segunda-feira, 12 de outubro de 2009

CAPÍTULO XL

Repetia a frase de grande efeito, e com a mesma agressi­vidade triunfal de vinte anos atrás. Engraçadinha e Zózimo er­guem-se, em câmara lenta. Lá na porta, continua aquele velho bem vestido, com o seu bigode e a sua distinção de Adolphe Menjou. Dir-se-ia alguém que, subitamente, fosse arremessado do passado para Vaz Lobo. E, por um momento, o casal expe­rimenta uma sensação de vertigem.
Dr. Odorico levanta, de novo, a mão vibrante, no gesto de orador:
— Amantes? Nunca as teve!
Silêncio ainda. E ele, agora risonho — e um pouco verme­lho — faz a pergunta à Engraçadinha:
— Não se lembra mais de mim?
Engraçadinha vacila. Tinha, sim, uma lembrança auditiva: a voz, a inflexão pomposa, o arrebatamento oratório. Depois de olhar para Zózimo, diz, vivamente:
— O senhor é aquele que...
Ele se precipita, de mão estendida:
— Exatamente. Falei no enterro do senhor seu pai.
Ao dizer ‘enterro’ fez, rapidamente, uma voz cava, para, em seguida, elevá-la novamente, na total euforia retrospectiva: “Fui, se não me engano — eu tenho uma excelente memória! — fui o quinto orador. Precisamente o quinto e, aliás, o último. Lembra-se agora?”, torna, com uma satisfação evidente.
Engraçadinha sorria-lhe, com certo enleio:
— Me lembro, sim.
Zózimo oferecia a própria cadeira:
— Mas sente-se.
Dr. Odorico, olhando ora a mãe, ora a filha, senta-se, depois de inclinar a cabeça para Zózimo: “Obrigado.” Engra­çadinha que, inesperadamente, sentia-se levada, arrebatada, ati­rada para além de si mesma, via-se em pleno cemitério. “Aman­tes, nunca as...” E, pensava, não no pai, mas em Sílvio, nos restos agonizantes de Sílvio. Ao mesmo tempo, está envergonha­da, realmente humilhada com a pobreza da casa. Silene, com o seu chiclete abominável, põe a pasta do colégio em cima de um móvel. Na parede, uma gravura de S. Jorge, com uma pequena lâmpada azul e triste. Zózimo dirige-se ao visitante:
— Tenha a bondade.
Pedia o chapéu do ex-promotor, que este entregou. Então, Dr. Odorico, pigarreando, tira um cartão do bolso. Enquanto Zózimo leva o chapéu, ele levanta-se e passa o cartão a Engra­çadinha. Volta a sentar-se e, cruzando as pernas, suspira, ra­diante:
— Odorico Quintela. Disponha.
É este o nome que Engraçadinha, sôfrega (pensava ainda em Sílvio), estava lendo. E mais: “Juiz de Direito.” E embaixo: “Rua Cândido Mendes trinta e tantos.” Ela sofre, com vergonha de tudo, dos móveis, das paredes descascadas e, até, do S. Jorge. O visitante olha com desprazer para a camisa rubro-negra de Zózimo. Engraçadinha passou o cartão ao marido. Sú­bito, o juiz ergue-se; e começa, incisivo:
