Eis o que acontecera: — Dr. Arnaldo passara algumas horas fazendo a meditação diária sobre a “cunhada impossível”. Era, por assim dizer, uma saudade com hora marcada, uma saudade que ocorria, regularmente, após a última refeição. Sòzinho na biblioteca, fechado à chave, êle se entregava à sua nostalgia carnal. Era tão intensa a evocação que por momentos, a bem amada parecia tornar-se visível e tangível. E quando, finalmente, êle abandonava a biblioteca, vinha fisicamente exausto e pior: — seus olhos faiscavam dentro de um halo tão negro que parecia feito de rolha queimada.
Naquela noite, após cumprir a sua rotina de memória, Dr. Arnaldo saíra da biblioteca. Nunca desejara tanto a que morrera. Pára um momento, junto da porta da biblioteca, imagina a própria imagem. Via-se a si mesmo como sátiro esguio de olheiras violentas, lábios lívidos, e mais, — este sátiro, ali, parado, no corredor, usava ceroulas de amarrar nas canelas, com duas voltas. — Alquebrado — um pouco ofegante — caminhou. Para êle era um esforço conservar-se em pé. Dir-se-ia que a saudade da cunhada o ralara tanto, por dentro, que até os seus ossos eram agora de uma fragilidade desesperadora. Súbito, Dr. Arnaldo estaca. Ouvira vozes, nitidamente três vozes. Vinham de onde? E repetia para si mesmo que eram três vozes, duas femininas e uma masculina. Aproxima-se e não tem dificuldades em localizar. Estava assombrado: — “Vozes no quarto de Engraçadinha”.
Considerou, então, que, sendo assim, não podia ter escutado voz de homem. Fora vítima, certamente, de uma ilusão auditiva. “Estão acordadas”, deduziu. Letícia e Engraçadinha. Felizmente, a sobrinha estava lá. Do contrário, podia supor, até, que Sílvio, talvez Sílvio... Pára junto à porta de Engraçadinha. As vozes vêm de lá; mas falam baixo, tão baixo que não dá para separar e entender as palavras.
Bate, chama:
— Engraçadinha! Engraçadinha!
E não entende a luz acesa. Veio a resposta sôfrega:
— Pronto, papai!
Sílvio recua, encosta-se à parede. Quase sem respirar, vai até a cama, introduz a mão debaixo do travesseiro e apanha a navalha. Êle não sabe o que faria com a lâmina aberta. Letícia trinca os dentes. Engraçadinha está descalça junto à porta o silêncio da camisola cai sobre os seus quadris. Do lado de fora o velho faz perguntas:
— Luz acesa, por quê?
Êle sentia-se mais magro do que nunca. Insiste, espantado e descontente:
— Sentindo alguma coisa?
Mente, incerta:
— Nada, papai! Dôr de cabeça. Mas passa.
E êle:
— Fecha a luz, minha filha.
“Ainda bem que Letícia está aí”, suspirou o Dr. Arnaldo. Vacila ainda, mas desconfiar de quê? E repete para si: — “Letícia está junto”. Todavia, chama a outra: — “Letícia, está acordada?” A sobrinha responde:
— Boa noite, titio.
— Boa noite, Letícia.
Eis a verdade: — houve um momento que, julgando ter escutado uma voz de homem, em surdina, êle chegara a imaginar uma possibilidade tão miserável que... Não, não. Seria demais. Engraçadinha alteia a
— A bênção, papai.
O velho respira fundo:
— Deus te abençoe.
Dr. Arnaldo retira-se, ou, por outra: afasta-se alguns passos e pára. Olha para a extremidade do corredor: — o quarto de Sílvio estava iluminado e teve a idéia de passar por lá. Mas a verdade é que, depois do que acontecera ultimamente, passara a ter mêdo do rapaz. Mêdo ou vergonha ou as duas coisas (também remorso). Poderia limitar-se a bater na porta do filho para desejar-lhe apenas “boa noite”. Nem isso: — “Vou dormir”, decidiu.
* * *
Estavam calados e atônitos. Ao chamar pela filha. Dr. Arnaldo interrompera, bruscamente, aquêle delírio. O que ficara, da embriaguez recente e maligna, era apenas o vácuo. O prazer desaparecera até o último vestígio. Sílvio põe novamente a navalha debaixo do travesseiro. Esperam ainda que o velho tenha tempo de mudar a roupa e deitar-se.
Sílvio fala quase sem voz, apenas com o movimento dos lábios:
— Engraçadinha, senta aqui.
Quer que ela venha sentar-se ao seu lado para em seguida deitar-se. Engraçadinha vira-se para Letícia:
— Vai!
E a outra, empurrando-a de leve:
— Você.
Ainda há pouco, quando Letícia, por trás, prendera os seus braços, Engraçadinha experimentara a sensação da mulher que vai ser violada. Podia ter-se desvencilhado, com facilidade. Todavia, preferiu deixar-se dominar, simulando para si mesma uma fraqueza inexistente. Chegara a pensar: —”Se eu morder Sílvio, talvez êle me dê um tapa na bôca!” A idéia de apanhar na bôca deu-lhe um prazer muito agudo. Oh, sentir mêdo diante do homem que derruba e subjuga! E, súbito, a voz do pai apaga o sonho, corta o desejo. Sílvio aproxima-se; diz:
— Escuta.
Êle a puxa para si. Estão em pé, no meio do quarto, quase bôca com bôca (Engraçadinha sente, confusamente, que a proximidade de um rosto o desfigura, dá-lhe uma vida grotesca e terrível). Sílvio fala:
— Eu te amo.
