domingo, 4 de outubro de 2009

CAPÍTULO XXXII

Eis o que acontecera: — Dr. Arnaldo passara al­gumas horas fazendo a meditação diária sobre a “cunhada impossível”. Era, por assim dizer, uma sau­dade com hora marcada, uma saudade que ocorria, regularmente, após a última refeição. Sòzinho na bi­blioteca, fechado à chave, êle se entregava à sua nos­talgia carnal. Era tão intensa a evocação que por mo­mentos, a bem amada parecia tornar-se visível e tan­gível. E quando, finalmente, êle abandonava a biblio­teca, vinha fisicamente exausto e pior: — seus olhos faiscavam dentro de um halo tão negro que parecia feito de rolha queimada.
Naquela noite, após cumprir a sua rotina de me­mória, Dr. Arnaldo saíra da biblioteca. Nunca desejara tanto a que morrera. Pára um momento, junto da por­ta da biblioteca, imagina a própria imagem. Via-se a si mesmo como sátiro esguio de olheiras violentas, lábios lívidos, e mais, — este sátiro, ali, parado, no cor­redor, usava ceroulas de amarrar nas canelas, com duas voltas. — Alquebrado — um pouco ofegante — cami­nhou. Para êle era um esforço conservar-se em pé. Dir-se-ia que a saudade da cunhada o ralara tanto, por dentro, que até os seus ossos eram agora de uma fra­gilidade desesperadora. Súbito, Dr. Arnaldo estaca. Ou­vira vozes, nitidamente três vozes. Vinham de onde? E repetia para si mesmo que eram três vozes, duas femi­ninas e uma masculina. Aproxima-se e não tem dificul­dades em localizar. Estava assombrado: — “Vozes no quarto de Engraçadinha”.
Considerou, então, que, sendo assim, não podia ter escutado voz de homem. Fora vítima, certamente, de uma ilusão auditiva. “Estão acordadas”, deduziu. Letícia e Engraçadinha. Felizmente, a sobrinha estava lá. Do contrário, podia supor, até, que Sílvio, talvez Síl­vio... Pára junto à porta de Engraçadinha. As vozes vêm de lá; mas falam baixo, tão baixo que não dá para separar e entender as palavras.
Bate, chama:
— Engraçadinha! Engraçadinha!
E não entende a luz acesa. Veio a resposta sôfrega:
— Pronto, papai!
Sílvio recua, encosta-se à parede. Quase sem res­pirar, vai até a cama, introduz a mão debaixo do tra­vesseiro e apanha a navalha. Êle não sabe o que faria com a lâmina aberta. Letícia trinca os dentes. Engraça­dinha está descalça junto à porta o silêncio da cami­sola cai sobre os seus quadris. Do lado de fora o velho faz perguntas:
— Luz acesa, por quê?
Êle sentia-se mais magro do que nunca. Insiste, es­pantado e descontente:
— Sentindo alguma coisa?
Mente, incerta:
— Nada, papai! Dôr de cabeça. Mas passa.
E êle:
— Fecha a luz, minha filha.
“Ainda bem que Letícia está aí”, suspirou o Dr. Arnaldo. Vacila ainda, mas desconfiar de quê? E re­pete para si: — “Letícia está junto”. Todavia, chama a outra: — “Letícia, está acordada?” A sobrinha res­ponde:
— Boa noite, titio.
— Boa noite, Letícia.
Eis a verdade: — houve um momento que, julgan­do ter escutado uma voz de homem, em surdina, êle chegara a imaginar uma possibilidade tão miserável que... Não, não. Seria demais. Engraçadinha alteia a
— A bênção, papai.
O velho respira fundo:
— Deus te abençoe.
Dr. Arnaldo retira-se, ou, por outra: afasta-se al­guns passos e pára. Olha para a extremidade do corredor: — o quarto de Sílvio estava iluminado e teve a idéia de passar por lá. Mas a verdade é que, depois do que acontecera ultimamente, passara a ter mêdo do rapaz. Mêdo ou vergonha ou as duas coisas (também remorso). Poderia limitar-se a bater na porta do filho para desejar-lhe apenas “boa noite”. Nem isso: — “Vou dormir”, decidiu.

