domingo, 18 de outubro de 2009

CAPÍTULO XLVI

Ia saindo, para o colégio, quando Durval gritou-lhe:
— Espera!
Olha o relógio de pulso:
— Estou atrasada pra chuchu!
E ele, dando o nó da gravata:
— Vou contigo!
Beija, de passagem, a mãe na face: “A bênção, mamãe!” Engraçadinha suspira:
— Deus te abençoe!
No portão, Silene chama: “Anda, Vavá!” A mãe chega na janela para vê-los. Caminham, de braço; Engraçadinha pensa, na sua dor: “Parecem dois namorados.” Sempre que Durval e Silene saíam juntos, punha na sua oração todo o peso e toda a chama de sua fé: “Não o permita Deus!”
No poste de lotação, Durval baixa a voz:
— Você hoje está xingando!
Pergunta, sem desfitá-lo e com uma alegria que a em­beleza:
— Estou?
Olham-se um momento. Silene espia para a extremidade da rua. Como não vem lotação, vira-se para ele. Encara-o e pergunta:
— Escuta: você me acha bonita mesmo? Mas fala sério! Diz. Acha? Bonita ou passável?
— Linda.
E ela, mascando chiclete:
— Não brinca.
— Te juro!
Em casa, a imaginação de Engraçadinha está perdida: “Se ele faltar ao trabalho; se ela fizer gazeta; e se forem os dois para a Quinta da Boa Vista?”

