sexta-feira, 16 de outubro de 2009

CAPÍTULO XLIV

Um ano atrás, o Leleco aparecera no consultório do Dr. Areal, psiquiatra de grã-finos. Diretor de uma fabulosa clínica de repouso, ele fazia, da medicina, um sacerdócio voracíssimo. Cobrava por consulta dois mil cruzeiros e os clientes precisavam marcar hora com dois, três dias de antecedência. Leleco trazia uma recomendação da Dra. Bruma, bacteriologista e ex-namora­da (ou ex-amante) do médico.
Leleco chega e vê, diante de si, um luxo quase caricatural. Cortinas, tapetes, almofadas, quadros, efeitos de luz, mobiliário e tudo com um gosto agressivo, espetacular, de Hollywood. Em tal ambiente, seria admissível até uma vitrola caça-níqueis, com disco de churrascaria. Esse frenético exagero fez mal à timidez pânica do rapaz. A enfermeira recebeu-o com a pergun­ta implacável:
— Consulta?
Leleco, que estava, ali, justamente por causa de suas ini­bições violentas, começou a tremer. Entregou à moça (de óculos) o envelope:
— Trouxe isso.
A enfermeira fez a dedução inapelável: “Carona.” Avisou, já com certa irritação: “Não sei se o doutor pode atender.” Vira e revira o envelope. Suspira: “Espera um momento.” Entra e, pouco depois, volta. Novo suspiro: “Mandou esperar.” Eram duas da tarde e só às sete e meia é que, finalmente, o psiquiatra o recebeu. O homem, que estava sentado, ergue-se, ao vê-lo. Coloca um cigarro na piteira, em silêncio. Enquanto o rapaz, vermelhíssimo, com a sua tumultuosa timidez, senta-se, o psiquiatra pensa na Dra. Bruma. Ela telefonara na véspera: “Eu sei que o psiquiatra e o anestesista cobram até da própria mãe. Mas eu vou mandar o afilhado de uma amiga e queria...” Queria que ele fizesse um preço camarada. Acendendo o cigar­ro, Dr. Areal pensa ainda na doutora (gorda a seu gosto, bem pesada, bem maciça). Quando ele a beijava, Dra. Bruma tor­cia-se, esganiçando a voz: “Ai não, que eu grito! Olha que eu faço escândalo!” Ainda agora, tantos anos depois, ele costuma­va dizer aos colegas: “Grande fêmea! Grande fêmea!” Contava os ardores da bacteriologista para fazer inveja aos outros.
Começa, perguntando:
— Você não pode pagar nada?
Varado de vergonha, diz:
— Nada.
Insiste:
— Nada mesmo? Digamos, a metade. Quinhentos mil réis? Nem isso?
Responde, com um esgar de choro:
— Nada.
A humilhação deu-lhe uma dispnéia insuportável. O rosto do médico toma uma expressão de malignidade intensa. Está tirando o avental, ao mesmo tempo que chama a enfermeira pela campainha. A moça apareceu. Entrega-lhe o avental e dá ordem: “Vai fechando.” Encosta a piteira no cinzeiro de cristal azul e apanha o paletó. Relembra para si mesmo: “A doutora tem uma sensibilidade mortal nos seios.” Já de paletó, andando de um lado para outro, começa sem olhar o rapaz:
— Que idade você tem mesmo?
— Dezenove.
Dr. Areal tira o cigarro da piteira e o abandona no cin­zeiro. Sopra a piteira e continua a andar (coloca a piteira no bolso do lenço). Recomeça:
— Dezenove anos. Muito bem. Até agora, segundo a Dra. Bruma, você nunca teve vida sexual.
Subitamente, o Dr. Areal vira-se para a enfermeira: “Te­lefona pra casa. Olha: telefona e diz que eu vou jantar.” A enfermeira apanha o aparelho. Ele insiste: “Diz que pode ir tirando.” Volta-se e, ao dar com o cliente, parece tomar um susto, como se tivesse esquecido, de uma maneira total e irre­mediável, aquela presença. Pigarreia:
— Dizia eu que... Ah, sim! Pois é: vamos fazer o se­guinte: você, agora, vai dar em cima de toda a mulher. Com­preendeu?
Balbucia:
— Não ouvi.
Ouvira sim e não entendia nada. Dr. Areal irrita-se:
— Escuta, rapaz: você é um tímido, não é? Sexualmente tímido. Vamos acabar com essa timidez sexual. Você vai dar em cima de toda a mulher, vai cantar todo o mundo.
Leleco ergueu-se, trêmulo. Queria explicar que era um pobre ser gelado de angústias; que tinha vontade de se meter debaixo dos lotações; ou atirar-se de um décimo-segundo an­dar. Ah, se pudesse, cairia, ali, de joelhos, gritando: “Oh, não me abandone! Não me deixe só!” Foi atrás do médico que já se retirava, Dr. Areal bocejou:
— Estamos entendidos? — e repetia: — Temos que com­bater sua timidez assim, compreendeu? Com o exagero oposto.
Leleco queria um remédio, um calmante pesado, que apaziguasse suas agonias e pavores. E, já de saída, Dr. Areal dá-lhe a última palavra:
— Nada de escrúpulos. Qualquer escrúpulo faz um mal danado. Passa a mão, rapaz. Olha: lembranças à Dra. Bruma. Audácia, ouviu? Agressividade.
O psiquiatra desce. Tem saudades da doutora. (“Fêmea e tanto.”) Quando eram amantes, ele gostava de manipular, com sombrio élan, aquelas nádegas maciças.

