Na porta do Pathezinho Dr. Odorico pensava: “Mas essa mulher não me larga! Só a tiro!” De fato, ela Crispava no seu braço a mão curta e voraz de gorda. Casais da fila não tiravam os olhos daquela mulher sem pescoço e daquele velho elegante e démodé, de paletó cintado.
Disse, ao mesmo tempo, que dava um repelão:
— Lembranças, minha senhora, lembranças!
Esbarrou nela mesma, que se atravessou, na sua frente, inarredável:
— Mas que é que o senhor me diz?!
Então, aquele homem, que vivia infligindo a si mesmo as piores repressões, teve um dos raros desabafos de sua vida:
— Escuta, minha senhora! Sossega o periquito!
Aquele inesperado e indesculpável “sossega o periquito” estarreceu-a. Recua, ligeiramente:
— Como?
Já o Dr. Odorico não se continha mais:
— O que é que a senhora viu demais nesse filme, hem, minha senhora?
Geme:
— Aquela cena!
Riu, feroz:
— Que cena, minha senhora? Aquilo é comum, minha senhora, na intimidade dos lares mais respeitáveis! É o que se leva da vida, minha senhora, pode crer: é o que se leva da vida! Perfeitamente!
Estupefata com essa ferocidade jucunda, balbuciou:
— Mas então o senhor acha que...
Foi taxativo:
— Acho, minha senhora, acho! De mais a mais, os culpados somos nós. Esse filme, quando estreou, era tão inocente, tão puro!
Agora, era ele que a segurava solidamente pelo braço. Insistia, surpreso com o próprio raciocínio e a própria convicção: “Nunca vi tanta inocência!” De fato, na primeira vez em que assistira a Les Amants julgara sentir, nele, o tédio de uma pureza total. Continuou:
— Nós é que corrompemos o filme, nós! E, agora, o filme não é o mesmo: está degradado pela platéia! Qualquer dia a senhora há de ver os artistas improvisarem cacos, piadas obscenas! Compreendeu, minha senhora?
Ela já não entendia mais nada. Numa satisfação cruel (e meio indecorosa), Dr. Odorico desvencilhou-se, definitivamente:
— Passar bem, minha senhora!
Saiu triunfante. Jamais, em toda a sua vida, argumentara assim, com aquela agilidade e com aquela audácia. Atribuiu essa maior desenvoltura (e brilho) ao seu estimulante convívio com as novas gerações. O Oto Lara, se estivesse lá, ouvindo, teria certamente aprovado o seu rompante.
Apressou o passo, desesperado de encontrar Silene e seu acompanhante. E, súbito, ao passar pelo Amarelinho, é, novamente, agarrado. Ah, não! Agora era demais! Voltou-se, cego de raiva. Era o Ribas, um rapaz do Itamarati, cônsul de primeira classe. Dr. Odorico teve de fazer, contra si mesmo, uma repressão a mais. Sorriu até:
— Ah, vai bem?
Em vésperas de embarcar — ia correr mundo, conhecer mares, portos e ilhas —, o Ribas tinha, na pupila, um azul doce de Pierre Lotti. Com a sua pele fresca, de quem lavou o rosto há dez minutos, disse, incisivo, de sopetão:
— Vem sangue por aí! Muito sangue!
Apesar da pressa, Dr. Odorico faz espanto:
— Como assim?
E o outro, sem largá-lo:
— Ou o senhor tem ilusões?
Pigarreia, intrigado:
— Depende.
O Ribas prossegue, baixo, e com uma satisfação lúgubre:
— O senhor sabe que eu sou médium vidente? Não sabe? Pois sou: médium vidente. Tenho intuições, certezas estranhíssimas. E só não me desenvolvo porque acho, com franqueza, estou sendo franco, acho o espiritismo incompatível com o Itamarati. Nós temos lá poucos macumbeiros.
Por um momento, o Dr. Odorico esquece o jovem casal, esquece Engraçadinha, tudo. Faz uma espécie de careta: “Mas sangue?” Considerava o Ribas, com o seu ar meio nostálgico de Lotti, informadíssimo.
O outro prossegue, com uma dessas certezas inapeláveis:
— Pois uma das minhas intuições é, sabe qual? — pausa e muda de tom: — Dr. Odorico, não lhe parece que o Brasil está maduro para o crime político?
O juiz recua, escandalizado:
— Crime político? Ah, não! Discordo. Desculpe, mas discordo. O brasileiro não é sanguinário.
