quinta-feira, 15 de outubro de 2009

CAPÍTULO XLIII

Leleco sente a fragilidade da menina e baixa a voz:
— Olha! Apartamento cem por cento, batata! Ninguém desconfia. Num andar, onde tem dentista, alfaiate, escritório!
— Que rua?
Quer segurá-la. Silene puxa o braço:
— Tira a mão!
E ele:
— Senador Dantas.
Vacila ainda (mas já numa espécie de vertigem):
— Posso levar a Vanda?
Faz espanto:
— Pra que Vanda? Não interessa Vanda! Só nós dois e olha: tem vitrola, ouviste?
Por um instante, um jeito taciturno, Silene diz, a meia voz, com inconsciente doçura: “Senador Dantas.” Sôfrego, ele continua:
— A um passo do Tabuleiro da Baiana. Você toma à sua direita, logo depois da Loteria Federal. É um instantinho e...
Decide, ao mesmo tempo que cruza os braços, num. arrepio intenso:
— Vou.
Em cima do meio-fio, numa alegria feroz, que o transfigu­ra, aperta o braço da menina com a mão quente e forte (Silene sente um formigamento no estômago): “Até já fiz um programa, vê só. Primeiro olha: a gente assiste ao Les Amants”.
Silene ergue vivamente o rosto:
— Outra vez?
Tem um bonito riso selvagem:
— Mas escuta! Ouve o resto! A gente não vê o filme todo. Só até aquela cena, a tal.
Levanta a cabeça, num movimento lindo:
— Você é de morte!
Leleco continua, falando mais de perto, queimando-a com o seu hálito e juntando o corpo. Silene olha em torno, no pânico de ser vista. O rapaz, com a mão na sua cintura, puxa a me­nina: -
— Saímos do cinema e já sabe: do Pathé lá é um pulo. Eu entro primeiro e você sobe sozinha — a mão do rapaz pesa sobre os quadris vivos; e continua —: lá é que eu quero ver a tua classe e se você...
Desesperada, crispa-se: “Aqui não...” Geme, abandonando-se: “Não quero...” Súbito, Leleco afasta-se, abafando a voz:
— Teu irmão.

*

Durval reconhecera a irmã, ao longe (a irmã com al­guém!), pela cor do vestido. Caminha a seu encontro, em pas­sadas largas e firmes. Leleco apanha um cigarro no bolso, ao mesmo tempo que umedece os lábios. Faz o comentário interior: “Espeto! Espeto!” Silene pergunta a si mesma: “Será que a saia está amarrotada?” Durval chega e a puxa pelo braço:
— Vamos embora!
Leleco procura ser natural:
— Olá, Durval!
Sem responder, Durval chega a dar dois, três passos. Esta­ca e diz para a irmã:
— Vai na frente. Espera ali.
Assustada, chama: “Durval!” O rapaz vira-se enfurecido: “Não te mete!” Silene caminha, olhando de vez em quando, para trás. Lívido, Leleco pensa: “Parada com Durval é dura. Forte pra chuchu. Sabe jiu-jitsu.” Não era bem jiu-jitsu, mas judô (dera umas aulas de judô). Os dois rapazes estão frente a frente.
Na sua agressividade contida, Durval põe a mão no ombro do outro:
— Vou te avisar o seguinte: você não me olha mais pra minha irmã!
Quer explicar:
— Escuta, Durval!
Corta, brutalmente:
— Não fala! Não diz nada! Quando encontrar minha irmã, já sabe: baixa os olhos. E se eu souber, olha!
Balbucia: “Mas que foi que houve?” Durval diz o resto:
— Você pode ser maluco pra suas negras...
Leleco contrai a boca, num esgar de choro: “Não sou maluco!” Durval espeta o dedo no seu peito:
— Com toda a tua loucura, eu te arrebento! Cala a boca e se disser mais uma palavra te parto a cara, aqui, agora! Duvida?
Então, sem uma palavra, corrido, Leleco afasta-se. Sua vontade era correr, gritar. Repetia para si mesmo, chorando: “Eu não sou maluco!” E, súbito, teve a sensação, que o fez apressar o passo: parecia-lhe que as paredes, as janelas, as gra­des, as casas, iam correr atrás dele, estrangulá-lo.

*

Durval era um forte bom, um forte manso. Tinha sempre um ar de quem pede desculpas da própria vitalidade. Nas pou­cas vezes em que brigara (cedendo a provocações intoleráveis), agarrava o adversário e exigia-lhe, aos berros: “Me dá na cara, anda! Me dá na cara!” E só depois de levar um tapa é que lo­grava um mínimo de chama interior, de agressividade, para arrebentar o outro. Mas ao primeiro tombo do adversário, mor­dia-se de remorso e de pena. Muitas vezes, punha o outro nas costas, como o peixe do óleo de fígado, e o levava para a far­mácia mais próxima.
Volta e leva Silene pelo braço:
— Maninha! Por tua causa, humilhei e quase meti a mão naquela besta!
Durval está sofrendo: “Não se humilha um homem!” Silene acompanha com sacrifício o seu passo largo; exagera a sua inocência:
— Mas que foi que eu fiz?
Já sem cólera, e com uma tristeza pesada, vai dizendo:
— Escuta, Silene! Ou você não sabe que o Leleco é maluco?
Responde: “Não sei disso, não!” Ao mesmo tempo pensa: “Palpite! Conversa! Maluco, pois sim!” Com uma dor surda, tenta convencê-la:
— Presta atenção: maluco de rasgar dinheiro e já teve acessos, fez tratamento. Sabe quem era o médico dele? Aquele, o Dr. Areal? Não é o Dr. Areal? É, sim! Dr. Areal. Aliás, outro maluco. E o Dr. Areal deu ao Leleco uns conselhos, Maninha!
Numa afetação de menina mimada, diz:
— Mas eu não estou namorando o Leleco!
Durval diminui o passo:
— E nem gosta dele?
Faz um ar de pouco caso:
— Nem me interessa!
Durval respira fundo. Passa o braço em torno da irmã (está numa euforia brutal):
— Mas olha! Não estou brincando! Leleco é capaz de saltar no pescoço duma pequena. Sério!

