sexta-feira, 2 de outubro de 2009

CAPÍTULO XXX

Em pé, junto ao balcão, repetiu:
— Queria uma navalha.
O caixeiro, um rapaz de óculos, com um esparadrapo no pescoço, indaga:
— Que marca?
Faz a pergunta e, ao mesmo tempo, espreme uma espinha. Silvio vacila, como se uma simples marca fôsse um problema inesperado e desagradável. Gostaria de parecer alguém que fêz do uso da navalha um hábito antigo e cotidiano. Deixou escapar uma mentira des­necessária: — “Eu nunca usei gilete”. Pergunta a si mesmo, com surda irritação: — “Por que fui dizer isso?” Pigarreia:
— Qualquer marca. Não tenho preferência.
E, por um momento, teve a sensação (o que era um absurdo) a sensação de que o outro sabia. Por ou­tras palavras: — sabia que, pouco antes, êle, Engraça­dinha e Letícia haviam feito o pacto de um amor tris­te e miserável. Sim, com um mínimo de palavras, os três tinham-se entendido. Êle não sabia explicar essa compreensão que não exigia um argumento, um racio­cínio. Enquanto o caixeiro de esparadrapo ia e vinha. Sílvio teve tempo de pensar: — “O amor devia ser um casal e, ao mesmo tempo, uma testemunha”. Repetia, para si mesmo, e já agora com uma sensação de fogo na garganta: — “Uma testemunha passiva, talvez sen­tada numa cadeira ou na extremidade da cama, mas presente”. Essa terceira presença, muda e atônita, tor­naria o prazer sobre-humano. “O prazer de um deus”, disse para si mesmo, enquanto que o caixeiro, já de volta, abria, diante dêle, três estojos.
Apanhando e abrindo uma das navalhas, êle continuava pensando, por outras palavras, o seguinte: — certos prazeres dão subitamente ao homem a sensação de que êle já foi deus algum dia. “Eu fui deus”, refle­tia. Ao mesmo tempo ocorreu-lhe a idéia de que uma navalha é realmente linda. Ergue o rosto febril:
— Qual é a melhor?
Olhava agora o esparadrapo do rapaz: — “Furúnculo”, deduziu. O caixeiro apanha uma das navalhas:
— Essa aqui — por exemplo — mais cara, mas vale a pena. Tenha a bondade.
Sentiu na mão a lâmina. Nada mais gelado que o fio da navalha. Diz para si mesmo: — “Se êle soubesse o que eu estou pensando. Se soubesse que, logo mais, as duas me esperam no quarto!” Respira fundo:
— Fico com essa.
Escolhera ao acaso. Na verdade, repetiu para si mesmo, “todas são lindas”. Enquanto o caixeiro ia em­brulhar um dos estojos, êle, com um sofrimento inefá­vel, pensava: — “Não foi preciso convencê-las”. E mais: — não fora preciso nem convencer-se a si mes­mo. Continuou, enquanto o rapaz do esparadrapo pas­sava o barbante no embrulho estreito e comprido: — “Quem sabe se antes, muito antes...” Êle queria ad­mitir um passado, inacessível à memória dos homens, em que o amor normal exigisse, além do casal, uma testemunha, sòmente olhando e sentada. Recebeu o estôjo e pagou. Agora esperava o trôco. Só de pensar que iria encontrá-las, à sua espera, sentiu um tal afluxo de sangue na cabeça que julgou desfalecer.
O caixeiro dava-lhe o troco.
— Às suas ordens.
E êle, embolsando o dinheiro:
— Passar bem.
Na rua, tratou de desfazer o embrulho. Apanhou a navalha e a guardou; em seguida, deixou cair, junto ao meio-fio, o papel e o estôjo. Coisa estranha! Com a navalha viva no bolso, experimentou um sentimen­to de paz intensa, uma brusca euforia. Dir-se-ia que ela vinha dar-lhe um nôvo poder, um dom misterioso, talvez encantado. De vez em quando tinha vontade de abrir a lâmina dentro da luz. Parou numa esqui­na; pergunta: — “E se eu telefonar, agora, para En­graçadinha, dizendo que não quero?”
Quis desviar o pensamento. Mas não se libertava daquela fixação hedionda. Olhava sem ver as pessoas, os prédios, os carros. As duas o amavam; ia trair uma e outra. Mas qual delas ia ser amada e qual delas ia ser apenas traída? Então, disse, a meia voz:
— Engraçadinha!
E não entendia porque Letícia aceitara aquêle amor que admitia ou, por outra, que precisava, para a sua plenitude, de uma testemunha. Engraçadinha era só sexo e seu olhar, seu sorriso, seu andar, seus qua­dris, vinham pesados de voluptuosidade. “Se titio sou­besse que, em casa, nós três...” Mas continuava sem entender Letícia, a doce, a maravilhosa, a cálida faci­lidade do seu abandono.
Pôs a mão no bolso da navalha. A certeza de que ela estava lá — e viva — deu-lhe novamente aquela sensação de segurança. Repetia para si mesmo: — “Te­lefono para Engraçadinha?” Por um momento, quase cedeu à tentação de ligar. Conteve-se. Pensava:
— Eu sou um crápula.

