sábado, 17 de outubro de 2009

CAPÍTULO XLV

Cadelão doutrinara dias antes:
— Escuta cá: quando você for se encontrar com a pe­quena faz o seguinte: apanha dois comprimidos...
— De quê?
— De Melhoral, percebeste? Melhoral, estás escutando?
Repete, de olhos esbugalhados:
— Melhoral?
E o outro:
— Você dissolve os dois comprimidos num copo de cer­veja.
— E bebo.
Riu:
— Bebe. Bebe e já sabe: o sujeito fica uma fera solta, não tem medo de nada. Faz isso, que é batata.
Leleco, que admirava o Cadelão — um rapaz de Haddock Lobo, de peito maciço, um antebraço de pedra e capaz das vio­lências mais atrozes —, Leleco ergueu-se transfigurado. Estava de encontro marcado com Silene. “Vou fazer esse troço, já.” Passou no boteco e pensava: “O Cadelão ainda vai matar um.” O homem da caixa deu-lhe os comprimidos. Sentou-se numa mesa dos fundos. E, sôfrego, fez a mistura. Ergueu o copo de cerveja, contra a luz, e ficou olhando a breve efervescência. Sozinho, tem um riso surdo: “Agora bebo.” A certeza de que, depois, não teria medo nem de Silene nem de mulher nenhuma fez-lhe um desesperado bem. Começou a beber: “Vou ter coragem pra burro. Coragem pra pegar qualquer uma no peito. Coragem.” Pousou o copo e, por um momento, esperou a reação.
Começava a sentir a excitação nascendo. Era o efeito. “O Cadelão é batata”, diz para si mesmo. Ergue-se contraído. Ah, se pudesse conservar para sempre esta euforia! Imaginava: “Se­guro Silene e dou-lhe um chupão no pescoço.” Quando, pouco depois, encontrou-se com a garota era outro. Disse, segurando a menina pelos quadris:
— E lá, ouviste? Lá, a gente toma uma ‘onda moranga’.
Admirou-se:
— Onda o quê?
Tinha um riso contínuo e meio arquejante:
— Presta atenção: ‘onda moranga’. A gente pega um mo­rango, molha no éter e come.
— Éter?
— Éter. O efeito é igualzinho ao lança-perfume. Te digo o seguinte: o sujeito sobe pelas paredes.
Num espanto maravilhado, Silene parece sonhar: “Moran­gos com éter.”
O rapaz baixa a voz (e continua com o riso feio e pesado):
— Olha aqui.
Cata, nos bolsos, um recorte de jornal. Pergunta: “Tu conhece o Carlos Renato?” E ela: “Um que escreve?” O rapaz continua:
— Olha o que ele diz aqui. Onde é que está? Ah, está aqui. Escreveu que o amor diante do espelho... O sujeito vendo tudo...
Silene dá risada:
— Deus me livre!
Leleco segura o seu braço:
— Ouve o resto: “Feliz o casal que descobriu o espelho!” Tem mais. Escuta: “... casal é testemunha do próprio peca­do...” E lá, ouviste? Lá tem um espelho grande, de frente para a cama...
Ao mesmo tempo, Leleco pensa: “Tenho coragem pra dar e vender. Pego qualquer uma no peito!” Crispa as duas mãos nos quadris da pequena:
— Quer dizer que é batata?
Ergue o rosto, em desafio:
— Batata.

