quarta-feira, 7 de outubro de 2009

CAPÍTULO XXXV

Chega, ali, com um ódio frio, sem paixão, de uma lucidez gelada. Estava diante da filha e continuava com obsessão do corpo magro (Os magros só devem amar vestidos, eis o que pensou, lembrando-se das próprias canelas finas e vibrantes).
Baixa a voz:
— Essa criança não pode nascei
A voz lhe fugia e êle repetiu para si mesmo: — “Se Deus existe, o sexo é um detalhe”. Êsse rosto erguido diante dêle, êsse corpo a um tempo erecto e fremente, essa bôca mais cruel que voluptuosa! Êle continua, sen­tindo-se odiado:
— Você vai ao Bergamini...
— Não vou!
E o velho, sem ouvi-la:
— Vai ao Bergamini...
— Não.
Pára assombrado. Dr. Arnaldo pensa que devia estar gritando, devia estar assombrando a casa com os seus gritos. Mas sua vontade quebrava-se na impotência de odiar. Se ao menos explodisse em palavrões! A por­nografia irresponsável e selvagem daria, sim daria uma espécie de excitação, de embriaguez, de violência arti­ficial. Com dor nos maxilares, pergunta:
— Não vai ao Bergamini por quê?
— Não quero.
Alteia a voz:
— Mas por quê?
E ela passando, de leve, a mão pelo ventre, numa involuntária ternura:
— O filho é meu — e completou, velando a voz: Só meu.
Estende para Engraçadinha a mão crispada:
— É filho de Silvio.
— Era.
O velho não entende: — “Era?” Ela ergue o rosto, fecha os olhos:
— Morreu.
— Quem?
— Sílvio.
Espanta-se:
— Está vivo.
— Morto.
O velho exaltou-se novamente. Berra (Oh, graças, porque o ódio rompia, finalmente). Anda de um lado para outro, tropeça nas cadeiras. Grita com a filha e, ao mesmo tempo, pensa: — “Digo ou não digo pala­vrões?” O que êle queria dizer, e as palavras lhe fu­giam, é que qualquer mutilação é um detalhe. Não im­porta a hemorragia. O sangue pode esguichar, enso­pando muitos lençóis. E, apesar disso, a amputação, qualquer que seja, é um detalhe. “Um detalhe!” repe­tiu. “A Igreja está comigo!” E continua:
— Eu vim do hospital e deixei Sílvio vivo!
— Morto!
E êle:
— Cachorra!
Gritou também:
— Assassino!
Estupefato, balbucia:
— O quê?
Numa euforia cruel, que a embeleza, repete, apai­xonadamente:
— Assassino!
— Eu?
Disse ainda, com um mínimo de voz e quase sem ódio:
— Assassino.
Êle ia perguntar, e não o fêz, por que assassino? Arquejante, olha apenas. Sente que qualquer palavra é inútil. Como convencê-la que a mais hedionda das mutilações é um detalhe? Ninguém entenderia, só Deus. E, novamente, com envenenada satisfação, faz de Deus um cúmplice. Dir-se-ia que Deus está, ali, como uma terceira presença — física, palpável, solidária. Não há mais nada a dizer, mas êle precisa excitar-se, simu­lar para si mesmo um mínimo de chama, de paixão, de loucura.
Agarra a filha:
— Escuta! Se outra vez você me chamar de assas­sino ...
Ao mesmo tempo que a segura com a mão livre, ergue a bengala:
— ...se me chamares, eu...
Engraçadinha interrompe, com um ódio sem vio­lência, quase terno:
— Assassino.
Gagueja:
— E se eu te abrir a cabeça?
— Duvido.
Geme:
— Tu me desafias?
— Assassino.
Naquele momento, ela pensava: — “Culpado de tudo, de tudo! Por que não calou? Só êle sabia e por que não calou?” Se o pai tivesse guardado o mistério para si mesmo, Sílvio seria apenas o amante e não o irmão. E depois, quando se casasse com Letícia, con­tinuaria sendo ainda o amante, eternamente. A ben­gala continua no alto. Todavia, o velho sabe que não vai desfechar o golpe. “Se ela me cuspisse na cara” — eis o que pensa — “se me cuspisse, talvez eu me exaltasse”. Mas seu ódio era descontínuo, não conse­guia, fixá-lo. E não entendia a coragem da filha, a sua calma intensa, a sua apaixonada serenidade. Depois que vira o ser amado mutilar-se — perdera todo o mêdo e todo o espanto. Dir-se-ia que êle também a ferira na carne, para sempre. Agora, diante do pai, sentia apenas o pesado vazio do êxtase perdido. Gos­taria de dizer ao velho: — O que estava lá, no hospital, era outra coisa, outro ser e não o verdadeiro Sílvio. Ela pensava, por outras palavras: — “O verdadeiro Sílvio está comigo, em mim”. Repetia: — “Silvio em mim, tão profunda e dolorosamente no meu útero”.
Dr. Arnaldo baixa a cabeça:
— Vai.
Deixa a filha afastar-se alguns passos. Súbito, grita:
— Escuta!
Engraçadinha estaca. Êle põe-se a berrar, numa euforia total:
— Aqui só há um morto. Eu! Só eu morri! Só eu estou morto!
Engraçadinha estava tão voltada para si mesma, que mal olhava e mal ouvia êsse magro frenético e exultante.
Dr. Arnaldo parecia agredir o mundo com a pró­pria morte:
— Morri, Engraçadinha, morri!
Lá fora, junto à porta, escutando tudo, amontoa­vam-se as velhinhas. Tia Ceci deduz: — “Arnaldo mor­reu”. Engraçadinha abre a porta e sai. De vez em quando, julga ver o risco luminoso da navalha.

