segunda-feira, 19 de outubro de 2009

CAPÍTULO XLVII

Dr. Odorico controla-se. Não faria nada. Ou por outra: não faria nada durante a tal cena fabulosa, que já ia começar. E repetia para si, com vontade de abrir o colarinho:
— Deus está nas coincidências!
No lotação, encontrara o Carlos Lemos, com sua extroversão ensurdecedora; e, no cinema, Silene, a filha de Engra­çadinha, com um jovem fauno, agarrado ao seu pescoço. “Mas vamos ver o filme”, decidiu. Na frente, Leleco fala, com a boca na orelhinha pequenina e sensível da menina:
— Espia agora.
Silene sente a garganta apertada. Tem, baixinho, o la­mento:
— Fica quieto.
Abandona-se, porém. Leleco sente, nela, um movimento leve, quase imperceptível, de quadris. Dr. Odorico afunda-se na cadeira, mais e mais; passa as costas da mão na boca enchar­cada; pensa:
— Sou eu e Engraçadinha. Ou Silene. Ora com Engraça­dinha, ora com Silene. Engraçadinha de camisola. Prefiro En­graçadinha. Camisola em cima da pele. Não pijama. Pijama, não. Prefiro camisola, sem nada por baixo. Engraçadinha! Va­mos passear de barco. Deita, Engraçadinha, deita. Assim. O barco anda sozinho.
Na platéia, um moleque solta uma delirante risadinha em falsete. Dr. Odorico volta-se, numa dessas raivas bruscas e totais. “Ah! canalha!” A maioria está quieta, tensa, perdida. E, pouco a pouco, Dr. Odorico começa a ficar descontente com o filme:
— Ninguém teria essa paciência. Por que esperar ainda? E por que o barco? Sim, por que o barco?
Na primeira vez, admitira o barco. Achara o barco um efeito poético (talvez trivial). Mas, agora que vira Engraça­dinha — e que estava tão próximo de Silene — agora experi­mentava uma cruel irritação:
— Esse barco é falso. Idiota.
Colocava-se no lugar do personagem: “Eu não esperaria tanto.” E por que voltar para casa, por que regressar ao quar­to? Era, indubitavelmente, o preconceito do quarto, da cama.
Por que não amar ao ar livre, com frenética simplicidade? Por que não amar em cima da grama? Já não tinha mais dú­vidas; disse, de si para si, com uma triunfante certeza:
— O filme está errado!
Ninguém tem essa paciência. O barco parecia-lhe mais do que nunca um trambolho. E, súbito, ocorre ao juiz uma lem­brança desesperadora: via, na tela, não ele mesmo, mas Sílvio, o falecido Sílvio, com Engraçadinha. “Sílvio, e não eu.” Ao mesmo tempo, o Sílvio era Durval. Via Engraçadinha ora com Sílvio, ora com Durval. Essa fusão de imagens o exasperou. Sofreu como um traído.
Oh Engraçadinha lacerada de escrúpulos inefáveis! E, por fim, na tela, chegava o grande momento. Na frente, Silene tom­ba a cabeça no ombro de Leleco. Quase sem voz, como se fa­lasse apenas com o movimento dos lábios, a menina implora:
— Não faz assim...
Já o Dr. Odorico conseguira, enfim, ficar sozinho. Mas achava o filme ainda falso. A mulher estava muito quieta. Pas­siva. Devia chorar e não chora. Chorar. Por que não chora? Disse para si mesmo, sentindo-se ludibriado como espectador: “Não convence.” E, sobretudo, não perdoava a seqüência do barco — o tempo irrecuperável, perdido na lagoinha. A platéia está gelada de sonho.
Leleco murmura:
— Vamos?
A cena chegara ao fim. Dr. Odorico toma um susto: “Já vão?” — pergunta a si mesmo. Era o momento de agir. Mas um escrúpulo o trava. Agir como e por quê? “Afinal, eu não tenho nada com isso. Poderia dar uns conselhos e nada mais.” O que não cabia era um escândalo. Repetiu: “Um escândalo seria a humilhação da menina.” Era preciso um certo tato. Leleco e Silene levantam-se. Vão saindo e pedindo licença. Dr. Odorico levanta-se também, precipitadamente. Antes de chegar à extremidade da fila, tropeça num joelho feminino e ia sen­tando-se num colo de senhora. Esta esbraveja:
— Animal!
Ele, fora de si, geme:
— Perdão.
Saiu, finalmente, do outro lado. Ao tropeçar na senhora, decidira: “Pelo menos, a menina precisa saber que eu vi, que eu sei.” Os dois vão na frente; Dr. Odorico apressa o passo. Ia falar-lhes na porta do cinema. Mas quando atravessa a sala de espera ouve, atrás de si, uma voz pânica:
— Dr. Odorico!
Mais uma pequenina e miserável coincidência! Ah, não havia dúvida. Repetiu, mentalmente, a única frase original que jamais lhe ocorrera, em 49 anos de vida: “Deus está nas coin­cidências!” Era D. Geninha, senhora de um funcionário do Tri­bunal de Contas, com mais busto do que cadeiras, quase sem pescoço, com a cara enterrada nos ombros. Saindo, tumultuosa­mente, da sala de projeção, D. Geninha o reconhecera pelas costas.
Com a dispnéia da indignação, atropela-o:
— O senhor viu?
Desesperado balbucia:
— Ah, como vai? Bem?
Leleco e Silene já iam longe. Dr. Odorico quer passar adiante. Ela, porém, barra-lhe a passagem!
— Não é uma indignidade? O senhor não achou uma in­dignidade?
E, ele, furioso:
— É uma indignidade!
Na sala de espera, continuou a interpelação frenética:
— Mas foi um colega seu, um juiz!
— D. Geninha, estão me esperando, D. Geninha.
Estava, porém, solidamente seguro:
— Não foi um colega seu? Foi um colega seu! E como é que um juiz...
Dr. Odorico teve vontade de dizer-lhe: “Por que indig­nidade? Indignidade, vírgula! E o que é que faz seu marido? A senhora deve andar muito escassa de marido!” Na sua fúria contida, ele pensava: “Babou-se lá dentro e vem cá pra fora fazer comício!” Quis desvencilhar-se mais uma vez:
— Tem toda a razão, minha senhora, mas é que eu estou com um pouquinho de pressa...
Ela, porém, não o largou:
— Eu não entendo o seu colega. O senhor acha justo que seu colega, um juiz, aprove esse filme?

