Em pé, junto ao balcão, repetiu:
— Queria uma navalha.
O caixeiro, um rapaz de óculos, com um esparadrapo no pescoço, indaga:
— Que marca?
Faz a pergunta e, ao mesmo tempo, espreme uma espinha. Silvio vacila, como se uma simples marca fôsse um problema inesperado e desagradável. Gostaria de parecer alguém que fêz do uso da navalha um hábito antigo e cotidiano. Deixou escapar uma mentira desnecessária: — “Eu nunca usei gilete”. Pergunta a si mesmo, com surda irritação: — “Por que fui dizer isso?” Pigarreia:
— Qualquer marca. Não tenho preferência.
E, por um momento, teve a sensação (o que era um absurdo) a sensação de que o outro sabia. Por outras palavras: — sabia que, pouco antes, êle, Engraçadinha e Letícia haviam feito o pacto de um amor triste e miserável. Sim, com um mínimo de palavras, os três tinham-se entendido. Êle não sabia explicar essa compreensão que não exigia um argumento, um raciocínio. Enquanto o caixeiro de esparadrapo ia e vinha. Sílvio teve tempo de pensar: — “O amor devia ser um casal e, ao mesmo tempo, uma testemunha”. Repetia, para si mesmo, e já agora com uma sensação de fogo na garganta: — “Uma testemunha passiva, talvez sentada numa cadeira ou na extremidade da cama, mas presente”. Essa terceira presença, muda e atônita, tornaria o prazer sobre-humano. “O prazer de um deus”, disse para si mesmo, enquanto que o caixeiro, já de volta, abria, diante dêle, três estojos.
Apanhando e abrindo uma das navalhas, êle continuava pensando, por outras palavras, o seguinte: — certos prazeres dão subitamente ao homem a sensação de que êle já foi deus algum dia. “Eu fui deus”, refletia. Ao mesmo tempo ocorreu-lhe a idéia de que uma navalha é realmente linda. Ergue o rosto febril:
— Qual é a melhor?
Olhava agora o esparadrapo do rapaz: — “Furúnculo”, deduziu. O caixeiro apanha uma das navalhas:
— Essa aqui — por exemplo — mais cara, mas vale a pena. Tenha a bondade.
Sentiu na mão a lâmina. Nada mais gelado que o fio da navalha. Diz para si mesmo: — “Se êle soubesse o que eu estou pensando. Se soubesse que, logo mais, as duas me esperam no quarto!” Respira fundo:
— Fico com essa.
Escolhera ao acaso. Na verdade, repetiu para si mesmo, “todas são lindas”. Enquanto o caixeiro ia embrulhar um dos estojos, êle, com um sofrimento inefável, pensava: — “Não foi preciso convencê-las”. E mais: — não fora preciso nem convencer-se a si mesmo. Continuou, enquanto o rapaz do esparadrapo passava o barbante no embrulho estreito e comprido: — “Quem sabe se antes, muito antes...” Êle queria admitir um passado, inacessível à memória dos homens, em que o amor normal exigisse, além do casal, uma testemunha, sòmente olhando e sentada. Recebeu o estôjo e pagou. Agora esperava o trôco. Só de pensar que iria encontrá-las, à sua espera, sentiu um tal afluxo de sangue na cabeça que julgou desfalecer.
O caixeiro dava-lhe o troco.
— Às suas ordens.
E êle, embolsando o dinheiro:
— Passar bem.
Na rua, tratou de desfazer o embrulho. Apanhou a navalha e a guardou; em seguida, deixou cair, junto ao meio-fio, o papel e o estôjo. Coisa estranha! Com a navalha viva no bolso, experimentou um sentimento de paz intensa, uma brusca euforia. Dir-se-ia que ela vinha dar-lhe um nôvo poder, um dom misterioso, talvez encantado. De vez em quando tinha vontade de abrir a lâmina dentro da luz. Parou numa esquina; pergunta: — “E se eu telefonar, agora, para Engraçadinha, dizendo que não quero?”
Quis desviar o pensamento. Mas não se libertava daquela fixação hedionda. Olhava sem ver as pessoas, os prédios, os carros. As duas o amavam; ia trair uma e outra. Mas qual delas ia ser amada e qual delas ia ser apenas traída? Então, disse, a meia voz:
— Engraçadinha!
E não entendia porque Letícia aceitara aquêle amor que admitia ou, por outra, que precisava, para a sua plenitude, de uma testemunha. Engraçadinha era só sexo e seu olhar, seu sorriso, seu andar, seus quadris, vinham pesados de voluptuosidade. “Se titio soubesse que, em casa, nós três...” Mas continuava sem entender Letícia, a doce, a maravilhosa, a cálida facilidade do seu abandono.
Pôs a mão no bolso da navalha. A certeza de que ela estava lá — e viva — deu-lhe novamente aquela sensação de segurança. Repetia para si mesmo: — “Telefono para Engraçadinha?” Por um momento, quase cedeu à tentação de ligar. Conteve-se. Pensava:
— Eu sou um crápula.
* * *
Pouco depois que Sílvio saiu, Dr. Arnaldo apareceu na porta da biblioteca:
— Engraçadinha!
— Eu?
E o velho:
— Traz Letícia.
