quarta-feira, 14 de outubro de 2009

CAPÍTULO XLII

Teve um brilho cruel nos olhos verdes:
— Mamãe, não me encoste a mão! Olha que eu, bom!
Engraçadinha agarrou-a pelo pulso:
— Cala a boca! Nem mais uma palavra! Cala a boca!
Quis ainda falar, mas a mãe torce ligeiramente o seu pulso:
— Cala essa boca, já disse!
Silenciosa e tensa, Silene imagina-se esbofeteando a mãe. “Se eu reagisse, se eu me atracasse!” Bruscamente, muda de atitude; ergue a cabeça e, sempre mascando chiclete, tem o de­safio cínico:
— Não doeu!
Pensa: “Não nasci pra essa vida!” Engraçadinha, ainda vibrante, trinca os dentes:
— Quem te deu isso?
— Ninguém.
Sacudiu-a:
— Quem?
E a filha, incerta: “Comprei.” Rápida, Engraçadinha se­gura o queixo da filha e imobiliza o seu rosto:
— Olha pra mim. Responde. Quem te deu?
Desesperada, responde:
— Todo o mundo usa isso!
De novo, sacode a filha: “Escuta! Não interessa todo o mundo! Quero saber quem te deu?” Diz, num sopro: “Vanda.” Engraçadinha pensa: “Mente. Não foi Vanda. Foi um homem. Isso é presente de homem.” Larga a filha (está chorando):
— Tira essa e põe outra.
Ergue o rosto:
— Ora, mamãe!
Neste momento, batem na porta. “Como é?”, pergunta Zózimo. Engraçadinha vira-se; responde do fundo de sua angús­tia: “Já vai.” O marido afasta-se. Ameaça: “Ah, não tira?” Abaixa-se, quer levantar a saia da filha. Esta recua:
— Pode deixar que eu ponho!
— Põe, anda!
Obedece, desfigurada de raiva. Engraçadinha estende a mão: “Dá esse negócio!” Aperta na mão a pecinha minúscula, elástica, ideal. “Como é que uma mãe permite que a filha...” eis o que pensa; ajunta para si mesma: “Mas se as próprias mães também usam! Se senhoras andam com isso! Se uma mu­lher leva uma queda...” Aperta ainda aquela coisinha de nylon e, com a boca contraída, pensa: “Eu também era assim.” Por um instante, lembra-se daquela noite — há vinte e poucos anos — em que chamara Sílvio e ficara nua para ele, perdida-mente nua.
— Vamos, que tem visita, mas olha: depois converso contigo.
Está certa que foi um homem que deu à filha (14 anos!), de presente, a calcinha de nylon.
Matilde e Arlete, as mais velhas, estavam na cozinha, fa­zendo uma omelete de fiambre (sobrara carne do almoço). Dr. Odorico, que já lavara as mãos, percebera, de relance, que não havia ali geladeira. Enxugando as mãos, com assistência do havaiano de filme, pensava: “Eu podia dar uma geladeira a essa turma. À prestação, um conto e tanto por mês. O diabo é a entrada.” Não lhe parecia nada mal a gratidão de cinco mulheres bonitas (quatro filhas e uma mãe). Voltou para a sala. Para onde se virasse, lá via uma pequena linda. Estava radian­te: “É raro uma família, onde todas as mulheres — da mãe à caçula — sejam bonitas.”
Quando Engraçadinha apareceu, envergonhada da própria ausência (e, por isso, sentindo-se uma dona-de-casa relapsa), Dr. Odorico fazia a pergunta geral:
— Alguém aqui assistiu a esse filme?
Engraçadinha senta-se na cabeceira. Arlete responde:
— Ninguém.
Estimulado pela presença de Engraçadinha, o ex-promotor alteia a voz:
— Ninguém assistiu.
— Eu.
Continua:
— Você. Mas você é homem! O caso é o seguinte.
Engraçadinha o interrompe. Quer desculpar-se da comida de pobre: “Arranjamos só um pouquinho de carne...” O juiz tem um ‘oh’ de escândalo: “Eu não sou de cerimônia’.” E ela, ainda envergonhada da mesa pobre: “Gosta de feijão?” Sacode a cabeça numa espécie de repelão cívico:
— O nosso feijão! Claro que aceito! O que eu não topo...
Disse ‘não topo’ com ênfase, como se a expressão plebéia o aproximasse daquela família. Insistiu, já com uma salivação intensa:
— ...não topo é cardápio em francês. Tem farinha? Mas como eu ia dizendo: a Europa é uma ilusão!
Uma extravagância puxa a outra. Decidido a romper com a sua miserável dieta, queria pimenta. Concluía para si mesmo: “O pobre é que sabe comer!” Punha farinha no feijão, ao mes­mo tempo que lhe ocorreu o vaticínio meio lúgubre: “Hoje, a minha úlcera voa pelos ares!” Estava num estado próximo da embriaguez, como se o feijão, a farinha e aquele genial ensopadinho de abóbora lhe subissem à cabeça. Abaixo as papinhas da dieta! Antes de começar a comer, já havia, nele, um trabalho de mandíbulas vorazes. A propósito do cardápio em francês, falou de boca cheia:
— A Europa é uma ilusão! O Oto Lara...