*

Os dois já haviam dobrado a esquina do Amarelinho. Diante do Dulcina, Leleco estaca:
— Bolei outra idéia.
— Qual?
Respira fundo:
— E o seguinte: e se nós...
Tosse ligeiramente. Mete a mão nos bolsos e apanha um cigarro. Diante dele, Silene espera (tão linda e sôfrega!). Le­leco risca o fósforo. Silene impacienta-se:
— Fala!
O rapaz vacila, ainda. Pensa: “Ora pipocas! Por que é que ela veio de uniforme?” Para ganhar tempo, puxa a pe­quena:
— Vem cá. Vamos tomar um troço.
Entram num barzinho, ao lado do Dulcina. Junto do bal­cão, ele pergunta:
— Guaraná?
— Grapete.
São servidos. Silene está surpresa e descontente:
— Qual é o drama?
Baixa a voz:
— Escuta: não vamos mais lá. Resolvi. Não interessa.
No seu espanto, quer saber: “Por quê?” Leleco pagou a despesa e sai com a pequena: “Vamos apanhar um táxi. Mudei de idéia, carambolas! Não posso mudar de idéia?” E ela: “Que mágica besta!” Entram no primeiro táxi. “Leblon”, manda. O rapaz leva nos bolsos seis contos para pagar o aluguel de casa. Puxa a pequena para si (“Agressividade!”, exigia o médico). Jogando fora o cigarro, começa:
— O apartamento tem diversas chaves. E se, por acaso, aparece lá um cara ou vários? Já imaginaste? E olha: no cine­ma, eu estive pensando o seguinte: se um pilantra puser a mão em ti, eu mato, ouviste! Mato!
Mete a mão no bolso, tira e abre o canivete. Silene crispa-se: “Guarda isso!” E ele, abraçado à pequena — passavam pela Praia do Russel —, contrai a boca de ódio:
— Ninguém te dá ‘fria’ nenhuma! Porque eu mato!
Leleco guarda o canivete; fala junto ao seu ouvido (o hálito de Leleco faz-lhe cócegas na orelha): “Se você não esti­vesse de uniforme! Chato esse uniforme! Nós iríamos, sabe onde?” Transida de prazer, balbucia: “Onde?” E ele:
— No Bar do Pepino. O diabo é o uniforme. Já no ci­nema o porteiro não gostou do teu uniforme. Mas talvez dê-se um jeito. Talvez. Eu entro primeiro. Você fica no táxi. E, de­pois, te chamo e você passa depressa.
Ela desejou, com todas as forças, esse Bar do Pepino. Leleco estava absurdamente feliz. (O medo extinguira-se no fundo do seu ser.) Ao mesmo tempo, os cinco contos e tantos no bolso dão-lhe uma sensação de poder. Pôs a mão no seu joelho. Silene sopra: “Aqui, não.” Admirou-se: “Por quê?” Responde:
— Lá.
— Deixa eu ver um pouquinho?
Suspira:
— Só um pouquinho.
— Que coisa linda!
E ela:
— Agora chega.
Desce a saia. Ele pensa: “Mato quem encostar a mão! Mato!” Como é bom ter um canivete e cinco contos nos bolsos! Não importa o aluguel da casa! Repetiu: “Minha! Minha!”

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