Dr. Odorico controla-se. Não faria nada. Ou por outra: não faria nada durante a tal cena fabulosa, que já ia começar. E repetia para si, com vontade de abrir o colarinho:
— Deus está nas coincidências!
No lotação, encontrara o Carlos Lemos, com sua extroversão ensurdecedora; e, no cinema, Silene, a filha de Engraçadinha, com um jovem fauno, agarrado ao seu pescoço. “Mas vamos ver o filme”, decidiu. Na frente, Leleco fala, com a boca na orelhinha pequenina e sensível da menina:
— Espia agora.
Silene sente a garganta apertada. Tem, baixinho, o lamento:
— Fica quieto.
Abandona-se, porém. Leleco sente, nela, um movimento leve, quase imperceptível, de quadris. Dr. Odorico afunda-se na cadeira, mais e mais; passa as costas da mão na boca encharcada; pensa:
— Sou eu e Engraçadinha. Ou Silene. Ora com Engraçadinha, ora com Silene. Engraçadinha de camisola. Prefiro Engraçadinha. Camisola em cima da pele. Não pijama. Pijama, não. Prefiro camisola, sem nada por baixo. Engraçadinha! Vamos passear de barco. Deita, Engraçadinha, deita. Assim. O barco anda sozinho.
Na platéia, um moleque solta uma delirante risadinha em falsete. Dr. Odorico volta-se, numa dessas raivas bruscas e totais. “Ah! canalha!” A maioria está quieta, tensa, perdida. E, pouco a pouco, Dr. Odorico começa a ficar descontente com o filme:
— Ninguém teria essa paciência. Por que esperar ainda? E por que o barco? Sim, por que o barco?
Na primeira vez, admitira o barco. Achara o barco um efeito poético (talvez trivial). Mas, agora que vira Engraçadinha — e que estava tão próximo de Silene — agora experimentava uma cruel irritação:
— Esse barco é falso. Idiota.
Colocava-se no lugar do personagem: “Eu não esperaria tanto.” E por que voltar para casa, por que regressar ao quarto? Era, indubitavelmente, o preconceito do quarto, da cama.
Por que não amar ao ar livre, com frenética simplicidade? Por que não amar em cima da grama? Já não tinha mais dúvidas; disse, de si para si, com uma triunfante certeza:
— O filme está errado!
Ninguém tem essa paciência. O barco parecia-lhe mais do que nunca um trambolho. E, súbito, ocorre ao juiz uma lembrança desesperadora: via, na tela, não ele mesmo, mas Sílvio, o falecido Sílvio, com Engraçadinha. “Sílvio, e não eu.” Ao mesmo tempo, o Sílvio era Durval. Via Engraçadinha ora com Sílvio, ora com Durval. Essa fusão de imagens o exasperou. Sofreu como um traído.
Oh Engraçadinha lacerada de escrúpulos inefáveis! E, por fim, na tela, chegava o grande momento. Na frente, Silene tomba a cabeça no ombro de Leleco. Quase sem voz, como se falasse apenas com o movimento dos lábios, a menina implora:
— Não faz assim...
Já o Dr. Odorico conseguira, enfim, ficar sozinho. Mas achava o filme ainda falso. A mulher estava muito quieta. Passiva. Devia chorar e não chora. Chorar. Por que não chora? Disse para si mesmo, sentindo-se ludibriado como espectador: “Não convence.” E, sobretudo, não perdoava a seqüência do barco — o tempo irrecuperável, perdido na lagoinha. A platéia está gelada de sonho.
Leleco murmura:
— Vamos?
A cena chegara ao fim. Dr. Odorico toma um susto: “Já vão?” — pergunta a si mesmo. Era o momento de agir. Mas um escrúpulo o trava. Agir como e por quê? “Afinal, eu não tenho nada com isso. Poderia dar uns conselhos e nada mais.” O que não cabia era um escândalo. Repetiu: “Um escândalo seria a humilhação da menina.” Era preciso um certo tato. Leleco e Silene levantam-se. Vão saindo e pedindo licença. Dr. Odorico levanta-se também, precipitadamente. Antes de chegar à extremidade da fila, tropeça num joelho feminino e ia sentando-se num colo de senhora. Esta esbraveja:
— Animal!
Ele, fora de si, geme:
— Perdão.
Saiu, finalmente, do outro lado. Ao tropeçar na senhora, decidira: “Pelo menos, a menina precisa saber que eu vi, que eu sei.” Os dois vão na frente; Dr. Odorico apressa o passo. Ia falar-lhes na porta do cinema. Mas quando atravessa a sala de espera ouve, atrás de si, uma voz pânica:
— Dr. Odorico!
