terça-feira, 6 de outubro de 2009

CAPÍTULO XXXIV

No seu ódio gelado, dominou a filha:
— Você é a culpada! Você!
Passara duas noites e dois dias, no hospital, sem dormir, bebendo cafèzinhos. Há dez anos não fumava. Dez anos! E, agora, com dois, três maços nos bolsos, não largava o cigarro. Fumava um atrás do outro, para saturar-se, até os ossos, de nicotina. Pensava: — “Estou cada vez mais magro!” Nos últimos dias ocorria-lhe pensar, freqüentemente, na própria figura. Especulava sobre a impressão que podia causar nos amigos, conhecidos e desconhecidos. Parecia-lhe que todo o mundo devia achá-lo sinistramente magro. Êle próprio considerava que assim esguio, com as mãos lívidas e os pulsos tão finos, assemelhava-se a um espectro de sátiro. “Ora veja!” E por quê “espectro de sátiro”. Era o que perguntava sem compreender por que atribuía a si mesmo tal semelhança. No hospital, certos doentes, já em convalescença, faziam-no parar:
— Como vai seu filho?
Tinha vontade de retribuir a cortesia a bengaladas. Corrigia:
— Sobrinho.
Passava adiante. Mas não via ninguém, ali, sem que perguntasse a si mesmo: — “Será que êsse sabe?” Vivia cercando o médico; baixava a voz:
— Conto com o senhor. Ninguém pode saber. Ninguém.
E ajuntava, sem ter de quê: — “Como presidente da Assembléia Legislativa...” Não completava a frase. Mas o simples fato de anunciar, e sempre com o acompanhamento de um pigarro, de anunciar a sua qualidade, a sua posição, insinuava ou um obséquio ou uma ameaça. Houve um momento em que, na sua excitação de tresnoitado, baixava a voz (seu hálito queimava) ;
— O senhor compreende: uma mulher pode perder o útero, os ovários. Ela não muda.
Teve vontade, até, de sugerir que, num caso de histeria, a remoção de certos órgãos femininos podia significar um beneficio positivo para a própria mulher e para a família. Não chegou a tanto porque, dada as circunstâncias, não queria parecer irônico ou irreverente. Continuou, baixo e incisivo:
— Mas o homem, não! O homem é outra coisa. E o que aconteceu a meu filho, sobrinho...
Subitamente, começou a chorar. Oh, graças, graças! Chorava e sofria. Quis desculpar-se: — “O senhor compreende...” O médico foi admirável:
— Compreendo, compreendo.
Agarrava-se também com as enfermeiras: enfiava-lhes dinheiro na mão: — “Ninguém pode saber!” repetia na sua obsessão pueril e lúgubre. Repetia para si mesmo que, na mulher, a extração de certos órgãos constitui um alívio, um descanso, ao passo que para o homem... De vez em quando, andando pelo corredor, alta madrugada, com o cigarro queimando nos dedos: — “Sílvio não é homem! Sílvio deixou de ser homem!” Até que, de repente, pensa na alma, descobre a alma. Dir-se-ia que uma luz o atravessava: —”Sim, a alma!” Abandonando um cigarro pela metade e acendendo um outro, tratava de pôr em ordem as duas idéias: — “Mas se uma simples mutilação, uma mutilação puramente física...” A enfermeira apareceu com um cafèzinho. Depois de agradecer e mexendo o café, continuou, iluminado: — “A alma está intacta”. E, afinal de contas, quem dá a nossa identidade é a alma. “Se a alma” — raciocinava contra si mesmo — “não foi mutilada, se a alma permanece”. Passou uma noite inteira fumando, tomando cafèzinho e repetindo: — “A alma! Se Deus existe; sim, se Deus existe, o que vale é a alma e tudo o mais é detalhe!” Sob a excitação da insônia, repetia, com a sua fúria de magro: — “Qualquer mutilação é um detalhe!” Quando a enfermeira veio, quase ao amanhecer, com um outro cafèzinho, êle disse, com uma fronte erguida de fanático, de santo:
— Tudo é detalhe!
Passara 48 horas sem dormir, ou, por outra: cochilara alguns minutos, atirado em cima de uma cadeira. Mas o sono era tão tênue e tão ralo, tão transparente e, ao mesmo tempo, tão semelhante à realidade, que aumentava a sua angústia. Num dêsses cochilos, vira-se na Assembléia demonstrando, por A mais B, que os nossos órgãos, ainda os supostamente essenciais — constituem, isoladamente ou em conjunto, um detalhe. Dirigindo-se ao plenário, dava murros no peito: — “A igreja está comigo”. Durante os dois dias, sem comer e sem dormir, entrava, de vez em quando, no quarto do filho. Na porta, estava um papel taxativo: — “Proibidas as visitas”. No quarto em penumbra, o filho dormia. Todavia, o Dr. Arnaldo não acreditava naquele sono. “Êle me odeia, e por que, se a culpada foi Engraçadinha?”
Por um breve momento, Sílvio abre os olhos. O velho inclina-se, sôfrego:
— Sílvio.
E o rapaz diz, quase sem mover os lábios:
— Pai.
Só Dr. Arnaldo continuava a repetir para si mesmo que, se Deus existe, o que acontecera fora um detalhe, um vil, um miserável, um ínfimo detalhe. E a culpada era Engraçadinha. “Sílvio continua o mesmo, exatamente o mesmo. E se mudou, se deixou de ser êle mesmo, então Deus não existe”.

