terça-feira, 13 de outubro de 2009

CAPÍTULO XLI

Colocou-se atrás de Engraçadinha. Via a carne delicada de sua nuca, de um moreno-claro, com uma penugem muito leve. Com a gaveta aberta na sua frente, ela apanhava a toalha e os pequenos guardanapos. Queria dar ao visitante uma impres­são de mesa sóbria, mas digna (e, sobretudo, achava os guar­danapos indispensáveis). Em cima, junto ao quadro de S. Jorge a lâmpada azul tinha pequeninas sujeiras de mosca.
Com a garganta contraída, ele murmura:
— Engraçadinha.
Quando ela se virasse, seria agarrada, colada ao seu corpo, beijada no pescoço. “Dou-lhe um beijo no pescoço!”, dizia men­talmente. Já a imaginava cedendo, retribuindo, também excita­da e... Ao mesmo tempo, porém, que ele a chamava, ouvia, atrás de si, uma voz de homem numa exclamação alegre:
— Mamãe!
Dr. Odorico volta-se, estupefato. “O dedo de Deus!”, eis o que pensa, tumultuosamente, recuando. Mais um segundo, e ele, o juiz, o magistrado, futuro desembargador, teria sido apa­nhado como um sátiro de suspensórios, atracado ao pescoço de uma senhora honesta como as que mais o fossem. Engraça­dinha vira-se também, e com um tão vivo movimento, que um dos guardanapos caiu. Rápido, o juiz curva-se para apanhá-lo e o devolve. Engraçadinha agradece e apresenta:
— Meu filho mais velho, Durval.
O rapaz que parara, surpreso, ante aquele Adolphe Menjou em suspensórios, sorria, agora, contrafeito:
— Boa noite.
Engraçadinha continuava derramando os guardanapos em cima da mesa:
— Durval, esse senhor foi um grande amigo de seu avô, no Espírito Santo, — e sorria, vermelha, sem ter de quê: — Dr. Odorico... Ah, Quintela! Dr. Odorico Quintela.
O velho, estupefato, não tirava os olhos daquele rapagão. Finalmente, não se conteve:
— Mas escuta cá! Seu filho, Engraçadinha — interrom­pe-se, atrapalhado —, posso chamá-la assim?
Diz confusa:
— Ora!
No fundo, porém, qualquer intimidade masculina a irritava e, mesmo, a ofendia. Gostaria que todos a chamassem de dona, de senhora, inclusive as mulheres. Ele prosseguia, depois de limpar um pigarro:
— Quando seu filho entrou, Engraçadinha — repetiu-lhe o nome sem necessidade, por puro prazer, sentindo cócega no céu da boca —, eu me lembrei de uma pessoa... Ele é a cara de um rapaz que morreu. Sim, um rapaz que eu vi, uma vez, com o Dr. Arnaldo, na Assembléia. Mas tão parecido que eu tomei um susto! — E repetia: — E a cara, Engraçadinha! Era seu primo o que morreu?
Ela, de vista baixa, estendeu a toalha, agoniada, res­pondeu:
— Primo.
E, súbito, o juiz lembrou-se:
— Sílvio! — e insistia, com uma satisfação profunda: — Exatamente, Sílvio. Morreu de repente. Agora me lembro: de repente, não foi de repente? Morreu de que mesmo?
Balbuciou, dilacerada, a primeira coisa que lhe ocorreu:
— Pneumonia.
Engraçadinha está pondo os pratos. “Não tem empregada”, pensa o juiz com satisfação: “E que rapaz bonito!” Durval apa­nhou uma banana na fruteira:
— E Maninha?
— Saiu.
E ele, de boca cheia:
— Foi onde?
Comia, digamos, com uma escandalosa alegria vital. Era uma voracidade a um tempo simpática e fascinante. Dr. Odorico, que andava de dieta, surpreendeu-se a mastigar em seco, por imitação. Engraçadinha respondia, distribuindo os talheres:
— Volta já.
Durval já arrasara a imensa, interminável, banana-d’água. Queria ir buscar a irmã caçula. A mãe ralhou, com certa im­paciência.
— Fica quieto!
A verdade é que não queria ficar sozinha com um homem. “Se, ao menos, tivesse uma empregada!” De mais a mais, ainda não sabia se estava satisfeita ou não com a visita. Ultimamente, ela experimentava, com freqüência, a sensação de que estava cercada de abismos. Aquele homem vinha reativar e exasperar, justamente, os abismos do passado. Com os suspensórios pe­sando na alma, Dr. Odorico bate nas costas maciças de Durval:
— Mas é um rapagão!
De fato, no seu moreno intenso, Durval era solidamente belo como os havaianos de Hollywood. E o Dr. Odorico, que sempre fora um feio e, além de feio, um asmático, concluía, para si mesmo: “Esse rapaz é de impressionar até um homem!” Não se conformava, porém, com a espantosa semelhança. “Pa­recido com o primo e não com o pai!”, era o seu escândalo mudo. E imaginava que, na rua, as mulheres haviam de despi-lo com o olhar. Continuou na mesma ordem de pensamento: “As mulheres têm a imaginação muito mais erótica do que nós.” Estava certo de que a vida interior feminina é toda feita de fantasias obscenas.
Sentando-se de frente para Durval e pousando a mão no seu joelho, pergunta:
— Estuda, jovem?
— Trabalho.
E o outro, exagerando o interesse:
— Comércio?
Engraçadinha interfere:
— Banco.
Dr. Odorico ergue-se, com o olhar varado de luz:
— Bancário, então? Mas ótimo!
Engraçadinha tem um sorriso envergonhado:
— Mas pagam pouco!
Durval repete:
— Muito mal!
O juiz pergunta, com escândalo:
— Mas como? Pagam pouco? E escuta — vira-se impe­tuosamente para Engraçadinha: — Eu tenho relações, compre­ende? Amizades! Respeitam muito o Judiciário! E, talvez, quem sabe? Mas trabalha onde?
— Prolar.
Ele recua, de olhos esbugalhados:
— Na Prolar? Meu Deus! Mas não é possível!
Vai de uma extremidade a outra da sala, valorizando ao máximo a situação. Ao mesmo tempo, perguntava a si mesmo: “Estarei exagerando?” Já mais contido, dirige-se a Engraçadi­nha, e só a Engraçadinha, como se o rapaz, de repente, cessasse de existir:
— Sabe quem me mandou aqui? — faz a pausa necessária e completa, incisivo: — Deus! Foi Deus!
Engraçadinha crispa-se. Uma voz interior está dizendo: “Não usar o seu santo nome em vão!” Mas o outro, inflamado (e disposto a tirar partido da oportunidade) explica:
— Parece exagero, Engraçadinha. Mas escuta cá: Deus se manifesta onde? Nas coincidências! É ou não é? Sim, senhor: é nas coincidências que ele se manifesta! Agora mesmo: seu filho trabalha justamente na Prolar! Na Prolar, onde eu tenho relações, amizades e onde eu conheço o Benício! Jovem, quem é o Benício? Sim, o Benício Ferreira Filho? É lá o quê? Diz!
— Um dos chefões.
Dr. Odorico exulta:
— Exato: um dos chefões. O Benício é meu! — batia no peito, com uma convicção feroz. Meu! — e virando-se para Engraçadinha: — Uma grande praça! E otimista, talvez a única sanidade mental do Brasil! Eu peço ao Benício, Engraçadinha! Ele te aumenta, rapaz, te dá um bom aumento!
Andando de um lado para outro, numa espécie de em­briaguez, repete: “Deus está nas coincidências!” Engraçadinha quer agradecer:
— Desde já...
Interrompe:
— Não me agradeça, Engraçadinha! Não me agradeça! Para que serve o Judiciário?
No seu arroubo, só faltou dizer que o Judiciário serve para isso mesmo, ou seja, para arranjar empregos. Sentindo que a gratidão turvava o olhar do ser amado, ele exaltou-se ainda mais: “Graças a Deus, todo mundo tem medo do Judiciário” — fez um gesto largo que parecia abranger, do presidente da República ao mata-mosquito; e repetia, exaltado: “Ninguém está livre de um processo.” Ia acrescentar: “Nem Jesus Cristo”, mas contornou a irreverência. O Judiciário era o Medo Origi­nal do homem.
Sentou-se, ofegante. Enxugou o suor da nuca. Estava con­vencido de que Deus o mandara ali; e pensava: “A semelhança do rapaz esconde ou, por outra, não esconde uma grossa ban­dalheira.”

