sábado, 10 de outubro de 2009

CAPÍTULO XXXVIII

Repetia, na Obsessão da fuga: — “Vamos, Zózimo, vamos!” O rapaz travou-lhe o braço:
— Para onde? Fala!
Ela trincou os dentes com tanta violência que Zó­zimo a segurou pelos dois braços e a sacudiu:
— Engraçadinha, escuta! Olha, Engraçadinha!
Tornou-se hirta nos seus braços. Por um momen­to, êle apertou a noiva de encontro ao peito e pensou mesmo em beijá-la na fronte. Engraçadinha, porém, desprendeu-Se bruscamente, recuando. Cruza os braços, num arrepio muito intenso. Êle, que sentira o corpo da menina unido ao seu, vibrando e vivendo junto ao seu por um instante, êle respirou fundo. Desejá-la naquele momento, quando havia um morto na sala... Ao abraçá-la, esmagara com o peito os seios da pequena. (E. no entanto, a poucos passos dali, um mor­to era velado). O brusco desejo, quase à sombra dos círios, deu-lhe um deslumbramento mesclado de ver­gonha e asco.
Baixa a voz:
— Querida, eu não sabia que você...
Pára, desorientado. Queria dizer que jamais ima­ginara que ela tivesse tanto amor pelo pai. Acrescentou para si mesmo: “Aliás, é muito bonito quando uma filha adora o pai. É lindo!” Engraçadinha pensa, transida de febre: — “Se êle soubesse que choro outro morto e não êste!” Queria ainda fugir para tão longe!
Ergue o rosto:
— Zózimo, eu te chamei aqui porque... Quero casar por êsses dias. Está ouvindo, Zózimo?
E êle:
— Continua.
— A gente se casa e, olha: — não fico aqui nem mais um minuto — repetiu, rosto a rosto: — Nem mais um minuto. Não se esqueça! Se fôr preciso, me caso com a roupa do corpo e a gente embarca no mesmo dia.
O rapaz não entende essa fuga pânica: — “No mesmo dia? Você não acha que...” Interrompeu, vio­lentamente :
— No mesmo dia, Zózimo! Eu disse no mesmo dia! Saímos da igreja para a estação. E nem da igreja, Zó­zimo: — não quero casamento religioso. Do civil, nós saímos para a estação. Mas se você não quiser, ainda está em tempo.
Diante dêle, sonhou em voz alta: — “Nós vamos para o Rio. E, outra coisa: — eu posso morrer de fome no Rio” — começou a chorar — “mas não fico aqui!” Êle apanha as mãos da pequena; foi de humor doce e triste: “Morre-se de fome, pronto. Não se discute” Engraçadinha não terminara. Diz, sem desfitá-lo:
— Você sabe que estou grávida?
O velho negara a gravidez, e jurara: — “É virgem! A virgindade de munia filha prova a existência de Deus!”. Zózimo responde: — “Sei”. Engraçadinha co­meça a tremer:
— Grávida de outro, Zózimo! Por enquanto, você aceita. E se, depois, você odiar o meu filho? E, se odiar a mãe e o filho? Zózimo, escuta: — sabe por que meu pai morreu? Porque eu disse: — “Não tiro o meu filho!” Matou-se por isso. Zózimo, você me ama?
Apanha as mãos da noiva, beija uma e outra:
— Você duvida?
Ergueu a voz:
— Fala, me ama de verdade? Ama, Zózimo?
Quis agarrá-la:
— Escuta, Engraçadinha! Olha pra mim! Eu tenho veneração — escuta, Engraçadinha!