* * *

Letícia aparecera por lá. Barrou-lhe a passagem:
— Volta.
Sem pintura, os lábios quase brancos, balbuciou:
— Queria ver Sílvio.
Repetiu, sumário:
— Volta.
A pequena ainda vacilava: — “Mas, titio!” Êle crispa a mão no seu braço:
— Olha! Eu não sei o que foi que houve. Sei apenas que você e Engraçadinha e, sobretudo, Engraçadinha — respira fundo e prossegue: — Engraçadinha, a cadela da minha filha. Pode ser minha filha, mas é uma cadela. Sei que vocês duas são culpadas.
Começa a chorar: — “Mas eu não fiz nada. Eu nem...” Dr. Arnaldo corta, com a voz estrangulada:
— Saia da minha frente, sua...!
Teve um brusco mêdo desse velho lívido e trêmulo. Afastou-se, gelada de mêdo e de vergonha. Eis o que Letícia ia pensando: — “Engraçadinha é mais culpada...” Estaca adiante. Vacila um momento e retrocede. Disse, num jato:
— Engraçadinha não é culpada de nada. A culpada sou eu, Engraçadinha, não.
Ao mesmo tempo, pensa: — “Eu morreria por Engraçadinha”. A idéia de sacrificar-se e, mesmo, de morrer pela outra — essa idéia a transfigurou. Foi novamente expulsa. Bateu-lhe, de leve com a bengala, nas pernas, enxotando-a: — “Rua!” Enfim, Letícia partiu. Dr. Arnaldo ficou, no corredor, apoiado na bengala — e odiando a filha. Precisava odiar a filha para não enlouquecer. E precisava também (sobretudo isso!) convencer-se de que mutilação era um detalhe. “O diabo é que eu não estou convencido”, pensava. De fato, não estava de todo convencido: “É um detalhe”, repetiu, começando a chorar. Se Deus existe, é um detalhe!
Na última vez, porém em que esteve no quarto Sílvio passou uns cinco a dez minutos acordado. Subitamente, Dr. Arnaldo percebeu, pela expressão do seu olhar e de sua bôca, percebeu que o filho deixara de ser êle mesmo. Era um outro ser, um pobre ser ambíguo, lúgubre, com um olhar de boi atônito, ou, melhor: — não de boi, mas de peixe, de lerdo e fantástico animal submarino.
Neste momento, olhando aquêle ser enfaixado, aquele ser enrolado na cintura, o velho foi tomado de uma certeza maligna:
— Não é um detalhe! Deus não existe!

* * *

Todos os médicos do hospital e as enfermeiras o haviam aconselhado:
— O senhor precisa descansar. Dormir um pouco.
Ouvia e pensava: — “Realmente, não é um detalhe”. O médico que cuidava de Sílvio veio caminhando com o velho pelo corredor:
— O senhor vai e, mais tarde, depois de dormir três ou quatro horas — volta.
Respirou fundo: — “Tem razão. Preciso descansar” Deixando o médico, decide: — “Mato Engraçadinha”. E pensa, descendo as escadas do hospital, que se Sílvio morresse já não seria um cadáver como os outros. Certos mutilados têm uma morte própria, uma morte exclusiva, de uma solidão mais gelada.

* * *

Diante da filha, e cara a cara com a filha, estraçalha nos dentes um palavrão. E continua:
— Você vai morrer!
Coisa curiosa! Sentia, ao mesmo tempo que a dominava, que Engraçadinha estava sem mêdo. Erguia o rosto em desafio:
— Eu não vou morrer!
Êle não entende. Pergunta: — “Não vai morrer?” E ela:
— Eu não!
Berra:
— Você me desafia?
Engraçadinha desprende-se violentamente:
— Desafio! E olha: — eu vou ter um filho.
O velho recua, desconcertado. Repete: — “Filho?” Não parou mais:
— Um filho! Que há de nascer! E ninguém vai tocar nesse filho!
Pára. Os dois se olham. O velho tem um esgar de chôro: — “Um filho, um neto”. Diz, quase sem voz:
— Os dois precisam morrer: — você e seu filho.

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