segunda-feira, 5 de outubro de 2009

CAPÍTULO XXXIII

Não se sabia ao certo, na família, a idade de tia Ceci. Talvez uns oitenta, setenta e oito. Naquela noite, antes de dormir, tomara o seu banho de assento. E, de­pois, derramara talco em si mesma. Enfim, cheirosa como um bebê, vestiu-se. Há muito tempo deixara de ter seio. Ao sair do banheiro, veio para o quarto, ca­minhando pelo corredor, no seu passinho imperceptí­vel — era tão leve e pequenina de uma fragilidade desesperadora — ela pensava na própria morte. Queria para si um enterro como o de Delfim Moreira, puxado por cavalos brancos e de penacho. Sim, antigamente os enterros eram mais bonitos. “Assassinaram o Pinheiro Machado”, pensou.
Tia Ceci entrou no quarto. Preparou-se para dor­mir. Nas últimas noites, dera para sonhar com o Del­fim Moreira. Era um velho bonito (aliás, um presiden­te sempre é bonito). Ela fora ao Rio e vira o Delfim Moreira. Tirara a cartola para ouvir o Hino Nacional. Quando êle passou, na carruagem, ela tia Ceci, pôs-se na ponta dos pés; gritou, esganiçadamente: — “Viva o Doutor Delfim Moreira!” Da carruagem, o Presidente sorria, fazendo um aceno — e tinha qualquer coisa de chinês na fisionomia.
A velhinha deitou-se. Naquela casa, ninguém con­cedia a mínima importância à tia Ceci. Estava nessa idade em que a pessoa perde como que o direito de in­sistir na vida. De vez em quando, o Dr. Arnaldo a olha­va, entre surprêso e descontente, como se perguntasse: — “Como? Ainda vive? Não morreu ainda? Ora veja!”
Agora estava na cama com os pequeninos pés de fora — pés tão leves e tão frios. Ela pensava na Revolta da Armada, quando ouviu um grito de homem. Mas não se espantou, nem teve mêdo. Tia Ceci dormia mais de dia, na cadeira, com o rosário no regaço, escorren­do pelos joelhos. De noite, tinha insônias. Que signifi­cava um grito a mais para quem vivia em meio a uma fauna misteriosa e triste de ruídos noturnos? Tôdas as noites Tia Ceci ouvia outros gritos, outras vozes. Na calçada, transeuntes retardatários davam berros e ri­sadas. Ela desperta, com o rosário nas mãos, imagi­nava que êsses transeuntes não seriam como nós, mas duendes de rua ou ainda: — mais vampiros do que simples moleques. Sílvio acabara de gritar. Todavia, tia Ceci não acreditou nos próprios ouvidos. Seria talvez um moleque, fazendo uma miserável imitação de grito.
O verdadeiro grito parece falso. Aquêle que sofre uma amputação ou, para repetir as palavras do próprio Sílvio, aquêle que sofre uma “mutilação hedion­da”, grita como nenhum outro faria. Dir-se-ia que ape­nas imita, que apenas falsifica a dor da carne para sempre ferida. Tia Ceci acha que alguém estava cini­camente imitando um grito.