*

Leleco conhecia Silene desde garotinha. E quando menina tinha 9 anos, e ele 14, D. Araci não saía da casa de D. Engra­çadinha (as duas famílias eram vizinhas, em Cordovil). Tendo Silene, muito linda, vestidinho curto, ele pensava: “Oh, que coxas lindas!” Silene queria ser moça. Na ausência da mãe, punha os vestidos velhos de Engraçadinha; ou calçava os seus sapatos altos. Descobriu no gavetão um chapéu de plumas, ve­lhíssimo, e pôs aquilo. Já se dizia, na rua, que o Leleco era ‘doente’. Uma manhã, na escola, com os alunos formados, caíra, com ataque, durante o Hino da República (“Seja um pálio de luz desdobrado”). Ele imaginava: “Quando eu for grande, eu me caso com Silene.” Dormir com Silene. Morrer com Silene. Os dois no mesmo caixão.
Depois separaram-se. D. Araci, professora e viúva, veio morar em Vaz Lobo. Anos depois, ela soube que estava para alugar a casa da Vasconcelos Graça. Telefona depressa para Engraçadinha. E, pouco depois, a família mudava-se.

*

Certa vez, vendo Leleco jururu, Silene o exasperou:
— Tem medo de mim?
Treme diante da menina:
— Eu?
Foi implacável:
— Você quando fala comigo fica vermelhinho. Não disse? Já está vermelho! Batata!
Leleco lembra-se do médico: “Canta todo o mundo! Dá em cima, rapaz!” Com os beiços contraídos, murmura:
— I love you!
Os dois se olham. No seu espanto (e com um começo de ternura), Silene pergunta:
— Isso é piada ou batata?
Dilacerado de alegria, repete:
— I love you!
E pensa: “7 love you é mais bonito que ‘eu te amo’!” Estavam na casa de D. Araci. Silene fora ver Iara que saíra um momento. Ele luta consigo mesmo: “Vou beijar. Seguro e beijo. Agora. Beijo na face. Na boca. Primeiro, na face. Hoje, na face. Outro dia, na boca.” E repetia, para si mesmo: “Hoje. eu só beijo na face. Beijo de repente e...” Por um instante, a menina entreabre a boca como se estivesse realmente ofere­cendo o beijo. Espera e nada. Ri:
— Sabe que eu estou com a minha cara no chão?
E ele, sofrido:
— I love you.
Não lhe saía da cabeça o conselho do médico: “Canta todo o mundo!” Mas sente que, com a declaração em inglês, sua coragem estava esgotada. Talvez, mais tarde. “Agora, eu não tenho coragem de beijar.” De repente, curva a cabeça e a beija, rapidamente, nos lábios. Em seguida, recua, como se ela o fosse esbofetear. “Beijei na boca!” E, novamente, julgava ouvir o médico: “Nada de escrúpulos. Passa a mão. Audácia, rapaz!” Segundo Dr. Areal, a prostituta não enlouquece, senão excepcionalmente. A mulher honesta, sim, é que, devorada pe­los seus escrúpulos, está sempre no limite, na implacável fron­teira.
Leleco não faria mais nada. Então, a menina apanha entre as mãos o rosto do rapaz, beija-o na boca e prende, no dente, o seu lábio inferior, até sangrar. Quando se separam, ele mer­gulha o rosto nas duas mãos, soluça como uma criança. Silene passa a mão pela sua cabeça (crispada de pena e com um so­frimento surdo, que ela própria não saberia explicar). Disse apenas:
— Vem gente aí.
Na sua vergonha, Leleco abandona a sala. Iara vinha che­gando.

*

Silene não saberia dizer se gostava ou não dele. Pena talvez. Um pouco de voluptuosidade também. Sentia que, desde os 9 anos, seu desejo a perseguia. Dias depois, o Cabeça de Ovo o vê com a pequena. Quer saber quem é, quem não é. E baixa a voz, sórdido:
— Vamos dá uma ‘fria’ nessa cara?
Resistiu, a princípio. Foi descomposto: “Deixa de ser burro! Que foi que o médico te disse? Pois é.” Argumentaram: “Não tem nada demais.” O Bob cutuca: “Você põe Dexin na bebida...” Balbuciou: “Pra quê?” O outro teve a paciência de explicar:
— Oh, seu animal! Pra excitar. Ela toma isso e dança nuazinha na tua frente!
Sentindo fogo na garganta, pergunta: “Eu tomo também? Posso tomar?” Os outros afirmavam que uma pastilhazinha dis­solvida fazia um sujeito subir pelas paredes. Ele acabou convi­dando. Elogiou o apartamento: “Central, ouviste? Condução fácil.” Sentia-se menos tímido; já punha a mão na cintura da pequena... O apartamento era do Bob, filho de um dos graudões do SESI.
Cabeça de Ovo cutucava Leleco:
— Tem espelho, ouviste? Lá tem espelho, de frente pra cama e...
Bob batia-lhe nas costas:
— Você é o primeiro. Só depois é que nós aparecemos. Primeiro, você.

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