Desprende-se violentamente:
— Mentira! Você não gosta de mim! Ninguém gos­ta de ninguém!
O outro, desesperado, repete: — “Escuta, meu amor!” E ela, chorando:
— Responde: — o que é que você faria par mim, além de aceitar minha gravidez?
— Tudo!
Olhou-o com sôfrega curiosidade, como se o visse pela primeira vez (ao mesmo tempo, passa a mão pelo nariz). Êsse “tudo” que êle oferecia pareceu-lhe vago. Lembra-se de Letícia e pergunta:
— Olha! Eu tenho uma pessoa — uma pessoa, ou­viu? — que gosta de mim. O nome não interessa. Essa pessoa me disse que era capaz, até, — escuta essa, Zó­zimo — até de arranjar amantes para mim. Amantes!
Atônito, repetiu: — “Amantes?” Houve uma pau­sa. Engraçadinha sente que, como qualquer homem, Zózimo põe, no próprio amor, o limite de sua dignida­de pessoal. E, no entanto (eis o que ela pensa por ou­tras palavras), amar é justamente fazer indignidades. Parecia tomada de insânia: — “Não disse? Você não me ama!” Sem desfitá-lo, acrescentou, lentamente: — “Se me amasse, você arranjaria amantes para mim!” Desatinado, Zózimo ia responder, quando abrem a por­ta. Os dois se voltam, ao mesmo tempo: — era tia Zezé.
Entrou com uma bandeja:
— Trouxe pra ti, Engraçadinha!
Fazia tempo que a procurava por tôda a parte. Engraçadinha bateu com o pé:
— Ih! Não quero!
E a outra:
— Um biscoitinho só, minha filha!
Virou-lhe as costas:
— Ah, não aborrece a senhora também! Que amolação!
Zózimo interpõe-se:
— Um momento, tia Zezé!
A velha não gostou:
— Menina, olha êsses modos!
Já o rapaz a levava:
— Não liga! Está nervosa!
Tia Zezé sai, com o biscoitinho rejeitado. Zózimo volta. Engraçadinha o espera, em pé, os braços cruza­dos, com um sorriso muito leve, mas de uma intensa malignidade. Êle começa:
— Gosto tanto de ti que...
Mentira!
Com um certo asco da própria maldade, ela per­gunta a si mesma: — “Será que eu quero mesmo que êle me arranje amantes? E êle teria essa coragem?” A própria Engraçadinha não entendia aquela cruelda­de frívola e inútil que a levava a torturá-lo. Em vez de estar, ali, humilhando o noivo — a troco de nada — devia estar na sala, fazendo quarto a um morto, em­bora chorando outro. Mas reconhecia que era tão bom, tão gostoso destruir um homem! Se quisesse — eis o que ela pensava — se quisesse, Zózimo ficaria de gatinhas, ali, para que ela o montasse. E assim, levando-a na garupa, os dois invadiriam o velório.
Saturada de si mesma, suspira:
— Vamos, Zózimo.
E êle:
— Te amo.
Parou um momento. Pergunta, baixo (com uma maldade quase doce) :
— Você arranjaria, Zózimo, os amantes?
Quase chorando, responde:
— Eu disse que faria tudo!
Êle pensa: — “Está doente. Fora de si”. Amou-a mais por isso, — porque a sentia enferma da carne e da alma.
Olha-o ainda:
— Já vi que você não gosta de mim. É um con­versa fiada muito grande. Vamos.
Passou adiante. O rapaz a seguiu, dilacerado.