— Minha senhora, foi para mim um prazer imenso, não exagero, creia!, uma satisfação encontrar essa menina. Veja como são as coisas e é por isso que eu acredito em Deus. Em tudo há o dedo de Deus. Por exemplo: por que sairia eu mais cedo, hoje, logo hoje, note bem: exatamente hoje? Não é o dedo de Deus? É o dedo de Deus. Mas como eu ia dizendo: vou pela Rua do Ouvidor e dou de cara com esta menina! Olha o dedo de Deus nas mínimas coisas! Não concorda, amigo?
Virava-se para Zózimo. Este puxa um pigarro:
— Perfeitamente. Como não?
Dr. Odorico vira-se para Engraçadinha:
— Minha senhora, quando eu olho essa menina, veja a coincidência...
Ela pensava em Sílvio. Sílvio que morrera uma semana depois do Dr. Arnaldo. Lembrou-se também da navalha, com o seu fio diáfano e gelado. Mas o juiz prosseguia, com excitação progressiva:
— Vi a menina e disse, no mesmo instante, note, no mes­mo instante, minha senhora! Eu disse: “Eis a filha de Engraça­dinha!” — baixa de tom, melífluo: — D. Engraçadinha!
Engraçadinha olha para a filha:
— Silene é o meu retrato!
E, ao mesmo tempo, não pôde deixar de pensar, com um descontentamento cruel de si mesma e da vida: “Que será desta menina, meu Deus, solta por aí?” Silene não podia ficar sozinha um momento, não podia nem tomar banho sozinha! “E já está flertando — oh que inferno! — já está flertando com o velho! Ah, desgraçado temperamento!”
Com os lábios encharcados, um lampejo ameaçador no olhar, ele vibrava como se estivesse, ainda, em cima de um túmulo, fazendo o orador de cemitério:
— Minha senhora! O senhor também! Vim aqui, não con­vencionalmente, digamos assim: não convencionalmente. Não é uma visita formal, minha senhora, absolutamente! Eu estou aqui como amigo! Eu peço, minha senhora, que me aceite como amigo, amigo do peito!
Acabou gritando. Aquela sinceridade agressiva intimidou e emudeceu todo o mundo. Ele, que transpirava, tira o lenço fino, transparente, e passa em todo o rosto. Engraçadinha le­vanta-se, atarantada:
— Aceita um cafezinho?
Ele está dobrando o lenço. Respira fundo:
— Um cafezinho? Aceito! — e repetia, sentando-se. — Pois não, aceito!
Engraçadinha abandona a sala. Então, esfregando as mãos, Dr. Odorico inclina-se ligeiramente para Zózimo:
— Parabéns pela sua filha!
Ao mesmo tempo, não tirava os olhos da menina. Oh, a mobilidade voluptuosa daquela boca! Mas quem o juiz estava achando deprimente era o Zózimo. Por de trás de sua polidez, fazia uma generalização brutal: “Marido é assim! Camisa rubro-negra, sem mangas, axilas abundantes e obscenas, de chine­los e sem meias!” “De resto”, concluía, “é preciso muito cinismo para que um casal, qualquer casal, chegue às bodas de prata!”

