terça-feira, 20 de outubro de 2009

CAPÍTULO XLVIII

Na porta do Pathezinho Dr. Odorico pensava: “Mas essa mulher não me larga! Só a tiro!” De fato, ela Crispava no seu braço a mão curta e voraz de gorda. Casais da fila não tiravam os olhos daquela mulher sem pescoço e daquele velho elegante e démodé, de paletó cintado.
Disse, ao mesmo tempo, que dava um repelão:
— Lembranças, minha senhora, lembranças!
Esbarrou nela mesma, que se atravessou, na sua frente, inarredável:
— Mas que é que o senhor me diz?!
Então, aquele homem, que vivia infligindo a si mesmo as piores repressões, teve um dos raros desabafos de sua vida:
— Escuta, minha senhora! Sossega o periquito!
Aquele inesperado e indesculpável “sossega o periquito” estarreceu-a. Recua, ligeiramente:
— Como?
Já o Dr. Odorico não se continha mais:
— O que é que a senhora viu demais nesse filme, hem, minha senhora?
Geme:
— Aquela cena!
Riu, feroz:
— Que cena, minha senhora? Aquilo é comum, minha senhora, na intimidade dos lares mais respeitáveis! É o que se leva da vida, minha senhora, pode crer: é o que se leva da vida! Perfeitamente!
Estupefata com essa ferocidade jucunda, balbuciou:
— Mas então o senhor acha que...
Foi taxativo:
— Acho, minha senhora, acho! De mais a mais, os cul­pados somos nós. Esse filme, quando estreou, era tão inocente, tão puro!
Agora, era ele que a segurava solidamente pelo braço. Insistia, surpreso com o próprio raciocínio e a própria convic­ção: “Nunca vi tanta inocência!” De fato, na primeira vez em que assistira a Les Amants julgara sentir, nele, o tédio de uma pureza total. Continuou:
— Nós é que corrompemos o filme, nós! E, agora, o filme não é o mesmo: está degradado pela platéia! Qualquer dia a senhora há de ver os artistas improvisarem cacos, piadas obscenas! Compreendeu, minha senhora?
Ela já não entendia mais nada. Numa satisfação cruel (e meio indecorosa), Dr. Odorico desvencilhou-se, definitiva­mente:
— Passar bem, minha senhora!
Saiu triunfante. Jamais, em toda a sua vida, argumentara assim, com aquela agilidade e com aquela audácia. Atribuiu essa maior desenvoltura (e brilho) ao seu estimulante convívio com as novas gerações. O Oto Lara, se estivesse lá, ouvindo, teria certamente aprovado o seu rompante.
Apressou o passo, desesperado de encontrar Silene e seu acompanhante. E, súbito, ao passar pelo Amarelinho, é, nova­mente, agarrado. Ah, não! Agora era demais! Voltou-se, cego de raiva. Era o Ribas, um rapaz do Itamarati, cônsul de pri­meira classe. Dr. Odorico teve de fazer, contra si mesmo, uma repressão a mais. Sorriu até:
— Ah, vai bem?
Em vésperas de embarcar — ia correr mundo, conhecer mares, portos e ilhas —, o Ribas tinha, na pupila, um azul doce de Pierre Lotti. Com a sua pele fresca, de quem lavou o rosto há dez minutos, disse, incisivo, de sopetão:
— Vem sangue por aí! Muito sangue!
Apesar da pressa, Dr. Odorico faz espanto:
— Como assim?
E o outro, sem largá-lo:
— Ou o senhor tem ilusões?
Pigarreia, intrigado:
— Depende.
O Ribas prossegue, baixo, e com uma satisfação lúgubre:
— O senhor sabe que eu sou médium vidente? Não sabe? Pois sou: médium vidente. Tenho intuições, certezas estranhís­simas. E só não me desenvolvo porque acho, com franqueza, estou sendo franco, acho o espiritismo incompatível com o Itamarati. Nós temos lá poucos macumbeiros.
Por um momento, o Dr. Odorico esquece o jovem casal, esquece Engraçadinha, tudo. Faz uma espécie de careta: “Mas sangue?” Considerava o Ribas, com o seu ar meio nostálgico de Lotti, informadíssimo.
O outro prossegue, com uma dessas certezas inapeláveis:
— Pois uma das minhas intuições é, sabe qual? — pausa e muda de tom: — Dr. Odorico, não lhe parece que o Brasil está maduro para o crime político?
O juiz recua, escandalizado:
— Crime político? Ah, não! Discordo. Desculpe, mas dis­cordo. O brasileiro não é sanguinário.
Ribas passa as duas mãos pelo colete. A sua pupila é cada vez mais doce e cada vez mais azul:
— Dr. Odorico, não se iluda, Dr. Odorico! Uma coisa puxa a outra: o desenvolvimento e a matança! A simples indus­trialização, a simples reforma agrária e outros bichos, ah, não bastam! Sem sangue, sem uma guerrinha de secessão, não há desenvolvimento, não há nada! Dr. Odorico, escreva o que eu lhe estou dizendo: o sangue vai esguichar de mangueira. Não falo dessas bombinhas, ah, não!
Dr. Odorico ainda quis protestar:
— Meu caro, o brasileiro é sentimental!
Com a alma de Pierre Lotti na pupila doce o outro bate-lhe fraternalmente nas costas:
— Escuta! Não se faz História com sentimentalismo de novela! Está vendo esse povo? Olha!
Mostrou sujeitos tomando refrescos ou lendo jornal, nas cadeiras externas do Amarelinho; senhoras passando, inclusive uma, grávida; bondes apinhados; colegiais. E repetia, num tom quase de ternura:
— Esse povo quer beber sangue e há de beber sangue! Bem, meu caro juiz: prazer em revê-lo!