*

Depois de fazer um almoço frugal (gostava muito da pa­lavra ‘frugal’), Dr. Odorico veio para a cidade. Havia um lu­gar, um único lugar no lotação, justamente no último banco. Dr. Odorico senta-se lá, afinal, com certa dificuldade. E, súbito, a pessoa, ao lado, o cutuca, ao mesmo tempo que faz um alegre espanto:
— Meritíssimo!
Vira-se: era o Carlos Lemos, um rapaz do Jornal do Bra­sil, meio atirado, um pouco inconveniente, mas com fortes pen­dores para o jornalismo. Um prazer do qual o Dr. Odorico não abria mão era o convívio das novas gerações. Prazer e, ao mesmo tempo, imperativo. Na companhia de velhos, ele en­velhecia também, e de uma maneira irremediável, fatal. (Che­gava a sentir-se, digamos, uma espécie de Raul Pederneiras, de Calixto.) Ao passo que a presença da juventude dava-lhe uma certa euforia. Vira-se, com uma efusão moderada:
— Como vai o amigo?
— Navegando. Meio bombardeado.
Eis a verdade: aquele encontro, num lotação, foi um constrangimento para o Dr. Odorico (constrangimento imperceptí­vel, diga-se). Noutras condições, teria conversado com a maior cordialidade e proveito (a seu ver, a mocidade está sempre com a razão). Mas havia entre o juiz encanecido e o cronista irrequieto um vínculo acidental e desagradável. Tempos atrás, os dois tinham-se encontrado em circunstâncias e local impró­prios: no Baile da Balança! O Carlos Lemos fazia lá a sua despedida alucinada de solteiro. Conclusão: o rapaz vira o ma­gistrado bêbedo, às 3 horas da tarde, e acompanhado (fora ao baile com uma morena do IPASE, gorda e casada, mãe de fi­lhos). O pior é que, de vez em quando, a morena autárquica encharcava o lenço de lança-perfume para que o juiz o chei­rasse, com suas ventas insaciáveis. A partir de então, sempre que o encontrava, o rapaz saudava-o com uma efusão de cúm­plice:
— Meritíssimo!
Esse tom a um tempo alegre e mordaz (perfeitamente, ‘mordaz’) confundia e humilhava Dr. Odorico. Afinal o rapaz o vira — em condições degradantes — entupindo-se de éter. Fe­lizmente, alguns postes adiante, o Carlos Lemos saltou, anun­ciando aos berros (rapaz simpático, mas um extrovertido ulu­lante):
— Paguei a sua! Está paga! Olha: está paga!
O juiz fez o resto da viagem muito olhado. Ia ver, outra vez, Les Amants. E o que atraía, como de resto, a todo o mundo, era a tal cena culminante que fascinava a cidade. E o Dr. Odorico que, ultimamente, estava muito condicionado aos pontos de vista das novas gerações dizia, de si para si: “Preciso saber o que o Oto Lara acha de Les Amants.” Uma coisa, porém, o estava assustando, no momento. Costumava dizer: “Deus está nas coincidências!” Uma delas fora o encontro com o Carlos Lemos. E se, no cinema, encontrasse um outro co­nhecido desagradável? Por exemplo: se encontrasse, lá, o Pau-linho Mendes Campos? Simpático às novas gerações, nutria a mais gratuita e amarga antipatia pelo poeta mineiro. Estava mesmo disposto a dar ao fato uma interpretação espírita: “Quem sabe se, em vidas passadas, não fomos inimigos?”
Depois de ter visto Engraçadinha, Dr. Odorico passara a sentir a necessidade obsessiva de rever Les Amants. E só pedia para não encontrar certos conhecidos. (Um Oto Lara ou o Wilson Figueiredo não teria importância. Mas o Paulinho Mendes Campos, com seu perfil de Napoleão aos 17 anos, jamais!) Ele saltou na Avenida Graça Aranha e veio caminhando a pé, até a Cinelândia.
Agora que revira Engraçadinha — após vinte anos —, a cena famosa passara a ter, aos seus olhos, um outro impacto. Torturado por um sentimento de culpa, que ele próprio achava pueril, chegou ao Pathezinho sem encontrar, graças a Deus, um único conhecido.
Está, finalmente, na porta do cinema. Olha de lado, e com ostensivo desprazer, a fila imensa. “Eis a família brasileira!”, pensou. Mais do que nunca, parecia-lhe que a platéia é que estava corrompendo o pobre e inofensivo filme. Continuou, cruelmente divertido: “É quase uma fita de mocinho. Só falta aparecer um Tom Mix dando tiro em todas as direções.” Achou graça no próprio raciocínio.
Dirigiu-se, de cara amarrada, ao porteiro:
— Quem é o gerente?
Quase dizia: “O gerente dessa birosca.” Conteve-se, po­rém. O porteiro, entre atendê-lo e receber os ingressos, vacilou. Foi mais incisivo:
— Chame o gerente!
Apareceu um moço bem vestido. Dr. Odorico olha-o, de alto a baixo:
— O senhor é que é o gerente?
Dr. Odorico emanava uma autoridade ameaçadora. O ge­rente inclina-se:
— Às suas ordens.
E o juiz:
— Eu sou o juiz Fulano e desejo assistir a esse filme que...
O gerente já queria saber:
— O senhor está acompanhado?
Teve um repelão:
— Absolutamente. Sozinho.
O funcionário vai abrindo passagem:
— Tenha a bondade, Senhor Juiz! Tenha a bondade! Por aqui!
Na sala de projeção, ordena ao vagalume:
— Arranja um lugar para o Senhor Juiz!
Dr. Odorico nem agradeceu. Caminhando nas trevas, guia­do pelo vagalume, diz:
— Na frente!
Ia pensando: “Esse sucesso todo é porque...” E continua: “Uns porque fazem, outros porque querem fazer.” Teve que abafar a vontade de rir. Já começara o filme. Na quinta fila, há um lugar, no meio, que o vagalume aponta. Então, pe­dindo licença, o Dr. Odorico vai varando a obstrução de joe­lhos. Repete, de vez em quando: “Desculpe, desculpe.”
Senta-se, finalmente. Começa a ver o filme. “A heroína é boa. Mas Engraçadinha é melhor. Silene e Engraçadinha.” Tem que reconhecer, porém, que a tal Jeanne Moreau é também interessante, bem interessante, com seus quadris ardentes. Sim ‘ardentes’. Ele continuou vendo o filme e substituindo os per­sonagens: “O marido é o Zózimo.” Parecia-lhe que tal marido (bem como o Zózimo) devia ser traído há mais tempo e mais vezes. A cena de pólo o irritou. “É tão filme de mocinho que tem até cavalo!”
Na fila da frente, há um casal. Um rapaz está falando em cima do pescoço de uma mulher (de uma pequena). Fala baixinho. Mas enquanto não aparece a cena máxima do filme Dr. Odorico pode prestar atenção ao casal da platéia.
O sujeito cicia:
— Olha você. E olha eu.
A menina (a voz era de adolescente) tem uma espécie de cócega:
— Fica quieto!
E o outro:
— Você é melhor do que ela!
A pequena fala entre dentes:
— Olha essa mão!
Sopra:
— Deixa, é um instantinho.
Num interesse profundo, Dr. Odorico não perde uma pa­lavra, embora o casal fale com um mínimo de voz. “Esses dois começaram cedo.” A menina puxa o corpo:
— Tira a mão!
Fala de dentes trincados. Na tela, o automóvel da heroína acaba de enguiçar. Dr. Odorico diz para si mesmo: “Deve ser gostoso pra burro amar uma fanática.” Achava que o fana­tismo religioso reprime e, ao mesmo tempo, exaspera o sexo. “Nua e fanática!”
E, súbito, gela na sua cadeira. Acabava de reconhecer a mocinha que estava na frente: Silene! “Estão fazendo misérias nas minhas barbas!” Silene! Ele vacila, desesperado. Devia dar-se a conhecer, exigir que... Olhando o companheiro da menina (um garoto), Dr. Odorico sente-se um total Raul Pederneiras.

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