domingo, 11 de outubro de 2009

CAPÍTULO XXXIX

Vinte anos depois, aqui, no Rio, na esquina de Ouvidor com Avenida, um senhor idoso esbarra numa menina, que vinha em sentido contrário. Ela teria o quê? Digamos uns 15, 16 (ou 14). No seu uniforme colegial, meias soquete, saia azul, blusinha creme, tinha um olhar atrevido, um jeito livre e ousado de erguer a cabeça e projetar o perfil e, ao mesmo tempo, uma boca que parecia sempre prestes a beijar. Já o senhor lembrava os velhos nobres da antiga República, com um pouco de Epi­tácio, de Frontin e um pouco, também, do Adolphe Menjou, dos filmes. Talvez fosse mais Adolphe Menjou do que Frontin, do que Epitácio.
Houve o esbarrão ligeiro e acidental e o velho, tocando no chapéu com a sua distinção de República Velha, inclinou-se:
— Perdão.
A menina sorriu-lhe e ia passar adiante, quando o senhor travou-lhe o braço:
— Um momento.
A calçada era estreita e os dois, ali, impediam a passagem. O sósia de Adolphe Menjou puxou-a:
— Menina, como é seu nome, minha filha?
Sem timidez nenhuma, fez um espanto divertido: “Por quê?” O chiclete, que mascava, dava-lhe aos lábios uma mobi­lidade a um tempo provocante e vagamente cínica. O outro pálido e trêmulo, explicava:
— Pelo seguinte, meu anjo: eu conheci, há muito tempo já, uma pessoa que, naquela época, devia ter sua idade e era o seu retrato, igualzinha, ouviu? Igualzinha a você.
A menina olhou, de cima para baixo — e sempre mas­cando chiclete — a mão que ainda segurava o seu braço. Sô­frego, ele baixava a voz:
— Se não fosse o tempo, que já passou, eu diria que você era ela... Mas escuta: por acaso, sua família não é do Espí­rito Santo?
— Sim.
O homem queria ver, ali, um milagre. Milagre, fatalidade, sei lá. Atarantado, diz, para conquistar-lhe a confiança: “Eu podia ser teu pai. Sou o juiz Odorico Quintela.” E, agora que já se apresentara, pergunta, com uma cintilação no olhar:
— Como é o nome de sua mãe?
Ele tinha vontade de pedir-lhe: “Minha filha! Cospe isso! É uma vergonha que a menina brasileira ande mascando chi­clete! O chiclete dá um jeito de prostituta.” A pequena res­ponde:
— Engraçadinha.
O juiz recua, ligeiramente. Repete, num deslumbramento: “Engraçadinha?” Balbuciou:
— Vamos andando, vamos sair daqui! Você é então filha de Engraçadinha! Oh, meu Deus. E seu pai chama-se Zózimo? Perfeitamente, Zózimo! Que coincidência!
Caminhavam pela calçada da Avenida. Chamava atenção aquele senhor, com seu bigode de Adolphe Menjou, uma dis­tinção inatual de Frontin e de Epitácio (e por que não do Manuel Vilaboim?) e aquela menina de graça leve, quadris vibrantes e uma petulância meio perversa. Debaixo do relógio do Jornal do Brasil parou um instante para cumprimentar dois rapazes de Minas, o Wilson Figueiredo e o Oto Lara Resende, ambos jornalistas. O Dr. Odorico, tornando a voz mais cava, e com um jeito quase lúgubre, disse:
— Muito calor! — e repetiu — muito calor!
E passou adiante, no fundo envaidecido da adolescente companhia. Ele sentia que eram muito olhados e imaginava que os dois rapazes haviam de estar fazendo as deduções mais torpes. Pensava: “Como é que, depois de tantos anos, venho encontrar, na Rua do Ouvidor, a filha da mulher que, ainda hoje...” Sempre segurando o braço da menina, ia dizendo, tumultuosamente:
— Seu nome é? Silene? Ah, Silene. Pois olha: minha filha, fui muito amigo, amicíssimo de seu avô e até deu-se uma passagem muito interessante...
— Vovô Arnaldo?
E ele:
— Arnaldo, Dr. Arnaldo. Uma grande figura, um homem de bem! Não há mais homens de bem. Mas a passagem foi a seguinte: quando ele morreu, e moço, morreu muito moço!, eu fiz o discurso do enterro... E dizem que eu fui bem, até muito bem!
Em cima do meio-fio, na esquina da Rua Sete, esperando a abertura do sinal, Silene olha o pequeno relógio de pulso. Tem a exclamação: “Tarde!” Ele se precipita:
— Eu levo você! De táxi! Onde é que você mora?
— Longe.
— Mas onde?
Suspira, com vergonha, asco de subúrbio:
— Vaz Lobo.
Desta vez, o espantado foi o juiz. Repetiu: “Vaz Lobo?” Nunca em tal ouvira falar. Cada vez estava mais convencido de que o chiclete é tão deformante que, no fim de certo tempo, uma menina fica com uma boca ambígua de prostituta. “Boca ambígua” pareceu-lhe uma expressão incisiva. Quando o sinal abriu, Dr. Odorico decidiu que, naquele dia, veria, de qualquer maneira, Engraçadinha. Teve um assomo de rapaz:
— Levo você. O diabo é descobrir um táxi. Mas arran­ja-se.