* * *

Enquanto tia Ceci pensava na vacina obrigatória (a Saúde Pública queria vacinar as mulheres na coxa), Dr. Arnaldo abria um livro que um colega, o Saraiva, lhe emprestara. O Saraiva, que era a maior cabeça da Câmara — uma inteligência de escol — soprara ao seu ouvido, passando-lhe o volume: — “Lê isso, que vale a pena”. O livro estava encapado para evitar as cos­tumeiras indiscrições. O título dizia tudo: — “Nossa Vida Sexual” e o autor era de fora. Há várias noites que o Dr. Arnaldo lia (ou relia), fatalmente, o capítulo reservado às posições. Dir-se-ia que tudo o mais care­cia de interêsse. E o que impressionava é que o refe­rido trecho, embora descritivo, conservava um tom de casta objetividade. Dr. Arnaldo estava fazendo a re-leitura do capítulo, quando escutou aquêle grito de homem.
Era um berro, um uivo. No primeiro instante, êle duvida também. Admitiu que fôsse uma imitação de grito. Alguém estaria fazendo uma cínica simulação de dor. Com o livro aberto, esperou ainda. Todavia, fêz esta reflexão: — “Dentro de casa?” Ergueu-se, atônito, e, instintivamente, apanhou a bengala.
Em seguida, e simultâneamente, dois gritos femi­ninos. Precipitou-se para a porta, de bengala erguida. Três gritos dentro de casa. Abre a porta e se arremessa pelo corredor. Viu um vulto branco, batendo, com os punhos cerrados, na porta da biblioteca: — Letícia.
No seu quarto, tia Ceci ouvia tudo. Escutava a voz do Dr. Arnaldo:
— Letícia! Letícia!
Corre-corre na casa. Ataques de mulher. Mas tia Ceci ouvia demais. Escutava vozes, gargalhadas, passos. Alta madrugada, sentia gatos e galos no corredor. Ela própria não ligava mais para o escarcéu noturno. Fora a um médico, levada por tia Zezé; ouvira uma conver­sa de arteriosclerose. Há muito tempo que a velhinha não sentia mais tristeza, nem medo. Sim, há muito tempo que sua vida era um fio manso, um fio doce de memória. Ah, Delfim Moreira com calça listrada, boti­nas de botão! Também sua alegria era tão rala, tão tênue! E agora, dentro da noite, ouvia um gemido de homem — pesado gemido, pessoas correndo e trope­çando no corredor.
Tia Ceci julgava ouvir os berros do Dr. Arnaldo:
— Lençóis! Tragam lençóis!
Quando o velho chegara na porta da biblioteca, Letícia batia ainda, soluçando. Fora de si, êle a puxa pelo braço e a atira longe. Por sua vez, Dr. Arnaldo bate com a bengala e, simultâneamente, com o punho livre:
— Abram! Abram!
Súbito, alguém, pelo lado de dentro, escancara a porta. Ao entrar, o velho tropeça em Engraçadinha, alucinado, êle a derruba com um empurrão. Corre e, súbito, estaca. Via Sílvio e estupefato perguntava: — “Por que Sílvio e ensangüentado?” O espantoso é que êle não o reconhecera pelo grito. Aproxima-se:
— Sílvio! Sílvio!
Tem uma contração de estômago diante de tanto sangue. Olha para um lado e outro; berra; e berra para Engraçadinha que, encostada junto à parede, tapava o rosto com uma das mãos. Êle pensa: — “Vou vomitar!” Sempre com a bengala, pede aos berros:
— Lençóis! Lençóis!
Por um momento, teve uma sensação de impotên­cia diante da hemorragia. Continuava sem entender: — “Engraçadinha, aqui, de camisola, com Sílvio? E Letícia, do lado de fora, batendo na porta?” Apareceu o lençol — que alguém tinha arrancado da cama de Tia Ceci.
O velho amassava o lençol e queria estancar a hemorragia. Sílvio não olhava para ninguém, ou pior: — não tirava os olhos do pai. Oh, êsse olhar do homem que ainda sangra da mutilação! Dr. Arnaldo tapa, su­foca, a flor de sangue e vida. Berra:
— Assistência!
As tias não se mexem, como se aquêle lençol ver­melho as maravilhasse. Então, na sua fúria, êle uivou os mais hediondos palavrões. A própria Letícia, lívida, corre, em camisola, para o telefone. O que exasperava o Dr. Arnaldo era que estava sofrendo, digamos assim, uma inibição atroz. Estava lúcido e prático demais. Providenciara os lençóis, mandara chamar a assistên­cia e cuidava do filho com um diligência, ativa e efi­ciente. Essa eficiência é que parecia desumana. Teria preferido o desespêro. Gostaria de soluçar, de bater com a cabeça nas paredes, de mergulhar o rosto nas duas mãos e chorar como um menino, como uma crian­ça. Em vez disso, eis o que acontecera: — desabara so­bre êle um vácuo gelado. Oitava para enganar-se a si mesmo e aos outros. Todavia aquela impotência para o desespero era alucinante. Tinha que simular excita­ção. Os palavrões serviam-lhe como compensação. Eis a sua esperança: — “Daqui a pouco vou sofrer!”
E, súbito, nôvo berro:
— Fora daqui! Fora!
Escorraçava, enxotava as velhinhas. Só a tia Ceci ficou. Entrara de mansinho, com o pisar imperceptível dos pés miúdos; sentou-se num canto. Olhava o san­gue sem espanto. Alguém tinha-lhe dito: — “Sílvio machucou-se. Caiu e machucou-se”. Eis o que ela pen­sava, olhando sem mêdo e, com um mínimo de espan­to, apenas com uma curiosidade quase alegre, o sobri­nho mutilado: —”Caiu, Sílvio caiu”. Novamente, lem­brava-se de Delfim Moreira. Naquele tempo, as senho­ras usavam penas no chapéu e espartilho. Delfim Mo­reira tinha um sorriso bom. Sim, sorria como se fôsse um tio, um pai de todo o mundo. Por vêzes, ela achava que o Nosso Senhor devia ter a cara de Delfim Moreira.
Dr. Arnaldo pergunta:
— Por quê, meu filho, por quê? — E repetia: — Por quê você fêz isso?
Pensava: — “Não tira os olhos de mim!” Ao mesmo tempo, achava que devia ter feito a pergunta chorando. (Se ao menos, pudesse chorar! Ah, gostaria de mostrar ao filho que estava sofrendo até onde um pai pode sofrer). Sem desfitá-lo, o rapaz arqueja:
— Pai...
A princípio, não entende. Sílvio não sabia, não podia saber. Mas o rapaz insiste, com um olhar de bi­cho (exatamente, um olhar de bicho ferido): — “Meu pai”. Lívido, e sentindo-se mais magro do que nunca, pensa: — “Engraçadinha contou!” O ódio que sentiu pela filha deu-lhe uma brusca euforia. Enfim, experi­mentava um sentimento vivo e poderoso dentro do seu vácuo. “Daqui a pouco, estarei sofrendo e chorando”, pensou. “Mato Engraçadinha! Mato-a a pauladas!” Prometeu a si mesmo, apertando a mão do filho. Ainda não entendia porque êle se mutilara. “Mato-a de pan­cadas”, continuava. Não podia negar a própria pater­nidade. Todavia, preferiu não dizer nada.