Zózimo estava lá. Fizera várias tentativas para falar. Dr. Arnaldo, porém, na sua euforia de pai de uma virgem (a palavra virgindade não lhe saía da cabeça), Dr. Arnaldo não o deixava prosseguir:
— Jovem, a situação agora mudou de figura. — E insistiu, com ênfase: — Mudou radicalmente. Minha filha já não depende mais da generosidade do noivo
Súbito, Zózimo perdeu a paciência. Ergueu-se e, por sua vez, interrompeu vivamente o velho:
— Dr. Arnaldo, o senhor, naturalmente, deve fazer um péssimo juízo de mim.
O deputado virou-se, estupefato: — “Eu?” Por singular coincidência, no exato momento em que Zózimo disse isso, o velho estava pensando; “Mas que animal!” Dir-se-ia que o outro, por uma dessas vidências súbitas e realmente inexplicáveis, lera no seu pensamento. Um pouco desconcertado, dispõe-se a ouvir:
— O amor é tão raro, hoje em dia, tão difícil, que o homem ama errado.
Dr. Arnaldo pensava ainda na virgindade da filha: — “Como assim?” Aquilo pareceu-lhe obscuro e irritante. O outro prosseguia, numa excitação progressiva:
— O senhor sabe, naturalmente, que o meu pai é casado em segundas núpcias.
Dr. Arnaldo encara o futuro genro com evidente desagrado. Parecia dizer: — “Ora veja! O que é que eu tenho com isso?” Zózimo percebeu a impaciência e irritação do outro. Explicou, angustiado:
— Eu acabo já. Estou no fim. Mas, como eu ia dizendo: — eu tinha oito — veja bem! — oito anos, quando um dia. Ainda me lembro como se fôsse hoje. Meu pai vem me buscar em casa e me leva para a casa de uma velha tia.
Dr. Arnaldo começava a ouvir, com um nôvo interesse. Zózimo estava dizendo: — “A tia caiu de joelhos aos seus pés”. Foi contando. O pai empurra a velha e arromba uma porta. Lá dentro, estava a mãe de Zózimo, com um sujeito. O rapaz arqueja:
— Meu pai podia ter levado a polícia. Mas, não. Fez-se acompanhar de uma única autoridade: — o filho de oito anos. Queria que eu visse o adultério. Ergueu-me nos braços e sacudia-me: — “Tua mãe, meu filho! Tua mãe!”
Há uma pausa. Em voz baixa, com um olhar suplicante, Zózimo pergunta: — “Compreende agora?” A rigor. Dr. Arnaldo não compreendia nada. “Por que êle me contou isso?” Era o que perguntava a si mesmo. O rapaz gostaria de concluir: — “Depois disso, eu passei a achar que só a adúltera tem razão”. Mas quando fala, diz outra coisa:
— O senhor acha que meu pai amava minha mãe? Nunca. Se amasse, teria admitido o adultério, simplesmente. Eu li não sei onde que “amar é dar razão a quem não tem”. Uma vez que eu amo sua filha, dou-lhe razão, desde já, mesmo no adultério. Entende agora? A minha atitude dizendo que aceitaria sua filha, ainda que grávida de outro, não é falta de caráter ou de...
Cala-se, ofegante. Desejaria dizer que neste mundo a bondade precisa ser justificada. Ou é justificada ou rejeitada. Conclui, balbuciando: — “Não queria que o senhor interpretasse mal...” A princípio perplexo, Dr. Arnaldo pensa: — “Para uma mulher como Engraçadinha, de uma sexualidade tão acentuada...” E continuou: — “... Para certos temperamentos femininos, convém um marido que prèviamente perdoa...” Decide, bruscamente: — “Preciso casá-la quanto antes”. Vai até a porta e chama as duas. Põe a mão no ombro do futuro genro; diz, como se, de repente, tivesse a certeza de que a filha, cedo ou tarde, trairia:
— Realmente, realmente.
* * *
Quase meia-noite.
Letícia deitou-se na cama e Engraçadinha no chão, em cima da colcha, junto ao guarda-vestido. Já no escuro, Letícia pergunta:
— E se êle não vier?
Respondeu, com uma certeza fanática:
— Virá.
Silêncio. Engraçadinha pensa na conversa que tivera com o pai, na presença de Letícia e de Zózimo. Eis o que resolvera Dr. Arnaldo: — “Daqui a três meses”. Responderam: — “Sim”. Três meses! Mas que importava Zózimo, o casamento, o vestido de noiva, a igreja? O pai ainda batia na mesma tecla: — o casamento no mesmo dia. Zózimo concordou com tudo. Mas o que, no momento, gelava Engraçadinha até os ossos era esperar. A poria estava apenas encostada.
Em plena madrugada, sentem que alguém a empurra. Engraçadinha, quase sem respirar, pergunta a si mesma: — “Vai escolher quem?” Silvio estava no quarto. Letícia crispa-se na cama. O rapaz torce a chave. Caiu, ali, uma solidão desesperadora. O rapaz pensa: — “Elas não desconfiam de nada”. Súbito, acende a luz.
As duas olham, num deslumbramento. Êle abre a navalha e caminha.
sexta-feira, 2 de outubro de 2009
CAPÍTULO XXX
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