*

Enquanto Dr. Odorico era retido, primeiro pela senhora sem pescoço e, em seguida, pelo Ribas do Itamarati, Silene e Leleco tomavam, ela, o Grapete, e ele, rum puro, com gelo. Ao deixar o cônsul de primeira classe, Dr. Odorico não tinha mais esperanças de encontrar os dois. “Sumiram!”, eis a sua praga interior. Ao mesmo tempo, pensava no vaticínio san­grento do diplomata. Dizia para si mesmo: “Não acredito. Mas se for verdade, entre a miséria e o sangue prefiro a miséria.” Acabava de fazer a sua escolha. Repetia, com certa euforia: “Miséria.” Teve, porém, um certo esgar de sinceridade: “Penso assim porque o meu está garantido, todo o mês, chova ou faça sol.” Mas à simples hipótese da guerra civil seu estômago se contraiu numa violenta náusea.
E, súbito, vê os dois, lá adiante, passando de táxi. Cor­reu numa alucinação, em risco de ser atropelado. Felizmente vinha outro táxi; atirou-se, furiosamente. Senta-se e, fora de si, vai dizendo ao chofer:
— Olha, eu sou juiz, ouviu? Vamos atrás daquele táxi!
— Qual?
Grita:
— Aquele verde, ali. Está dobrando. Aquele! Está vendo? Exato: esse! Chispa! Leva uma menor. Vê se passa na frente ou melhor: não, não passa na frente. Acompanha. É melhor acompanhar.
O chofer aumenta a velocidade. Dr. Odorico estimula: “Pode correr, que eu me responsabilizo. Corre. Cuidado para não ficar preso no sinal.” Foi justamente o que aconteceu. De­pois que passou o carro de Silene, fechou o sinal da Glória. Dr. Odorico esbraveja:
— Ora pinóia!
Dois carros estão na frente do seu. O chofer buzina, estupidamente:
— Não posso passar por cima. Espeto!

*

Os dois nem sentiram a perseguição falhada. No Leblon, abraçado a Silene, Leleco pede:
— Deixa eu olhar mais um pouquinho!
Silene foge com o corpo:
— Escuta! Sabe o que é que eu vou fazer? Olha!
Rapidamente, tira os punhos e a gola. Leleco exclama:
— Que é isso?
E ela:
— Agora, já não estou mais de uniforme, compreendeste? Estou vestida normalmente: saia e blusa. Ninguém diz, não é?
Ri:
— Você é de amargar! De arder!
Já sem os distintivos do uniforme, sente-se violentamente livre: “É o que o pessoal faz no colégio. Eu podia ter tirado pra ir ao cinema. Nem me lembrei.” O rapaz vira-se para o chofer:
— Nossa amizade, sabe onde é o Bar do Pepino?
— Aquele?
— Pois é, você chega lá e entra, ouviu? Entra.
Silene pousa, de novo, a cabeça no seu ombro. Quando o rapaz, inquieto, quis acariciá-la, diz, do fundo do seu sonho:
— Deixa pra fazer tudo lá.
E, súbito, volta-se, transfigurada, para ele:
— Terias coragem de fazer uma coisa?
— O quê?
Diz, quase boca com boca:
— Terias coragem de passar a noite comigo? E, depois, morrer comigo? Terias?

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