quarta-feira, 28 de outubro de 2009

CAPÍTULO LVI

No lotação, fez a viagem pensando, ora em Engraçadinha, ora no corregedor. Pode parecer estranho, mas havia, entre dois seres tão dessemelhantes, uma relação nítida e taxativa. Como todo o homem que se joga todo num amor, o Dr. Odorico pas­sou a levar mais em conta certos valores da vida, tais como o Poder, a Glória, o Dinheiro. Gostaria de depositar aos pés da bem-amada esses bens consideráveis do mundo. E, justamente, o corregedor (“a besta do corregedor”, como ele dizia) era um pesado entrave na sua carreira. Na altura de Ramos, e recebendo aquele cheiro de mar podre, esbravejou: “Eu já podia ser desembargador!” Imaginava que, como desembargador, teria maior autoridade para derrubar os escrúpulos de Engraçadinha. Parecia-lhe fora de dúvida que, entre um juiz e um desembar­gador, qualquer mulher preferiria este último. “A mulher é mercenária.” Sem sentir e sem saber, está sempre se vendendo por alguma coisa: ou posição, ou glória, ou dinheiro. Quando o lotação entrou na Presidente Vargas, rumo à Candelária, o ódio contra o corregedor atingia o máximo da violência e da malignidade. Pensou: “Desde que esse cara começou de marca­ção comigo, eu nunca mais dei uma dentro.” E decide: “Eu tenho que ser desembargador de qualquer maneira.” Foi ao descer na Candelária que teve, subitamente, a idéia:
— E se eu telefonar para o Wilson Figueiredo?
Geralmente, ele gostava de parecer desprendido de certas vaidades. Fazia mesmo alarde de sua modéstia e repetia muito, como aquele personagem de Dickens: “Eu sou humilde, muito humilde!” Todavia, a frustração doeu-lhe tanto que resolveu, impulsivamente: “Vou telefonar para o Wilson e o resto que se dane!” O Wilson, chefe de redação do Jornal do Brasil, era (como o Oto Lara, o Hélio Pelegrino e poucos mais), um dos valores saídos das ‘novas gerações’. Em plena Candelária, Dr. Odorico faz a pergunta a si mesmo: “Onde acharei um telefo­ne?” O juiz gostava do Wilson. Este era um dos três ou quatro brasileiros (inclusive o Sette Câmara) que ainda se ruborizavam neste país. E o Dr. Odorico acreditava, piamente, que o simples rubor da face é uma indicação de sentimentos elevados. Cami­nhando pela Avenida, atrás de um telefone, diz para si mesmo: “Não creio que o Gustavo Corção se ruborize, nunca. O Gus­tavo Corção é um pálido!” Dr. Odorico tinha-lhe não propria­mente ódio mas uma forte antipatia. Achava que Corção não escrevia uma vírgula sem uma vaidade de prima-dona decotada.
Finalmente, achou o telefone. Pedindo ao homem da caixa uma prata de dois cruzeiros, ou duas de um (estava numa casa de petisqueiras portuguesas), Dr. Odorico ainda lutava com os próprios escrúpulos: “É uma fraqueza. E que idéia fará de mim o Wilson Figueiredo?” Dr. Odorico pensa em dar ao telefonema um tom ameno e divertido. Faz a ligação. “Bom menino, o Wilson!” E aquela capacidade de ruborizar-se revelava a sensi­bilidade moral das novas gerações.
Atendem do outro lado. Ele pigarreia:
— Senhorita, podia me chamar o Wilson Figueiredo?
E a telefonista, uma simpatia de voz:
— Seu Wilson? Ah, seu Wilson está no outro telefone. Quer esperar?
Disse:
— Espero, sim, minha filha, espero!
Enquanto espera, sorri, sem ter de que, para o homem da caixa; e repete, para si: “É um pálido, o Corção!” Sim, ele fazia duas objeções ao Gustavo: era um pálido e um magro. Do outro lado da linha, a telefonista perguntava:
— Já falou?
— Não, meu bem. Ainda não.
E a menina (com uma vozinha muito doce):
— Um momentinho, que o seu Wilson vai falar.
— Obrigado.
Quando o Wilson apareceu na linha, Dr. Odorico estava tão comovido que fez a reflexão: “O ruborizado agora sou eu.” De fato, sentia as faces em fogo. Todavia, procura parecer de uma alegre naturalidade:
— Wilson? Como vai, ilustre?
— Quem é?
Pilheriou:
— Aqui fala o mais obscuro, o mais humilde juiz das nossas varas!
Com a exuberância da sua juventude ‘informal’ (muito usada atualmente a expressão ‘informal’), Wilson o saudava:
— Obscuro coisa nenhuma! Nem humilde!
Dr. Odorico insiste no tom leve e irônico, que lhe pareceu menos comprometedor:
— Ah, eu sou o juiz que nunca será desembargador! Não me querem lá, Wilson! Acham que eu tenho idéias muito avan­çadas!
Essa falsa lamentação, que era lamentação mesmo, con­duziu-o ao corregedor. E pensava: “Se eu já fosse desembarga­dor impressionaria mais Engraçadinha!” No telefone, falando com o Wilson, Dr. Odorico pintou o inimigo com cores que ele próprio achou ‘cruéis’. “Meu caro Wilson, o corregedor entra nos lugares dando patadas.” E acrescentou:
— É um centauro!
— Centauro?
E o Dr. Odorico:
— O corregedor é um centauro, um centauro que fosse a metade cavalo e a outra metade também!
Do outro lado da linha, o Wilson Figueiredo enchia a reda­ção com o seu riso incontrolável, selvagem: “Genial! Genial!” Então, mais animado, Dr. Odorico admite, para si mesmo, que fora feliz: “É uma piada de fazer inveja ao próprio Oto.” O juiz trata de tirar partido do êxito:
— Escuta, aqui, Wilson: eu precisava de um favorzinho teu.
— V. Excia. manda!
Tosse ligeiramente:
— Você conhece o Hermano Alves? O que faz ‘Rondo’? Conhece, claro.
— Trabalha aqui comigo! Ao meu lado!
Baixa a voz:
— Que tal se você falasse com o Hermano pra botar um veneno? Um veneno na seção dele. Olha aqui: dizendo, por exemplo, que o corregedor anda de marcação com o juiz tal. Você fala?
— Com o Hermano? Falo!
Dr. Odorico inflamou-se:
— Você sabe que eu sou um homem sem vaidades. Mas tudo tem um limite. Pois é: e o homem vive me torpedeando e, afinal de contas, você não acha, Wilson? Seja sincero. Não acha?
Ao sair do telefone, Dr. Odorico levava uma violenta sen­sação de vitória. Fazia bem em acreditar nos homens que ainda se ruborizam numa terra em que... Cumprimenta o sujeito da caixa e deixa aquela simpática (e asseada) casa de petisqueiras portuguesas. Pensa: “Um simples ‘bom-dia’ põe o Wilson ver­melho!”, definitivamente um lívido. Estava mesmo disposto a não ler mais o Gustavo. Culpava-o de ter uma aridez de alma que podia também transmitir-se ao leitor. Quanto ao ‘Rondo’, seria oportuno que, em plena paixão, seu nome saísse em jornal. “Uma publicidadezinha não faz mal a ninguém.” Finalmente, entrando num táxi, disse, de si para si, num brado interior de guerra: “Ao ginecologista!” E repetiu, feliz: “Ao ginecologista!”