* * *

Pouco depois que Sílvio saiu, Dr. Arnaldo apare­ceu na porta da biblioteca:
— Engraçadinha!
— Eu?
E o velho:
— Traz Letícia.
Zózimo estava lá. Fizera várias tentativas para fa­lar. Dr. Arnaldo, porém, na sua euforia de pai de uma virgem (a palavra virgindade não lhe saía da cabeça), Dr. Arnaldo não o deixava prosseguir:
— Jovem, a situação agora mudou de figura. — E insistiu, com ênfase: — Mudou radicalmente. Minha filha já não depende mais da generosidade do noivo
Súbito, Zózimo perdeu a paciência. Ergueu-se e, por sua vez, interrompeu vivamente o velho:
— Dr. Arnaldo, o senhor, naturalmente, deve fazer um péssimo juízo de mim.
O deputado virou-se, estupefato: — “Eu?” Por singular coincidência, no exato momento em que Zó­zimo disse isso, o velho estava pensando; “Mas que animal!” Dir-se-ia que o outro, por uma dessas vidências súbitas e realmente inexplicáveis, lera no seu pen­samento. Um pouco desconcertado, dispõe-se a ouvir:
— O amor é tão raro, hoje em dia, tão difícil, que o homem ama errado.
Dr. Arnaldo pensava ainda na virgindade da filha: — “Como assim?” Aquilo pareceu-lhe obscuro e irri­tante. O outro prosseguia, numa excitação progressiva:
— O senhor sabe, naturalmente, que o meu pai é casado em segundas núpcias.
Dr. Arnaldo encara o futuro genro com evidente desagrado. Parecia dizer: — “Ora veja! O que é que eu tenho com isso?” Zózimo percebeu a impaciência e irritação do outro. Explicou, angustiado:
— Eu acabo já. Estou no fim. Mas, como eu ia di­zendo: — eu tinha oito — veja bem! — oito anos, quando um dia. Ainda me lembro como se fôsse hoje. Meu pai vem me buscar em casa e me leva para a casa de uma velha tia.
Dr. Arnaldo começava a ouvir, com um nôvo inte­resse. Zózimo estava dizendo: — “A tia caiu de joe­lhos aos seus pés”. Foi contando. O pai empurra a ve­lha e arromba uma porta. Lá dentro, estava a mãe de Zózimo, com um sujeito. O rapaz arqueja:
— Meu pai podia ter levado a polícia. Mas, não. Fez-se acompanhar de uma única autoridade: — o fi­lho de oito anos. Queria que eu visse o adultério. Er­gueu-me nos braços e sacudia-me: — “Tua mãe, meu filho! Tua mãe!”
Há uma pausa. Em voz baixa, com um olhar suplicante, Zózimo pergunta: — “Compreende agora?” A rigor. Dr. Arnaldo não compreendia nada. “Por que êle me contou isso?” Era o que perguntava a si mesmo. O rapaz gostaria de concluir: — “Depois disso, eu passei a achar que só a adúltera tem razão”. Mas quan­do fala, diz outra coisa:
— O senhor acha que meu pai amava minha mãe? Nunca. Se amasse, teria admitido o adultério, simples­mente. Eu li não sei onde que “amar é dar razão a quem não tem”. Uma vez que eu amo sua filha, dou-lhe razão, desde já, mesmo no adultério. Entende ago­ra? A minha atitude dizendo que aceitaria sua filha, ainda que grávida de outro, não é falta de caráter ou de...
Cala-se, ofegante. Desejaria dizer que neste mun­do a bondade precisa ser justificada. Ou é justificada ou rejeitada. Conclui, balbuciando: — “Não queria que o senhor interpretasse mal...” A princípio perplexo, Dr. Arnaldo pensa: — “Para uma mulher como En­graçadinha, de uma sexualidade tão acentuada...” E continuou: — “... Para certos temperamentos femi­ninos, convém um marido que prèviamente perdoa...” Decide, bruscamente: — “Preciso casá-la quanto an­tes”. Vai até a porta e chama as duas. Põe a mão no ombro do futuro genro; diz, como se, de repente, tives­se a certeza de que a filha, cedo ou tarde, trairia:
— Realmente, realmente.

* * *

Quase meia-noite.
Letícia deitou-se na cama e Engraçadinha no chão, em cima da colcha, junto ao guarda-vestido. Já no escuro, Letícia pergunta:
— E se êle não vier?
Respondeu, com uma certeza fanática:
— Virá.
Silêncio. Engraçadinha pensa na conversa que ti­vera com o pai, na presença de Letícia e de Zózimo. Eis o que resolvera Dr. Arnaldo: — “Daqui a três meses”. Responderam: — “Sim”. Três meses! Mas que importa­va Zózimo, o casamento, o vestido de noiva, a igreja? O pai ainda batia na mesma tecla: — o casamento no mesmo dia. Zózimo concordou com tudo. Mas o que, no momento, gelava Engraçadinha até os ossos era es­perar. A poria estava apenas encostada.
Em plena madrugada, sentem que alguém a em­purra. Engraçadinha, quase sem respirar, pergunta a si mesma: — “Vai escolher quem?” Silvio estava no quarto. Letícia crispa-se na cama. O rapaz torce a cha­ve. Caiu, ali, uma solidão desesperadora. O rapaz pen­sa: — “Elas não desconfiam de nada”. Súbito, acende a luz.
As duas olham, num deslumbramento. Êle abre a navalha e caminha.

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