Mais uma pequenina e miserável coincidência! Ah, não havia dúvida. Repetiu, mentalmente, a única frase original que jamais lhe ocorrera, em 49 anos de vida: “Deus está nas coincidências!” Era D. Geninha, senhora de um funcionário do Tribunal de Contas, com mais busto do que cadeiras, quase sem pescoço, com a cara enterrada nos ombros. Saindo, tumultuosamente, da sala de projeção, D. Geninha o reconhecera pelas costas.
Com a dispnéia da indignação, atropela-o:
— O senhor viu?
Desesperado balbucia:
— Ah, como vai? Bem?
Leleco e Silene já iam longe. Dr. Odorico quer passar adiante. Ela, porém, barra-lhe a passagem!
— Não é uma indignidade? O senhor não achou uma indignidade?
E, ele, furioso:
— É uma indignidade!
Na sala de espera, continuou a interpelação frenética:
— Mas foi um colega seu, um juiz!
— D. Geninha, estão me esperando, D. Geninha.
Estava, porém, solidamente seguro:
— Não foi um colega seu? Foi um colega seu! E como é que um juiz...
Dr. Odorico teve vontade de dizer-lhe: “Por que indignidade? Indignidade, vírgula! E o que é que faz seu marido? A senhora deve andar muito escassa de marido!” Na sua fúria contida, ele pensava: “Babou-se lá dentro e vem cá pra fora fazer comício!” Quis desvencilhar-se mais uma vez:
— Tem toda a razão, minha senhora, mas é que eu estou com um pouquinho de pressa...
Ela, porém, não o largou:
— Eu não entendo o seu colega. O senhor acha justo que seu colega, um juiz, aprove esse filme?
*
Os dois já haviam dobrado a esquina do Amarelinho. Diante do Dulcina, Leleco estaca:
— Bolei outra idéia.
— Qual?
Respira fundo:
— E o seguinte: e se nós...
Tosse ligeiramente. Mete a mão nos bolsos e apanha um cigarro. Diante dele, Silene espera (tão linda e sôfrega!). Leleco risca o fósforo. Silene impacienta-se:
— Fala!
O rapaz vacila, ainda. Pensa: “Ora pipocas! Por que é que ela veio de uniforme?” Para ganhar tempo, puxa a pequena:
— Vem cá. Vamos tomar um troço.
Entram num barzinho, ao lado do Dulcina. Junto do balcão, ele pergunta:
— Guaraná?
— Grapete.
São servidos. Silene está surpresa e descontente:
— Qual é o drama?
Baixa a voz:
— Escuta: não vamos mais lá. Resolvi. Não interessa.
No seu espanto, quer saber: “Por quê?” Leleco pagou a despesa e sai com a pequena: “Vamos apanhar um táxi. Mudei de idéia, carambolas! Não posso mudar de idéia?” E ela: “Que mágica besta!” Entram no primeiro táxi. “Leblon”, manda. O rapaz leva nos bolsos seis contos para pagar o aluguel de casa. Puxa a pequena para si (“Agressividade!”, exigia o médico). Jogando fora o cigarro, começa:
— O apartamento tem diversas chaves. E se, por acaso, aparece lá um cara ou vários? Já imaginaste? E olha: no cinema, eu estive pensando o seguinte: se um pilantra puser a mão em ti, eu mato, ouviste! Mato!
Mete a mão no bolso, tira e abre o canivete. Silene crispa-se: “Guarda isso!” E ele, abraçado à pequena — passavam pela Praia do Russel —, contrai a boca de ódio:
— Ninguém te dá ‘fria’ nenhuma! Porque eu mato!
Leleco guarda o canivete; fala junto ao seu ouvido (o hálito de Leleco faz-lhe cócegas na orelha): “Se você não estivesse de uniforme! Chato esse uniforme! Nós iríamos, sabe onde?” Transida de prazer, balbucia: “Onde?” E ele:
— No Bar do Pepino. O diabo é o uniforme. Já no cinema o porteiro não gostou do teu uniforme. Mas talvez dê-se um jeito. Talvez. Eu entro primeiro. Você fica no táxi. E, depois, te chamo e você passa depressa.
Ela desejou, com todas as forças, esse Bar do Pepino. Leleco estava absurdamente feliz. (O medo extinguira-se no fundo do seu ser.) Ao mesmo tempo, os cinco contos e tantos no bolso dão-lhe uma sensação de poder. Pôs a mão no seu joelho. Silene sopra: “Aqui, não.” Admirou-se: “Por quê?” Responde:
— Lá.
— Deixa eu ver um pouquinho?
Suspira:
— Só um pouquinho.
— Que coisa linda!
E ela:
— Agora chega.
Desce a saia. Ele pensa: “Mato quem encostar a mão! Mato!” Como é bom ter um canivete e cinco contos nos bolsos! Não importa o aluguel da casa! Repetiu: “Minha! Minha!”
segunda-feira, 19 de outubro de 2009
CAPÍTULO XLVII
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