*

Pondo a água no fogo, para o café fresco, Engraçadinha suspirava. Aquele homem, aquele juiz que, de repente, invadira a sua sala de jantar, vinha exasperar todo o passado. “Amantes, nunca as...” Ao deixar o cemitério, estava certa de que era, ainda, a mesma fêmea nova e encantada. Ninguém percebera o intenso, contínuo trabalho dos quadris contra a quina de um túmulo. Depois, saíra dali, de fronte alta, o corpo a um tempo ereto e flexível. Cochichavam: “Engraçadinha chorou tanto!” E, dias depois, quando Sílvio morreu, caiu de joelhos, soluçan­do: “Ó, graças, graças!” Sim, graças por ter morrido! Morrera tão só! Engraçadinha gostaria de debruçar-se sobre a sua agonia para perguntar: “A navalha! Por que a navalha?” Ele próprio talvez não pudesse explicar. “Mas se eu soubesse”, imaginava Engraçadinha. Se soubesse que ele ia ferir-se, teria se atracado com o ser amado. Preferia que Sílvio decepasse um dos seus seios. No velório, o esquife parecia guardar o cadáver de alguém que morrera antes, sim, de alguém que morria pela segunda vez.
Fazendo o café — após vinte anos — lembrava-se do casamento às pressas. Enganara tio Nonô e o Irmão Fidélis, confundira um e outro e, finalmente, casara-se com Zózimo, O pai deixara quase nada. Sua fortuna era mais folclore do que dinheiro vivo. Ah, a primeira noite de núpcias, na véspera da partida para o Rio!
Zózimo querendo abraçá-la. E ela:
— Não.
— Mas, querida!
Recua diante dele:
— Você não gosta de mim?
— Gosto, mas...
Leva, na bandeja, duas pequenas xícaras para o Dr. Quintela e Zózimo. O juiz ilumina-se; faz o comentário inútil: “Um cafezinho sempre é bom!” Continua pensando que nenhum ma­rido, com aquela camisa rubro-negra, podia ser amado ou sequer desejado pela esposa. E, além disso, a exposição de axilas fora do local e do momento próprios parecia-lhe uma degradação. Engraçadinha pergunta:
— Está bom de açúcar?
Dr. Odorico mexe e, em seguida, prova:
— Um pouquinho mais. Eu gosto bem doce.
Engraçadinha serve-o. O homem experimenta novamente: “Obrigado.” Engraçadinha pensa, ainda, na primeira noite com Zózimo. O assombro do marido: “Quer dizer que...” Ela, de braços cruzados, uma expressão de ressentimento no rosto duro, diz-lhe tudo:
— Zózimo, eu estou grávida e não de você: de outro. Du­rante a minha gravidez, ninguém tocará em mim. Ninguém! Primeiro, meu filho tem de nascer!
— Mas eu sou seu marido!
Repetiu:
— Ninguém!
E ele, com a tenacidade do desejo: “Nem eu?” Grita:
— Ninguém! — e continua, mudando bruscamente de tom, quase doce: — Se você gosta de mim, se me ama. Você me ama? Então, olha: se você me ama, você compreenderá, ó Zózimo!
Agora, depois de tantos anos, ela servia cafezinho ao ho­mem que vinha açular este passado. Dr. Odorico tinha vontade de tomar entre as suas as mãos de Engraçadinha (ó a camisa rubro-negra do marido!). Dizia, gravemente: “A senhora mudou pouco...” Surpresa, e quase ofendida protesta: “Mas eu sou uma velha!” Dr. Odorico baixa a voz: “Não exageremos! Não exageremos!”
Eis a verdade: ele era a favor das intimidades imediatas. Achava que, em certas ocasiões, convém tomar de assalto a confiança de uma mulher ou de uma família. Decidiu que sairia dali, aquela noite, íntimo de todo mundo. Ergue-se:
— O negócio é o seguinte: eu, quando gosto de uma pes­soa, sou impulsivo, muito impulsivo. Para que esperar, se já existe a simpatia, não é mesmo? Não gosto de perder tempo. Vocês já jantaram?
Engraçadinha balbucia, confusa: “Ainda não.” Ele ia, de uma extremidade a outra da sala, numa excitação intensa:
— Eu janto com vocês, pronto! Nada de cerimônias!
E teve um gesto teatral e íntimo que conquistou a família: depois de vencer um certo pudor dos suspensórios, arrancou o paletó e anunciava:
— Já não sou mais o juiz fulano de tal! Agora sou o amigo. E acabou esse negócio de doutor: me chamem de Odorico! Pessoal, olha! Vamos improvisar um jantar. Tem um bo­tequim perto? Manda-se vir bebidas. Confeitaria também tem? Fiambre! Que tal?
Foi uma alegria. Ele, sempre eufórico, parecia cada vez mais convencido de que, com aquela camisa rubro-negra, o Zó­zimo precisava ser traído imediatamente. Riam, todos. O homem tirou dois mil cruzeiros da carteira e perguntava: “Dá? Não precisa mais? Ou é pouco?” Deu o dinheiro a Silene. E dizia de si para si, com uma certeza fanática: “Ou a mãe ou a filha, fico com uma das duas. Mas qual?” Quando Silene saiu, ele considerava uma outra hipótese: “Por que não as duas?” Cal­culava que a mulher bonita e miserável está indefesa. Zózimo saía também para apanhar vinhos.
Depois de um desejo de vinte anos, ele ficou só com Engraçadinha. Era o dedo de Deus. Pensa, rapidamente, já com a garganta contraída: “Se eu a segurar, de repente, sem lhe dar tempo de raciocinar, de resistir...” Levantou-se e bal­buciou, ofegante:
— Engraçadinha, olha.
Ela, que apanhava a toalha de mesa, virou-se. Dr. Odorico Quintela, com os dentes trincados, decide: “Seguro-a agora, ta­po-lhe a boca e...”

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