Letícia aproxima-se, com uma face hirta de sonâmbula. Nem êle, nem os outros lembram-se mais da interrupção de há pouco. Letícia quer estar junto dos dois. Vai ser traída e quer ver o rosto do ser amado contraído em volúpia mortal, quer ver os pés trançados no alto, em delírio. Crispa a mão no braço de Sílvio; pede baixo: — “Beija Engraçadinha!” Êles não se movem. Letícia passa uma mão por detrás de cada cabeça, empurra um rosto contra o outro — para o beijo. Sílvio continua:
— Eu amo você e não Letícia.
Êsse tom de adoração exaspera Engraçadinha. Gostaria de gritar-lhe: — “Não é isso, Sílvio! Não é isso!” Sonhava com uma violência que o rapaz agora lhe negava. Gostaria de gritar. Se estivessem num lugar deserto, num ermo desesperador, então sim, gritaria. Ah, não queria êsse amor triste apenas terno, nem violento nem cruel. Correr num descampado, tropeçar e cair, levantar-se para cair novamente; e, por fim, deitada, apanhar na bôca — apanhar com as costas da mãos na bôca. Oh, triste amor quando os dois querem e aceitam e não há então violência! Oh, triste amor quando o homem deseja e a mulher se oferece! E não poder dizer, simplesmente dizer: — “Eu quero ser violada!”
Sílvio a segurou pelo pulso:
— Vem.
— Para onde?
— Te levo.
Sussurra:
— Tenho mêdo.
Êle fala junto de sua orelha pequenina e sensível:
— Vamos para a biblioteca. Não queres? Como da primeira vez. Vamos — e repetia: — Eu te levo.
Passara nele tôda a violência. Agora o seu desejo e triste. Engraçadinha pensa: — “Não sabe que é meu irmão! Não sabe!” E, por um momento, tem ódio do pai que o fizera irmão. Sílvio vai até a cama apanhar a navalha debaixo do travesseiro. Quando volta, Letícia trava-lhe o braço, numa súplica:
— E eu?
Sílvio a encara:
— Você fica.
Êle a olha como se, de repente, a odiasse. Letícia tem uma brusca cólera:
— Você não vai me trair. Não gosto de você. Vou ser traída por Engraçadinha. Só amo Engraçadinha.
Sílvio a empurra e leva dali Engraçadinha. Letícia daria tudo, tudo, para ver o ser amado traindo. O rapaz e Engraçadinha abandonam o quarto; descalços, deslizam pelo corredor, rente à parede. Abrem a biblioteca e entram. Êle torce a chave. Engraçadinha diz para si mesma: — “Sou irmã”. Sílvio já não queria a testemunha calada e terrível. Angustiado, cerra tôdas as cortinas da biblioteca para que a luz não passe. Em seguida, acende. Quando, porém, agarra Engraçadinha, esta balbucia:
— Não beija.
— Por quê?
Crispada, não responde. Então. Sílvio curva a cabeça e a beija no pescoço. Engraçadinha desprende-se com violência. Recua; diz-lhe, com um sofrimento quase doce:
— Sou tua irmã. Não prima: — irmã.
Repete, até saturá-lo: — “Somos irmãos, Sílvio!” Conta-lhe tudo. Êle aperta a cabeça entre as mãos, na impotência do seu ódio: — “Sou teu irmão?” Súbito, põe-se a rir, pesadamente: — “Sim, há três minutos sou teu irmão! Três minutos!” Oh, meu Deus, êsse parentesco que desabava maciçamente sobre êle! Parecia-lhe uma lúgubre indecência que, em três minutos, a vida o transformasse de amante em irmão. Fora de si, repetia: — “Eu não te quero como irmã! Eu não te aceito como irmã!” Odiou essa mãe longínqua que se entregara a um cunhado. Diante dêle, Engraçadinha parecia pedir perdão de ser irmã. E o que o punha louco é que podia puxar o relógio e contar o tempo:
— Sou teu irmão há cinco, dez, vinte, vinte e cinco minutos, meia-hora!
Aquilo não lhe saía da cabeça: — “Eu não era e sou, por quê?” Engraçadinha sentara-se na extremidade do divã, transida de mêdo (o mêdo fazia nascer tôda a voluptuosidade; invejava as mulheres que são violadas). Súbito, êle cai de joelhos diante dela:
— Queres?
Repetiu: — “Queres”. Silêncio. No corredor, Letícia prostrava-se em adoração junto à porta. Sílvio passa a mão na cabeça de Engraçadinha e a agarra pelos cabelos: — “Se continuares calada, é porque queres como eu. Responde. Queres?” Nada, ainda. Êle não pergunta mais. Diz, sem voz: — “Tira tudo. Fica nua. Nua”. O sonho rompeu da angústia. Houve um momento em que Engraçadinha ia gritar; êle tapou-lhe a bôca brutalmente, ao mesmo tempo mordia-lhe os cabelos para não gritar também. A resposta perdera o sentimento da própria identidade. Imaginou que eram dois monstros cegos que morriam de amor numa gelada floresta marinha. Muito depois — quase ao amanhecer — Sílvio ergueu-se. Ela estava quieta — nessa calma intensa que há na carne durante o sono da alma. Sílvio passou alguns minutos, em pé, de olhos fechados, como se orasse.
Por fim, apanhou a navalha. De repente, Engraçadinha o viu fazer um risco intenso e luminoso. Era a luz quebrando-se na lâmina viva. Na sua mão, a navalha tornou-se ainda mais leve, macia, diáfana. Êle feriu a alma da própria carne. Foi um golpe único e exato. Decepado, o cacho do sonho e da vida pendeu de filête vibrante. Finalmente, soltou-se.
domingo, 4 de outubro de 2009
CAPÍTULO XXXII
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