* * *

A partir de então, sempre que cruza com o tio Ar­naldo no corredor, tia Ceci confirma, para si mesma: — “Morreu, Arnaldo morreu”. O velho não saía do hos­pital. Não admitia a visita de ninguém, e, muito menos, de parentes. Considerava os parentes (textual) — “uma corja”. Só vinha em casa, de passagem, para tomar banho, mudar de roupa interior. Dava um pulo diário na Assembléia, um pulo rápido, mas, coisa curiosa: —-sentia, lá, um desses tédios irremediáveis. Até o Sarai­va, que a sua grande e subserviente admiração, até o Saraiva já o imitava. Passara a achá-lo, textualmente, “outra bêsta”. No quinto dia, aparecera, no hospital, um repórter, farejando aquela desgraça de família. Dr. Arnaldo precipitou-se; arrastou-o para um canto:
— Não houve nada, rapaz! Toma, toma, pra uma cervejinha!
Enfiou-lhe na mão uma nota de cinco mil réis. E, assim, põe o jornalista de lá para fora. Por um mo­mento, êle experimenta a sua vaidade de capixaba. E, com efeito, graças a Deus ainda se podia, no Espírito Santo, silenciar um jornal com tão pouco. No Rio, ja­mais. A imprensa carioca era uma vergonha. Andando pelo corredor, de uma extremidade a outra, e cumpri­mentando ora um médico, ora uma enfermeira, ora um convalescente — pensou na recente polêmica entre o Macedo Soares e o Geraldo Rocha. Só matando a pau­ladas, no meio da rua. E o Dr. Arnaldo pensava: — “Ah, o Hitler aqui! O Hitler punha o Geraldo e o J. E. numa parede, e mandava fuzilar!” Talvez o fuzilamen­to fôsse uma solução benigna demais, indolor demais. O Hitler também podia fazer o seguinte: — amarrar o Macedo Soares e o Geraldo num pé de pesa. Os dois teriam que beber, de gatinhas, numa cuia de queijo Palmira e de comer numa lata de goiabada. “Uns to­madores de dinheiro!”, concluía para si mesmo. E se tal polêmica fora possível, já não se podia falar em “família brasileira!” Uma família que lê semelhante imprensa nunca foi família nem aqui, nem na China!”
Súbito, uma enfermeira aparece: — “Seu filho está chamando”. O velho retifica:
— Sobrinho. Não é filho: — sobrinho.
Êle veio, em passos rápidos, do fundo do corredor. Pensava agora no Benedito Valadares. O olhar do Benedito, e não só o olhar: — o ventre (o Benedito tinha uma certa barriga), mas sobretudo o olhar era de um Nero de fita de cinema. Detestava o Benedito. E, nova­mente, imaginou-o, também de gatinhas, sòlidamente amarrado num pé de mesa — bebendo água numa cuia de queijo Palmira.
Entrou no quarto do filho. Aquela penumbra en­louquecia o doente e as visitas. Na sua fúria, pensa: “Será que os cretinos dêsses médicos não percebem que essa penumbra é criminosa?” O médico já vai saindo:
— Está bem melhor — e repete, na sua cordiali­dade melíflua e mercenária — bem melhor. Tomou um caldinho. Com licença.
Aproxima-se do leito. Experimenta agora uma pena brutal. É um sentimento nôvo na sua vida. Inclina-se sobre aquela carne para sempre ferida. E, ao mesmo tempo, ocorre-lhe uma imagem exasperante e absurda: — o Benedito Valadares lavando-se numa banheira de leite de cabra, como um flácido Nero de fita de cinema. Dr. Arnaldo ajoelha-se; solução (encostara a bengala na cama):
— Meu filho, quero o teu perdão para morrer. Vo­cê me perdoa?
O mutilado responde, com um olhar atônito de monstro marinho:
— Não.

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