Ribas passa as duas mãos pelo colete. A sua pupila é cada vez mais doce e cada vez mais azul:
— Dr. Odorico, não se iluda, Dr. Odorico! Uma coisa puxa a outra: o desenvolvimento e a matança! A simples industrialização, a simples reforma agrária e outros bichos, ah, não bastam! Sem sangue, sem uma guerrinha de secessão, não há desenvolvimento, não há nada! Dr. Odorico, escreva o que eu lhe estou dizendo: o sangue vai esguichar de mangueira. Não falo dessas bombinhas, ah, não!
Dr. Odorico ainda quis protestar:
— Meu caro, o brasileiro é sentimental!
Com a alma de Pierre Lotti na pupila doce o outro bate-lhe fraternalmente nas costas:
— Escuta! Não se faz História com sentimentalismo de novela! Está vendo esse povo? Olha!
Mostrou sujeitos tomando refrescos ou lendo jornal, nas cadeiras externas do Amarelinho; senhoras passando, inclusive uma, grávida; bondes apinhados; colegiais. E repetia, num tom quase de ternura:
— Esse povo quer beber sangue e há de beber sangue! Bem, meu caro juiz: prazer em revê-lo!
*
Enquanto Dr. Odorico era retido, primeiro pela senhora sem pescoço e, em seguida, pelo Ribas do Itamarati, Silene e Leleco tomavam, ela, o Grapete, e ele, rum puro, com gelo. Ao deixar o cônsul de primeira classe, Dr. Odorico não tinha mais esperanças de encontrar os dois. “Sumiram!”, eis a sua praga interior. Ao mesmo tempo, pensava no vaticínio sangrento do diplomata. Dizia para si mesmo: “Não acredito. Mas se for verdade, entre a miséria e o sangue prefiro a miséria.” Acabava de fazer a sua escolha. Repetia, com certa euforia: “Miséria.” Teve, porém, um certo esgar de sinceridade: “Penso assim porque o meu está garantido, todo o mês, chova ou faça sol.” Mas à simples hipótese da guerra civil seu estômago se contraiu numa violenta náusea.
E, súbito, vê os dois, lá adiante, passando de táxi. Correu numa alucinação, em risco de ser atropelado. Felizmente vinha outro táxi; atirou-se, furiosamente. Senta-se e, fora de si, vai dizendo ao chofer:
— Olha, eu sou juiz, ouviu? Vamos atrás daquele táxi!
— Qual?
Grita:
— Aquele verde, ali. Está dobrando. Aquele! Está vendo? Exato: esse! Chispa! Leva uma menor. Vê se passa na frente ou melhor: não, não passa na frente. Acompanha. É melhor acompanhar.
O chofer aumenta a velocidade. Dr. Odorico estimula: “Pode correr, que eu me responsabilizo. Corre. Cuidado para não ficar preso no sinal.” Foi justamente o que aconteceu. Depois que passou o carro de Silene, fechou o sinal da Glória. Dr. Odorico esbraveja:
— Ora pinóia!
Dois carros estão na frente do seu. O chofer buzina, estupidamente:
— Não posso passar por cima. Espeto!
*
Os dois nem sentiram a perseguição falhada. No Leblon, abraçado a Silene, Leleco pede:
— Deixa eu olhar mais um pouquinho!
Silene foge com o corpo:
— Escuta! Sabe o que é que eu vou fazer? Olha!
Rapidamente, tira os punhos e a gola. Leleco exclama:
— Que é isso?
E ela:
— Agora, já não estou mais de uniforme, compreendeste? Estou vestida normalmente: saia e blusa. Ninguém diz, não é?
Ri:
— Você é de amargar! De arder!
Já sem os distintivos do uniforme, sente-se violentamente livre: “É o que o pessoal faz no colégio. Eu podia ter tirado pra ir ao cinema. Nem me lembrei.” O rapaz vira-se para o chofer:
— Nossa amizade, sabe onde é o Bar do Pepino?
— Aquele?
— Pois é, você chega lá e entra, ouviu? Entra.
Silene pousa, de novo, a cabeça no seu ombro. Quando o rapaz, inquieto, quis acariciá-la, diz, do fundo do seu sonho:
— Deixa pra fazer tudo lá.
E, súbito, volta-se, transfigurada, para ele:
— Terias coragem de fazer uma coisa?
— O quê?
Diz, quase boca com boca:
— Terias coragem de passar a noite comigo? E, depois, morrer comigo? Terias?
terça-feira, 20 de outubro de 2009
CAPÍTULO XLVIII
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