* * *

Tia Ceci não sabia quanto tempo cochilou. Quan­do despertou, o médico da Assistência estava lá, com um enfermeiro. Dr. Arnaldo dizia ao doutor:
— O senhor, naturalmente, compreende que não é um acidente — e repetia a palavra — não é um aci­dente comum... A natureza do ferimento exige um sigilo e nem creio que o senhor queira desmoralizar um jovem que, de mais a mais, é noivo...
Tia Ceci viu levarem o rapaz. “Silvio machucou-se”, era o que sabia. O fio de memória passava por 1910. “A Saúde Pública quer vacinar coxa de mulher”. As tropas descem para a cidade. “Não podem vacinar coxa de mulher!” Durante dois dias, todos sofreram naquela casa, menos tia Ceci. De noite, na sua insônia de velhinha, ouvia gargalhadas cínicas por tôda a casa. No terceiro dia, Dr. Arnaldo apareceu. Vinha ainda mais esquálido, as faces mais ardentes e as canelas mais finas e vibrantes. Ao pensar na própria imagem julga-se parecido com um espectro de sátiro. Entra em casa e chama Engraçadinha. Tia Ceci, que vinha pelo corredor, no seu pequenino passo leve, viu os dois en­trarem na biblioteca.
Pai e filha estão finalmente sós. Êle estava mais forte porque, finalmente, chorara, no hospital. Ajoe­lhara-se junto à cama do filho e pedira perdão, mil vezes perdão. Sílvio não respondera uma única vez. Mas não tirava os olhos do pai. E, agora, diante de Engraçadinha, o velho sentia que jamais seria perdoa­do. “Vou morrer sem perdão”, era a sua certeza faná­tica.
Segurou a filha pelo pulso:
— Olha! Vim aqui te matar!

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