*

No dia seguinte, ia, pela primeira vez, ao apartamento. Imaginava-se molhando o morango no éter: a língua dormente do éter, áspera do morango. A cama perto do espelho. Não um único, mas vários. Sua forma refletida nos espelhos em va­riações delirantes. E, depois, contaria tudo à Vanda. Especula­va: — “Vanda vai cair de cara no chão.”
Nessa noite, Silene custou a dormir. “Sou diferente de minhas irmãs. Diferente de todo o mundo.” Via-se no aparta­mento: o Leleco passando lança-perfume em todo o seu corpo. Ela se torceria em cócegas mortais. E, depois, seu corpo — todo o seu corpo — ficaria gelado de éter. Finalmente, dor­miu. Sonhou que a sua nudez elástica, acrobática, frenética, era multiplicada em mil espelhos. Quem não dormiu um único minuto — e viu nascer o dia numa atormentada vigília — foi Engraçadinha. De olhos abertos no escuro, pensava no seu casamento. Ah, o juiz aparecera para soltar, naquela casa, to­dos os abismos do passado.
Sua primeira noite de esposa. Lembrava-se de tudo, com uma nitidez implacável. Dissera para Zózimo:
— Apaga a luz.
Na sua humildade trêmula, quer beijar-lhe a mão (apenas isso e pelo menos isso). Engraçadinha retira o braço. Atônito, ele pergunta:
— Nem isso?
— Nada.
Balbucia:
— Mas querida!
E ela:
— Eu te avisei, Zózimo. Só depois do nascimento. E se você, olha: sei que você é homem e precisa. Se você procurar na rua, eu não me incomodo, ouviu, Zózimo?
Disse apenas:
— Espero.
E ela:
— Mas falta tanto!
— Espero.
Fez uma pausa para acrescentar: “Ou você ou ninguém.” Aconteceu então uma coisa muito estranha. Durante todos os meses da gravidez, noite após noite, Engraçadinha teve o mesmo sonho, sempre o mesmo, sem um detalhe a menos, sem um detalhe a mais. Via, primeiro, a navalha, de fio diáfano e gelado; depois, o risco de luz; e, por fim, a carne para sempre ferida. Sílvio inclinava o rosto para dizer, baixo, com um olhar atônito de monstro marinho: “Deixei de ser homem, Engraçadinha.”. Ela começou a ter medo de dormir. Já achava que ia sonhar, até seu último segundo de vida; e que, mesmo morta, sonharia ainda com a ferida em flor e com os lençóis ensangüentados.
Até que, uma tarde — estava no sétimo mês — uma voz interior sopra a pergunta: “E se teu filho nascer mutilado?” Aquilo não lhe saiu mais da cabeça. Agarrou-se com todos os santos; fez promessas desvairadas; apelou para simpatias. Mas a obsessão trabalhava a sua mente, parecia destruir sua alma.
Felizmente, uma semana antes do parto, conhece uma Miss Thorndyke, norte-americana de 52 anos. (Tinha um cabelo es­tranho: de um louro áspero, ou melhor: cor de estopa seca. Um ligeiro estrabismo, um corpo fino e longo, um vestido que caía reto como uma camisola. E tão sem cintura, tão sem seios!) Foi Miss Thorndyke, solteirona e protestante, quem a salvou do desespero e, talvez, da loucura. Levou-a para a igreja do Méier. Falava com um ligeiro sotaque; trocava, geralmente, o sexo das coisas. Desde o primeiro momento, aquela Miss taciturna e sem amor, disse-lhe, crispada de certeza: “Seu filho nascer perfeitinha!” Era de arrepiar aqueles erros de anedota, de paródia, numa boca de santa. Engraçadinha pensava: “Se meu filho nas­cer defeituoso, eu mato, mato!” Imaginava-se esganando a criança. No dia do parto, foi terrível. Engraçadinha gemia alto e pesado. A parteira, uma lusa senhora, berrava, por sua vez:
— Não grita, que tu perdes as forças! Fecha a boca! Ai riquinha, que tu perdes as forças!
Num canto, voltada para a parede (fiel ao seu pudor de solteirona), Miss Thorndyke cantava hinos protestantes. Houve um momento em que a lusitana teve uma exclamação triunfal:
— Coroou! Força, riquinha! Falta pouco!
Miss Thorndyke, certa da eficácia do seu canto, esganiça a voz. Assim nasceu Durval — lindo, desde o primeiro ins­tante de luz, como um menino-deus. Ela esperou, sempre de costas, que a mãe fosse preparada e coberta. Virou-se, lenta­mente, ao mesmo tempo que a febre cingia a sua fronte magra: “Eu saber! eu saber!” Nesses ardores de fé, tinha-se a impressão de que até seus ossos eram vibrantes.

*

Passou o tempo. Depois, muito depois, quando todos os filhos estavam crescidos — Engraçadinha passou a uma nova obsessão. Olha o filho mais velho e a filha mais nova: “Sílvio e eu”, pensava, sentindo-se varada de presságios. Pedia: “Que Deus não consinta num desgraçado amor!” Na mesa, ao orar antes das refeições, não pedia pela saúde, nem pela felicidade de ninguém. Não importava que a família fosse destruída, um a um, contanto que... “Eu amei um irmão. Mas que esses dois não se amem.” Ao longo dos dias e dos meses, não tirava os olhos de um e de outro. “Parecem namorados.” Surpreendia entre os dois olhares e sorrisos de flerte. “Deus não o permita!” era o seu gemido interior.
No dia em que Silene devia ir, pela primeira vez, a um apartamento, Engraçadinha ouviu uma coisa que a gelou. To­mando café com a mãe, a pequena suspira:
— Mamãe, sabe que eu acho que não vou gostar de nin­guém?
— Que bobagem é essa?
— Eu só gostaria de um homem como Vavá. Bonito, bom, inteligente, como Vavá. Mamãe, não há ninguém mais bonito do que Vavá!

*

Às vinte para as duas, o grupo estava na porta do edifício, na Senador Dantas. Leleco entrega a Cadelão a caixa de mo­rangos. Bob o empurra:
— Chispa que está na hora. Nós vamos subir. Você sai depois da cena e vem.
O outro, que já tomara a cerveja com Melhoral, estufa o peito. Torce a boca:
— Mas olha. Vocês se escondem e só aparecem depois que eu...
Tudo combinado. Leleco, que já comprara as duas en­tradas para Les Amants, deixa o grupo. Quando chegou na porta do Pathezinho e olha, vê, ao longe, passando pela Câmara dos Vereadores, Silene, no seu uniforme colegial.

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