Engraçadinha interrompe: “Aceita um pouco de omelete?” Respondeu, vivamente: “Aceito! Aceito!” Ele próprio estendeu o prato. Pensando na calcinha de nylon, Engraçadinha serve-o. Zózimo cutuca o filho:
— Abre a cerveja.
Guida levanta-se para apanhar o abridor. Olhando aquelas cinco mulheres com ar de dono, de proprietário, Dr. Odorico passa adiante:
— O Oto Lara, um rapaz de Minas — e repetia por ex­tenso, como num cartão de visitas —, Oto Lara Resende, que chegou da Europa, um dia destes. Rapaz inteligente, uma men­talidade! Mas o Oto acha que a Europa... — parte o bife, espantado da própria voracidade. — O Oto tem muito espírito! Diz que a Europa é uma burrice aparelhada de museus.
Parou para beber cerveja preta. Lambeu a espuma nos beiços:
— Burrice aparelhada de museus, torres, o diabo. Ao passo que o Brasil é o analfabetismo genial! Vejam o achado do Oto: o europeu é o burro, o jumento que tem, atrás de si, a Notre-Dame, o túmulo de Napoleão e nós...
Pára, meio confuso. Ia dizer que o nosso jogador de sinuca, sem o penacho de nenhuma Revolução Francesa, era duma des­lumbrante boçalidade criadora: “Estou bêbedo”, pensa, surpre­so e descontente do próprio raciocínio. “Não foi bem isso o que o Oto me disse.” Na cabeceira, cruzando os talheres, En­graçadinha deixa escapar bruscamente a exclamação:
— Que cabeça a minha!
Zózimo curvou-se:
— Que foi?
Ela, desesperada:
— Esqueci a oração! Não fiz a oração!
De fato, há anos (desde que se convertera) que a família não fazia uma refeição sem que ela orasse, inicialmente. Naque­le dia, ocorrera, pela primeira vez, o lapso abominável. A sur­presa da visita e, além disso, a obsessão da calcinha de nylon. Dr. Odorico não entende; exclama, interiormente: “Mas que piada é essa de oração?” Olha Engraçadinha numa interrogação muda. Ela explica, sôfrega:
— Sabe? Eu me converti — pausa e acrescenta —, sou protestante. Batista.
Ele enxuga os lábios com um dos guardanapos que a famí­lia só usava nas visitas memoráveis. Pigarreia:
— Muito bem! Muito bem!
No fundo, porém, estava em pânico. “Uma fanática!”, era o que pensava. Tratando-se de fanatismo religioso, teria, então, que dar a geladeira. Fez sarcasmo, acabando de beber o resto de cerveja: “A geladeira contra a fé!” Desejou-a mais do que nunca, agora que a sabia uma religiosa praticante. Imaginou Engraçadinha, nua, nos seus braços, vaiada de escrúpulos ine­fáveis. Sentia-se bêbedo e, no entanto, argumentava: “Bêbedo de cerveja preta, cerveja de mulher grávida?” Engraçadinha perguntava a Matilde sobre o filme de que falavam anterior­mente. Matilde responde:
— Les Amants.
Ela insiste:
— O tal?
Novo arroubo do juiz:
— É uma vergonha! Uma indignidade!
Engraçadinha tem um arrebatamento:
— O cúmulo que a Polícia deixe!
Dr. Odorico ergue-se. Precisa de espaço para a sua ve­emência:
— Não é a Polícia, Engraçadinha! Não é a Justiça! — pausa e ergue a mão de dedos retorcidos — Nem é o filme!
Engraçadinha fez um ar de quem pergunta: “Então quem é?” Ele exulta:
— É a platéia! É a fila e, para encurtar, a sociedade bra­sileira! É a família brasileira — espera um pouco e prossegue. — Não assisti a esse filme, nem quero! Mas o filme é um deta­lhe! O trágico é ver a família brasileira.
Ocorreu-lhe, então, uma imagem, que lhe pareceu feliz: “Sim, a família brasileira, com a baba elástica e bovina de uma luxúria barata! Marido e mulher na fila; noivos; namorados! Veja bem: a família brasileira atrás de uma tal cena, onde o amante... Vou parar, Engraçadinha. Mas afirmo — não há mais ‘família brasileira’. Acabou.”
Quando Arlete trouxe o cafezinho, Iara veio chamar Silene na porta. Iara era uma colega e vizinha, filha de D. Araci e irmã do Leleco, um rapaz que estava querendo namorar Silene. Iara, moreninha e viva, dá o recado:
— O Leleco está te esperando.
— Vem comigo.
Sai com a amiga. Na esquina está o rapaz, de blusa azul, o cabelo ainda pingando do banho recente. Ele, que estava mastigando um palito de fósforo, enxota a irmã: “Cai fora.” Caminha alguns passos com Silene:
— Viste o filme?
— Vi.
— Que tal?
— Mais ou menos.
Ela prende o chiclete no dente e o estica entre dois dedos. Fora, com umas coleguinhas — falsificando a data da carteirinha de estudante — assistir ao Les Amants. Agora Leleco per­gunta:
— Vais?
— Onde?
— Lá?
Olha-o de lado:
— E se eu for?

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