* * *

Estavam calados e atônitos. Ao chamar pela filha. Dr. Arnaldo interrompera, bruscamente, aquêle delírio. O que ficara, da embriaguez recente e maligna, era apenas o vácuo. O prazer desaparecera até o último vestígio. Sílvio põe novamente a navalha debaixo do travesseiro. Esperam ainda que o velho tenha tempo de mudar a roupa e deitar-se.
Sílvio fala quase sem voz, apenas com o movimen­to dos lábios:
— Engraçadinha, senta aqui.
Quer que ela venha sentar-se ao seu lado para em seguida deitar-se. Engraçadinha vira-se para Letícia:
— Vai!
E a outra, empurrando-a de leve:
— Você.
Ainda há pouco, quando Letícia, por trás, prende­ra os seus braços, Engraçadinha experimentara a sen­sação da mulher que vai ser violada. Podia ter-se desvencilhado, com facilidade. Todavia, preferiu deixar-se dominar, simulando para si mesma uma fraqueza inexistente. Chegara a pensar: —”Se eu morder Sílvio, talvez êle me dê um tapa na bôca!” A idéia de apa­nhar na bôca deu-lhe um prazer muito agudo. Oh, sen­tir mêdo diante do homem que derruba e subjuga! E, súbito, a voz do pai apaga o sonho, corta o desejo. Síl­vio aproxima-se; diz:
— Escuta.
Êle a puxa para si. Estão em pé, no meio do quar­to, quase bôca com bôca (Engraçadinha sente, confusamente, que a proximidade de um rosto o desfigura, dá-lhe uma vida grotesca e terrível). Sílvio fala:
— Eu te amo.
Letícia aproxima-se, com uma face hirta de sonâmbula. Nem êle, nem os outros lembram-se mais da interrupção de há pouco. Letícia quer estar junto dos dois. Vai ser traída e quer ver o rosto do ser amado contraído em volúpia mortal, quer ver os pés trançados no alto, em delírio. Crispa a mão no braço de Sílvio; pede baixo: — “Beija Engraçadinha!” Êles não se mo­vem. Letícia passa uma mão por detrás de cada cabe­ça, empurra um rosto contra o outro — para o beijo. Sílvio continua:
— Eu amo você e não Letícia.
Êsse tom de adoração exaspera Engraçadinha. Gos­taria de gritar-lhe: — “Não é isso, Sílvio! Não é isso!” Sonhava com uma violência que o rapaz agora lhe ne­gava. Gostaria de gritar. Se estivessem num lugar de­serto, num ermo desesperador, então sim, gritaria. Ah, não queria êsse amor triste apenas terno, nem violen­to nem cruel. Correr num descampado, tropeçar e cair, levantar-se para cair novamente; e, por fim, deitada, apanhar na bôca — apanhar com as costas da mãos na bôca. Oh, triste amor quando os dois querem e aceitam e não há então violência! Oh, triste amor quan­do o homem deseja e a mulher se oferece! E não poder dizer, simplesmente dizer: — “Eu quero ser violada!”
Sílvio a segurou pelo pulso:
— Vem.
— Para onde?
— Te levo.
Sussurra:
— Tenho mêdo.
Êle fala junto de sua orelha pequenina e sensível:
— Vamos para a biblioteca. Não queres? Como da primeira vez. Vamos — e repetia: — Eu te levo.
Passara nele tôda a violência. Agora o seu desejo e triste. Engraçadinha pensa: — “Não sabe que é meu irmão! Não sabe!” E, por um momento, tem ódio do pai que o fizera irmão. Sílvio vai até a cama apanhar a navalha debaixo do travesseiro. Quando volta, Letícia trava-lhe o braço, numa súplica:
— E eu?
Sílvio a encara:
— Você fica.