Eram cinco horas! Ver, de novo, Engraçadinha, depois de 19 ou 20 anos! Entre parênteses, achava que a verdadeira Engraçadinha não era a própria, mas a filha, aquela menina que, ao andar, punha nos quadris uma palpitação de egüinha fremente. Lado a lado com Silene, tinha vontade de passar-lhe a mão pelos cabelos e de lhe cheirar a nuca que devia estar um pouco úmida de suor. Finalmente, aparece um carro. Silene avisa: “Livre”! Aquele velho (não tão velho assim; uns qua­renta, quarenta e poucos, talvez) arremessou-se, com uma elas­ticidade de rapaz. E mais: na ânsia de segurar aquele táxi único e surpreendente, pôs-se na sua frente. O chofer teve que frear. Dr. Odorico chamava Silene:
— Vem.
O chofer amarra a cara:
— É pra longe, cavalheiro?
E o juiz, fazendo a menina entrar, sucinto e inapelável:
— Vaz Lobo.
O outro pula:
— Vaz Lobo? Mas oh nossa amizade!
Já o pânico do motorista faz o juiz imaginar que Vaz Lobo era para lá de Campo Grande. O profissional continuava:
— Está na minha hora! Meu chapa, tenho que entregar o carro! — e repetia: — Está na minha hora!
Dr. Odorico sentara-se, maciçamente, como se fosse, não um juiz isolado, mas todo o Poder Judiciário. Depois de piscar o olho para a menina, puxa uma carteirinha e só falta enfiá-la na cara do chofer:
— Meu amigo, o senhor vai me levar, sim! O senhor está falando com uma autoridade! — e pergunta, com sarcasmo: — Sabe ler? Então, lê! Lê, rapaz! Juiz, compreendeu? Podia lhe prender! E nem mais uma palavra!
Vira-se para a menina (cada vez mais parecida com a Engraçadinha de 20 anos atrás, ou seja: a Engraçadinha do cemitério, a Engraçadinha de vestido molhado e os dois peque­ninos seios de sonho). O chofer arrancando para o longínquo Vaz Lobo, quis justificar-se, mas o Dr. Odorico varreu-lhe as desculpas:
— Não quero conversa!
Exagerava a autoridade para deslumbrar a pequena. O motorista calou-se. E, então, depois de ter exercido o Poder Judiciário, o ex-promotor de Vale das Almas vira-se para Si­lene e faz-lhe perguntas. Com uma naturalidade muito terna de avô tomou-lhe a mão. Ao saber que a menina tinha apenas 14 anos (aparentava mais), virou-se com uma surpresa delicada. Pensou que, na mulher, certas idades constituem, digamos assim, um afrodisíaco eficacíssimo. Quatorze anos!
Fez para si mesmo um comentário que ele próprio achou irrisório, extravagante: “Todas as mulheres deviam ter 14 anos!” Ao mesmo tempo, lembrou-se dos jornalistas que cumprimen­tara, na porta do Jornal do Brasil, o Oto Lara e o Wilson. Este era apenas jornalista e poeta. Mas o Oto fazia uns roman­ces, isto é, uns contos um tanto livres e, mesmo, excitantes. Talvez ao vê-lo com uma colegial (e tão linda), o rapaz resol­vesse metê-lo na sua ficção irreverente. O Dr. Odorico já se via na pele de um personagem que, sob a proteção da toga, caçava menores à porta dos colégios — assim consumando os seus miseráveis apetites. “Bom rapaz, o Oto, mas um tanto desorientado”, concluiu. No fundo, a idéia de se ver retratado como um sátiro do Judiciário (e com a Engraçadinha por ví­tima) fez-lhe um grande bem.
Houve um momento em que o Dr. Odorico desesperou-se. Perguntou a si mesmo, de olho no taxímetro: “Mas será que não chegamos nunca?” O preço da corrida devia ser uma dessas coisas astronômicas. Finalmente, Silene apontou:
— Ali.
O relógio marcava 150 cruzeiros (ladrões!). E, por um momento, enquanto o chofer reduzia a marcha, e já corria junto ao meio-fio, ele esqueceu-se do taxímetro. Deus, o destino, o diabo, ou que nome tenha, colocara novamente Engraçadinha (e a filha) na sua frente. Naqueles 20 anos, tinha acontecido tudo. Ele se casara duas vezes. A primeira mulher, que morre­ra, era uma débil mental; e a segunda, professora pública, pare­cia-lhe, textualmente, uma víbora de túmulo de faraó. Dr. Odo­rico desceu na frente e oferecia a mão à Silene. Baixa a voz:
— Espera. Quero entrar contigo — e completa: — vou fazer uma surpresa.
Dirige-se ao chofer com uma surda irritação de pagador:
— Rapaz, podia ter te metido na cadeia! — pausa e faz menção de puxar a carteira: — Quanto é?
O outro, com as orelhas incendiadas, fez um gesto:
— Doutor, paga quanto quiser!
Dr. Odorico larga a carteira no bolso:
— Obrigado, amigo! Até a vista! E olha: não faça mais isso!
Desgovernado, o chofer arrancou, sem levar-lhe um tostão. A casa pareceu ao juiz um ‘pardieiro imundo’. Entra com Silene que, de minuto a minuto, parecia ficar mais linda. Na porta da sala, Dr. Odorico estaca: via D. Engraçadinha ligando um pe­queno aparelho de rádio; e, sentado, num canto, de camisa rubro-negra, sem mangas, chinelos, Zózimo. E, então, da porta, Dr. Odorico Quintela ergue o braço e declama, como, há 20 anos, no cemitério:
— Amantes? Nunca as teve!

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