* * *

Estão, de nôvo na sala. Uma senhora levanta-se:
— Senta aqui.
Oferecia-lhe uma cadeira. Engraçadinha senta-se. Ergue o rosto para olhar o sono dos círios. De momen­to a momento, chegavam novas coroas. Uma delas, de orquídeas, provocou um murmúrio. Uma senhora cutu­ca outra: — “Espia só! Era digna, realmente, de um Chefe de Estado”. Houve, ali, um cochicho universal: — “De quem? De quem?” Tio Nonô, imenso, põe-se de cócoras, com suas pernas curtas de gordo. Impressio­nado com os outros, desenrolou a fita roxa, com le­tras douradas: — era do Governador.
Tio Nonô ergue-se. Um sujeito magro soprou-lhe:
— Deve ter custado os tubos!
Naquele momento, o Deputado Aprígio aparece na porta da varanda. Perdera Engraçadinha de vista e, no seu desejo fácil e irresponsável, achava que, sem ela, o velório estava incompleto, falhando. Há uns vin­te minutos que perguntava ao taquígrafo Xavier: — “Onde diabo se meteu essa cara?” E arriscou mesmo uma “blague” vil, segundo a qual estaria ali, fazendo quarto, não ao morto, mas à filha. Cochichou sòrdidamente para o taquígrafo, com o riso contido: — “O meu defunto é a menina!” Descobre Engraçadinha, fi­nalmente. Volta, para a varanda, trêmulo; puxa o ta­quígrafo: — “Se eu pegasse essa menina...” O taquí­grafo sorvia-lhe as palavras como um sorvete...
Na sala, Zózimo vinha — pedindo licença — tra­zer uma xícara de café para a noiva. Inclinava-se para a menina:
— Toma.
— Biscoito, não.
— Por quê?
Suspirou:
— Só o cafèzinho.
— Então, toma.
Êle próprio queria servi-la, de colherzinha em colherzinha, como a uma doente ou a uma criança. En­graçadinha, porém, rejeitou o carinho. Apanhou a xí­cara, O bobão ainda soprou: — “Cuidado para não derramar!” A noiva dardejou-lhe um olhar irritado. Tomando o café, aos pequenos goles, sente que já não é a mesma. “Sou outra”, repetia para si mesma, com uma dor surda. Algo morrera em si. Zózimo, com sua odiosa solicitude, insistia:
— Está bom de açúcar?
Nem lhe respondeu (chato!). Mexendo a xícara (gostava, realmente, de muito açúcar; mas não pediria a êle), ela pensa que, antigamente, até dormindo os seus sonhos vinham pesados de voluptuosidade. Fora possuída em sonho tantas vezes! Lembrava-se de uma vez — há muito tempo — quando tinha uns 12 anos, talvez. Vira um cavalo de corrida e, por um momento, ante a beleza elástica e vibrante do animal, o fogo das ventas, a flama das crinas e, sobretudo, a violência dos quadris — sentiria um breve deslumbramento. “Nada é tão nu como um cavalo”. Ainda agora perguntava a si mesma se as outras mulheres não se perturbam com certos cavalos espantosamente nus.
Zózimo a ofendia, outra vez, com a sua miserável solicitude:
— Coração, dá, que eu levo.
Pedia-lhe a xícara. Engraçadinha pensava que, an­tes, não podia encostar-se na quina de um móvel, sem crispar-se tôda. Às vezes, o simples olhar de um ho­mem como que a transfigurava. Seu corpo tornava-se, então, erecto e vibrante. E, agora, tinha a sensação de que subitamente perdera o dom de amar. Desde que vira Sílvio mutilar-se — tornara-se um pobre ser sem imaginação, nem voluptuosidade. Seu sonho agora era triste. Lera, há dias, num anúncio de jornal, o nome de um remédio contra “frieza”. Ah, o mêdo de ser fria, o mêdo de ser possuída e ter ódio do amor!

* * *

E, no entanto, horas depois, no cemitério, quando o quinto orador, que seria o último, afirma que o Dr. Arnaldo “jamais tivera amantes” — ela vibra, brusca­mente, as costas para a sepultura recém-aberta do pai. Zózimo curva-se, vivamente:
— Não chora, meu amor!
Ela tombava para o túmulo vizinho; projetava seu corpo contra a quina de pedra. Protegendo-a, Zózimo passava-lhe a mão pelos cabelos. Ficou assim alguns instantes, com um movimento quase imperceptível, súbito, quando mais delirante era a apologia fúnebre do orador, Engraçadinha começa a soluçar violentamente. O orador chegou a parar, desconcertado. Trin­cando os dentes, hirta de volúpia, ela parecia agonizar e morrer nos braços de Zózimo. Seu grito final vibrou, perdidamente, em todo o cemitério.

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