quinta-feira, 29 de outubro de 2009

CAPÍTULO LVII

Cercado de caras, balbucia (tenta sorrir):
— Que piada é essa?
E o Cadelão:
— Piada, uma ova! Sério, rapaz! Sério e olha...
Leleco olha as três caras; balbucia:
— Não brinca.
Quer recuar. Mas o Cabeça de Ovo está por trás. Cadelão agarra-o:
— Escuta, Leleco: não tem escapatória, nem adianta re­sistir.
— Somos três! — cutuca o Bob.
E o Leleco:
— Mas eu explico. Escuta Cadelão e você, Bob: a peque­na é que, depois do cinema, cismou, não quis vir de jeito nenhum. Compreende? Cismou e eu insisti, mas...
Cadelão tem o olhar espantosamente fixo:
— Já que a pequena não veio, entende? Faz de conta que você é ela.
Cabeça de Ovo bate-lhe nas costas:
— Ninguém vai saber, rapaz. Fica entre nós.
Com os olhos cheios de lágrimas, vira-se para o Cabeça de Ovo:
— Escuta: a coisa que eu mais prezo é minha mãe... Juro pela minha mãe, juro! Foi a pequena, eu juro, Cabeça de Ovo... E, de mais a mais, escuta, Cadelão, escuta: essa menina, eu gosto dessa menina. Vamos casar. Vocês compreen­dem? Vai ser minha noiva e...
Cadelão mete-lhe a mão no peito:
— Noiva? Que noiva? Você nem homem é!
Começa a chorar:
— Sou homem, sim!
E Bob:
— Desde quando?
No seu apelo, segura o braço de Bob:
— Hoje, no Bar do Pepino, finalmente... Juro! Olha: o médico tinha explicado que era inibição e... Hoje lá, pela primeira vez... Juro! A inibição passou, de repente, foi de repente... Descabacei a pequena!
Ria e chorava. Cadelão trinca os dentes:
— Acabaste?
— Por quê?
Bob o empurra pelas costas:
— Homem não chora!
Passando as costas da mão nos olhos, ele continua, ofe­gante:
— Vocês não podem fazer isso comigo! Eu sou homem! E vou me casar, Bob. Vou me casar com essa menina.
Cadelão berra:
— Segura, Cabeça de Ovo!
O louro quer agarrá-lo, por trás. Leleco, porém, num repelão inesperado e selvagem, desprende-se. Recua cambalean­do. Cabeça de Ovo, que perdera o equilíbrio, cai por cima de uma cadeira. Levanta-se furioso. Atrás de uma mesa, Leleco berra:
— Ninguém me encosta a mão! Quem me encostar a mão, já sabe!
Repete para si mesmo: “Vou me casar. Hoje, eu fiz tudo! Sou como os outros! Silene, eu te amo...” Bob passa pela vitrola e põe todo o volume:
Cadelão berra:
— Não deixa ele passar, Cabeça de Ovo!
Bob faz a volta pelo outro lado. Leleco sente que já não pode fugir. Grita:
— Cadelão! Escuta, Cadelão! Talvez eu seja pai! Ouviu? Pai! Eu vou ser pai!
Por um momento, os três estacam:
— Pai?
Sempre rindo e chorando, pensa: “Estão espantados. Bob, que é o melhor deles — o mais liga — Bob está com pena. Sinto que ele está com pena. Quem não presta mesmo é o Cadelão.” Fala para Bob:
— A pequena pode pegar gravidez — ri, arquejante: — Hoje, eu não tive bandeira e... Com certeza, vou ser pai... Era virgem e...
Vão agarrá-lo. No seu desespero, Leleco pula. Lá adiante, o vento abriu uma janela. Passa por cima da mesa e corre. Cadelão uiva:
— Não deixa, Bob!
Bob se atira, mas Leleco, num último esforço, desvencilha-se. Deixa nas mãos do rapaz um pedaço da camisa. Rápido, senta-se no parapeito. Na vitrola, um long-play faz vibrar todas as taças da pequena cristaleira.
Os outros param, novamente. Leleco exulta:
— Vou avisando: se vocês derem mais um passo! — e repete, no seu desespero: — um passo, estão me ouvindo? Eu me atiro lá embaixo!
