nada é o Cabeça de Ovo. Está entretido em limpar as unhas com um pau de fósforo. Cadelão fala agora macio, sem nenhuma ferocidade:
— Eu devia é te partir a cara. Mas não há de ser nada. Vamos embora.
Os três levantam-se, ao mesmo tempo. Bob bate-lhe nas costas:
— Você também vem.
Começa a sofrer:
— Eu?
Cadelão traz o rapaz pelo braço:
— Temos outra ‘fria’, num apartamento que o Bob arranjou.
Quis desistir: “Escuta! Mas eu queria dormir cedo...” O outro trinca os dentes:
— Não quero conversa! Vamos embora!
Cabeça de Ovo começa a falar:
— Uma pequena infernalíssima! Você não gosta de mulher? Gosta ou não gosta? Vamos lá, rapaz! Vem, anda! Ou tens medo de mulher?
Apanharam o automóvel mais adiante. No caminho, Cadelão ia contando: “Te esperamos, feito bestas! Ficamos lá um tempão!” Protestou “Mas eu juro!” Quando saltaram, na Rua General Glicério, perguntou: “Quem é a pequena?” Responde o Cadelão, sem olhá-lo: “Surpresa.” O apartamento, num nono andar, era de um vago conhecido do Bob. Sobem os quatro. Finalmente, entram no apartamento. Cadelão vira-se para Bob: “Põe a vitrola alto.” Silêncio enquanto Bob põe o disco.
Cadelão volta-se para Leleco:
— Você não desconfiou de nada?
— De quê?
Recua ligeiramente. A vitrola começa a tocar. Cadelão tem um meio riso pesado (ao mesmo tempo que o seu olhar parece vazar luz):
— Leleco, tua hora chegou! Quem vai entrar em ‘fria’ é você!
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
CAPÍTULO LVI
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