Êle a olha como se, de repente, a odiasse. Letícia tem uma brusca cólera:
— Você não vai me trair. Não gosto de você. Vou ser traída por Engraçadinha. Só amo Engraçadinha.
Sílvio a empurra e leva dali Engraçadinha. Letí­cia daria tudo, tudo, para ver o ser amado traindo. O rapaz e Engraçadinha abandonam o quarto; descal­ços, deslizam pelo corredor, rente à parede. Abrem a biblioteca e entram. Êle torce a chave. Engraçadinha diz para si mesma: — “Sou irmã”. Sílvio já não que­ria a testemunha calada e terrível. Angustiado, cerra tôdas as cortinas da biblioteca para que a luz não pas­se. Em seguida, acende. Quando, porém, agarra Engra­çadinha, esta balbucia:
— Não beija.
— Por quê?
Crispada, não responde. Então. Sílvio curva a ca­beça e a beija no pescoço. Engraçadinha desprende-se com violência. Recua; diz-lhe, com um sofrimento qua­se doce:
— Sou tua irmã. Não prima: — irmã.
Repete, até saturá-lo: — “Somos irmãos, Sílvio!” Conta-lhe tudo. Êle aperta a cabeça entre as mãos, na impotência do seu ódio: — “Sou teu irmão?” Súbito, põe-se a rir, pesadamente: — “Sim, há três minutos sou teu irmão! Três minutos!” Oh, meu Deus, êsse parentesco que desabava maciçamente sobre êle! Pa­recia-lhe uma lúgubre indecência que, em três minu­tos, a vida o transformasse de amante em irmão. Fora de si, repetia: — “Eu não te quero como irmã! Eu não te aceito como irmã!” Odiou essa mãe longínqua que se entregara a um cunhado. Diante dêle, Engraça­dinha parecia pedir perdão de ser irmã. E o que o punha louco é que podia puxar o relógio e contar o tempo:
— Sou teu irmão há cinco, dez, vinte, vinte e cinco minutos, meia-hora!
Aquilo não lhe saía da cabeça: — “Eu não era e sou, por quê?” Engraçadinha sentara-se na extremida­de do divã, transida de mêdo (o mêdo fazia nascer tôda a voluptuosidade; invejava as mulheres que são violadas). Súbito, êle cai de joelhos diante dela:
— Queres?
Repetiu: — “Queres”. Silêncio. No corredor, Letícia prostrava-se em adoração junto à porta. Sílvio pas­sa a mão na cabeça de Engraçadinha e a agarra pelos cabelos: — “Se continuares calada, é porque queres como eu. Responde. Queres?” Nada, ainda. Êle não pergunta mais. Diz, sem voz: — “Tira tudo. Fica nua. Nua”. O sonho rompeu da angústia. Houve um mo­mento em que Engraçadinha ia gritar; êle tapou-lhe a bôca brutalmente, ao mesmo tempo mordia-lhe os ca­belos para não gritar também. A resposta perdera o sentimento da própria identidade. Imaginou que eram dois monstros cegos que morriam de amor numa ge­lada floresta marinha. Muito depois — quase ao ama­nhecer — Sílvio ergueu-se. Ela estava quieta — nessa calma intensa que há na carne durante o sono da alma. Sílvio passou alguns minutos, em pé, de olhos fecha­dos, como se orasse.
Por fim, apanhou a navalha. De repente, Engraça­dinha o viu fazer um risco intenso e luminoso. Era a luz quebrando-se na lâmina viva. Na sua mão, a na­valha tornou-se ainda mais leve, macia, diáfana. Êle feriu a alma da própria carne. Foi um golpe único e exato. Decepado, o cacho do sonho e da vida pendeu de filête vibrante. Finalmente, soltou-se.

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