Pensa: “Silene, pode deixar, Silene! Eu sou homem! Eles têm que me matar primeiro. Se eu for pai; se por acaso, Silene ficar grávida. É bem possível que ela apanhe gravidez é bem possível. Não quero que, mais tarde, meu filho saiba e pense: ‘Ah, meu pai, naquele dia assim, assim, não foi cem por cento homem!’ Eu sou cem por cento homem.” Respira forte e repete, para si mesmo: “Eu sou cem por cento homem. Aquilo que eu tinha era inibição.” O Cabeça de Ovo quer se aproximar.
— Escuta, Leleco...
Berra como um louco:
— Se der mais um passo! Eu me atiro lá embaixo!
Cadelão vira-se para os outros:
— Atira nada! Conversa! Quer ver como é conversa?
Leleco parece desafiar o mundo com um riso triunfal:
— Eu sou é homem! Aquilo que eu tive era inibição!
A saliva escorre pelo queixo. Enxuga-se com a manga da camisa; e pensa: “Silene, eu gosto tanto de você, Silene. Pensei que era só desejo, mas é amor... Se eu sair daqui com vida nós casamos. Eu arranjo emprego e nós casamos. Silene, nós casamos.” Lembrava-se dela, no Bar do Pepino, tão nua e mo­lhada, pensava na virgindade que sangrara tão pouquinho. Nos cabelos, depois do banho, apenas gotas desgarradas. Ao mesmo tempo, lembra-se de Tinhorão no automóvel: “Aquela besta só faltou cantar Silene na minha cara.”
Bob puxa Cadelão:
— Vem cá.
E o outro, com o olhar de ódio:
— Que é?
— Chega aqui.
Juntam-se os três numa das extremidades do apartamento. Bob começa:
— Vamos desistir?
Cadelão pula:
— Desistir?
O outro argumenta:
— Desistir, é. Deixa o rapaz. Se ele pula mesmo? Já imaginaste o galho, o bode?
Cabeça de Ovo está mordendo um palito quebrado:
— Também acho.
Cadelão faz uma boca de nojo:
— Mas, oh! Estão com medo do Leleco?
E Bob:
— Não é medo, ninguém aqui tem medo, mas... Vamos que o rapaz se atire... Olha o bolo formado e depois? Polícia não é sopa e olha: não interessa.
Cabeça de Ovo enfia as duas mãos nos bolsos:
— Essa vitrola nos meus ouvidos está me enchendo.
Cadelão decide:
— Bom. Vamos fazer o seguinte: vocês vão e eu fico. Fico, pronto. Fico.
— Olha o que você vai arranjar!
Explode:
— Não chateia, e que mania! Faz a pista e você também. Eu cá me arranjo. Cadê a chave? Ah, não precisa! Pode ir. Vão.
Cadelão leva-os até a porta. Bob ainda quer convencê-lo: “Larga isso de mão...” O outro era de uma obstinação obtusa e cruel: “Comigo, sabe como é. Eu tenho um golpe e olha: espera lá embaixo. Não vou demorar muito. Espera na es­quina.”
Antes de sair, Bob acena:
— Tchau, Leleco.
Atônito, Leleco não responde. Pergunta a si mesmo: “Os dois saem e me deixam aqui, sozinho, com o Cadelão!” Este já fechou a porta. Aproxima-se, lentamente.
— Leleco, pode vir. Vamos embora, vem. Você se assus­tou à toa. Fez um bicho-de-sete-cabeças e sem motivo. Mas vem ou tem medo? Medo de que, seu?
Vacila, ainda. Cadelão ri:
— Parei contigo! Te dou a minha palavra, rapaz! Os ou­tros estão esperando lá embaixo. E me admira que você tenha acreditado, ora!
Decidiu-se, afinal. Sai da janela; não chega, porém, a dar dois passos. Cadelão se atira num salto brutal. Sua experiência de judô, luta-livre, briga de rua, foi decisiva. Prende Leleco nu­ma gravata potentíssima. O rapaz sente que as forças faltam e que... Subjugado, teve tempo de tirar seu canivete americano.
Cadelão ri, pesadamente:
— Quietinho! Quietinho! Nunca tive nojo de homem. Só tive nojo, uma vez, de um velho...
Leleco enterra-lhe no ventre, até o cabo, a lâmina viva.

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