*

Vinha o Zózimo, carregado de garrafas. Ao lado acompanhando-o, tenazmente, o Aruba, repórter de O Dia, e que morava num outro prédio da esquina. Atrasando Zózimo, o Aruba estrebuchava:
— O Juraci não vai ser presidente, agradeça ao Carlos Lacerda. O Juraci ia ser presidente! O ódio do Juraci pelo Car­los, ah, o ódio do Juraci pelo Carlos!
— Batata?
O Aruba, que muitos chamavam de Arubinha, riu, pesada­mente (e tinha o olho rútilo):
— Batatíssima! O Juraci veio aqui falar com o Juscelino. O Juscelino topou, desde que, claro!, o Juraci, é evidente, fosse candidato da UDN. O Carlos Lacerda soube e já sabe. Foi, correndo, buscar o Jânio!
Zózimo, aflito, estava vendo a hora em que ia haver, ali, um desabamento de garrafas. Mas o Arubinha inflamava-se: “O Juraci nunca mais vai ser presidente da República, nunca mais!, por causa do Carlos. Eu, se fosse o Juraci, te digo: eu esperava o Carlos Lacerda, dava-lhe um tiro na cara! Na boca! Matava-o a pauladas, no meio da rua! A pauladas, tranqüi­lamente!”
Finalmente, Zózimo pôde chegar em casa. Estavam pre­sentes as outras filhas (todas bonitas), menos Silene. Engraça­dinha, num descontentamento cruel, imaginava que ela estivesse parando, aqui e ali, para conversar com rapazes. Em Silene, o flerte não era nem simpatia, nem voluptuosidade, mas automatismo. Por várias vezes, Durval, também angustiado, quis bus­cá-la. Engraçadinha opôs-se, por motivos que não ousaria con­fessar. A filha mais velha teve um brusco desabafo:
— Estou com uma fome danada!
Dr. Odorico, feliz, pensava que um dos bons achados da sociedade capitalista é a mulher bonita, pobre e voraz. “Na Itália, durante a guerra, comprava-se uma mulher por um cigarro. E, entre nós, um flagelado vende uma filha por um pedaço de rapadura.” Finalmente, Silene aparece, com as com­pras. Durval, que estava sentado, ergue-se transfigurado por uma alegria tão ansiosa que Engraçadinha, que o observava, pensou, desesperada: “Recebe a irmã como uma namorada!” Ele exclama com uma voz a um tempo doce e cálida:
— Custou, maninha!
Mas já Engraçadinha a chamava, com os olhos escuros de angústia: “Chega aqui, Silene!” Pediu licença e a levou pela mão. Silene ia surpresa e inquieta. Dentro do quarto, Engraça­dinha diz: “Quero ver uma coisa.” Num movimento rápido, que a outra não pôde prever, apanha a saia da menina e a levanta até a cintura. Exclama, então, rouca de ódio:
— Nylon!
Fora de si, esbofeteou-a.

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