*

Quando chegam a casa, o Dr. Odorico já está de saída. Dizia ao casal e às filhas, com um gesto largo:
— O europeu ou é um Paul Valéry ou uma besta!
Esteve para dizer ‘Victor Hugo’, que era mais conhecido, mas o ‘Valéry’ escapou-lhe, irresistivelmente. Ao ver Silene, adiantou-se. Bateu-lhe na face, chamando-a de “minha flor”. Acrescentou, porém: “Mas tem um defeito. Uma menina tão bonitinha não deve mascar chiclete!” Novamente grave, diz as palavras finais:
— Falando de alma para alma...
Engraçadinha interrompe:
— Agora que já sabe o caminho!
Ele continua:
— Convenhamos! Uma casa sem geladeira, sem televisão! — abre e ressalva: — Falo como amigo, claro! A televisão faz falta! Tem bons programas, educativos, inclusive filmes de crianças: o Rim-Tim-Tim! Mas vamos ver — insinuou, — vamos ver se, com o tempo, quem sabe?
Zózimo bate-lhe no ombro:
— Apareça!
O velho combinara tudo com a família. No dia seguinte, Durval iria procurá-lo. Ele repetira, continuamente: “Tenho relações, amizades!” Dava a entender que o Judiciário era uma potência sombria e esmagadora. Ao lado, silencioso, Durval pensa na cena com o Leleco. Por um momento, tivera um tal ódio que sentira em si a capacidade de matar. Zózimo, com um paletó de pijama em cima da camisa rubro-negra, aperta a mão do juiz.
Durval levou-o até ao lotação. Finalmente, o Dr. Odorico embarcou e fazia acenos de sua janelinha: “Recomendações.”

*

O Dr. Odorico deixara em Zózimo a sensação do sábio total. Engraçadinha, um pouco febril de tantas surpresas, tran­cou-se com as filhas no quarto. No seu escrúpulo, chegou a fechar a porta a chave. Em seguida, foi apanhar a calcinha de nylon debaixo do colchão:
— Estão vendo isso aqui?
Ergue a calcinha, segurando-a pelas duas extremidades. Matilde coça a cabeça com um grampo:
— De Silene.
E ela, na sua raiva:
— Isso e nada é a mesma coisa. Digo: é melhor, mais decente, andar sem nada. Deus me perdoe.
Arlete suspira: “Ah, mamãe! Fui eu que disse, hoje, à senhora, que a Silene tinha saído assim. Mas não faz bicho-de-sete-cabeças!” Engraçadinha não gostava de usar certas expres­sões. Perdeu, porém, a cabeça: “Suas burras!” Silene está es­premendo uma espinha. Engraçadinha amassa a calcinha:
— Agora vocês vão me ouvir! Silene, preste atenção quan­do eu estiver falando!
— Ih, mamãe!
Contrai a boca:
— Eu quero avisar que se, Deus nos livre e guarde!, mas se uma das minhas filhas — fala olhando para a caçula e só para a caçula —, se uma das minhas filhas tiver de se prostituir, quero que Deus a leve antes. Prefiro ver uma filha morta que...
A voz lhe falta. Desesperada, olha as quatro filhas com uma espécie de terror. E, súbito, corre. Abre e sai, batendo a porta com violência. As filhas se entreolham. Silene tira o chiclete:
— Mamãe tem a mania de fazer carnaval!

*

Leleco salta na Praça Saenz Peña. Repete, no seu medo: “Eu não sou maluco.” Instintivamente, enfia dois dedos entre o primeiro e o segundo botão da camisa, aperta, de encontro ao peito, a medalhinha de santo, presente da avó (já falecida). Vê a turma, defronte do Carioca. O medo começa a se extin­guir no fundo do seu ser. A presença de uns três ou quatro companheiros — os mais ligados a si — dá-lhe uma sensação de plenitude. Atravessa a rua, bate nas costas do Bob. É logo cercado. Cabeça de Ovo (com seus cabelos anelados de um louro violento) pergunta:
— Vai?
Está agora ofegante de alegria:
— Topou. Amanhã. Batata. Mas olha.
Seu rosto toma uma expressão de maldade astuta:
— O irmão dela me xingou de maluco. Eu ia fazer quase tudo. Agora vou fazer tudo! Inclusive, vou tirar o cabaço, ah tiro!

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