*

Leleco desceu na Praça Saenz Peña. Imaginava: “A turma deve estar subindo pelas paredes!” Passou na esquina do Ca­rioca e não viu nenhum deles. Foi até ao Metro e nada. Queria dar uma explicação. Não lhe saía da cabeça o Bar do Pepino. Ah, o banho com Silene. Via-se a si mesmo passando a toalha naquela nudez molhada; e, sobretudo, não esquecia o momento (antes do chuveiro), em que seu suor pingara entre os seios da pequena. Pensava também: “Sangrou tão pouco. Quase não sangrou.” Ele acaba entrando no Ao Prato do Dia. Encontrou, lá, numa mesa de canto, os três: Cadelão, Bob e Cabeça de Ovo. Aproxima-se (só o Cadelão metia-lhe medo).
Chega dizendo:
— Imagina vocês que...
Cadelão interrompe:
— Você é um sujo!
E Bob, virando-se:
— Isso é papel?
Puxa uma cadeira, senta-se, desorientado:
— Vocês não sabem o que me aconteceu. Quando eu ia pra lá. Mas escuta! Sob minha palavra de honra, eu...
Cadelão segura-o por um braço:
— Fica sabendo que o sujeito só me faz de palhaço uma vez!
Tem um ritus de choro: “Mas eu juro que...” O único que não diz nada é o Cabeça de Ovo. Está entretido em limpar as unhas com um pau de fósforo. Cadelão fala agora macio, sem nenhuma ferocidade:
— Eu devia é te partir a cara. Mas não há de ser nada. Vamos embora.
Os três levantam-se, ao mesmo tempo. Bob bate-lhe nas costas:
— Você também vem.
Começa a sofrer:
— Eu?
Cadelão traz o rapaz pelo braço:
— Temos outra ‘fria’, num apartamento que o Bob ar­ranjou.
Quis desistir: “Escuta! Mas eu queria dormir cedo...” O outro trinca os dentes:
— Não quero conversa! Vamos embora!
Cabeça de Ovo começa a falar:
— Uma pequena infernalíssima! Você não gosta de mu­lher? Gosta ou não gosta? Vamos lá, rapaz! Vem, anda! Ou tens medo de mulher?
Apanharam o automóvel mais adiante. No caminho, Ca­delão ia contando: “Te esperamos, feito bestas! Ficamos lá um tempão!” Protestou “Mas eu juro!” Quando saltaram, na Rua General Glicério, perguntou: “Quem é a pequena?” Responde o Cadelão, sem olhá-lo: “Surpresa.” O apartamento, num nono andar, era de um vago conhecido do Bob. Sobem os quatro. Finalmente, entram no apartamento. Cadelão vira-se para Bob: “Põe a vitrola alto.” Silêncio enquanto Bob põe o disco.
Cadelão volta-se para Leleco:
— Você não desconfiou de nada?
— De quê?
Recua ligeiramente. A vitrola começa a tocar. Cadelão tem um meio riso pesado (ao mesmo tempo que o seu olhar parece vazar luz):
— Leleco, tua hora chegou! Quem vai entrar em ‘fria’ é você!

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