quinta-feira, 8 de outubro de 2009

CAPÍTULO XXXVI

Ficou ainda algum tempo de joelhos, junto à cama do filho. Sabia, porém, com uma certeza desesperadora, que Sílvio jamais o perdoaria. Ergueu-se, com esforço:
— Deus te abençoe, meu filho.
E, ao mesmo tempo, pensava em Benedito Vala­dares. Perguntava a si mesmo: — “Parece incrível que eu, neste momento, exatamente neste momento, diante do meu filho...” Sim, diante do filho, diante de uma cicatriz hedionda, que ainda sangrava — era incrível que êle pensasse em Benedito Valadares. Via o político mineiro, com um certo ar, um certo jeito de Nero de Cecil B. de Mille e, sobretudo, com êsse mínimo de barriga que o corrupto exige. Depois de curvar-se e apanhar a bengala, respira fundo:
— Vou-me embora, meu filho.
“Se êle, ao menos, não me olhasse”, era o que di­zia a si mesmo. Renunciara ao perdão, para sempre. Abandonando o quarto, deixando aquela penumbra meio lunar de fundo marinho — pensava: — “O ser humano é tão débil mental que pode pensar na mutila­ção de um filho e, ao mesmo tempo, no Benedito Vala­dares”. Cumprimentando uma enfermeira, com uma leve inclinação de cabeça, êle fêz de si mesmo um exemplo: — “Eu. Vejamos eu. Estou aqui sofrendo pelo meu filho”. E, simultaneamente, não lhe saía da cabeça a figura do Benedito Valadares. Era, já, uma fixação humilhante. Benedito Valadares sempre o impressio­nara por um detalhe pueril: — a barriga de magro. Era, sim, um magro barrigudo. E o Dr. Arnaldo desce as escadas do hospital, num amargo descontentamento de si mesmo: — “Eu só devia pensar no meu filho” Entretanto, não se libertava do político mineiro, que continuava, dentro dêle, ralando-o. Furioso, com a barriga de magro, o Governador de Minas teria mandado fazer uma piscina suntuária no próprio Palácio da Liberdade. E a imagem que perseguia agora o Dr. Arnaldo, e não lhe dava sossego, era a do Benedito na tal piscina — montado num tubarão de borracha.
Quando ia saindo, apareceu o diretor do hospital, o Dr. Barcelos. O médico abriu-lhe os braços, na sua efusão de mercenário. (“Ah, ladrão!” foi a praga in­terior do deputado), Dr. Barcelos perguntava:
— Já vai?
E êle:
— Volto já.
Ao mesmo tempo que apertava a mão do médico (uma nulidade voraz!), pensava: — “Dizem que o Be­nedito assina despachos na banheira!” Talvez fôsse exagero, caricatura folclórica, talvez. A ser verdade, porém, vamos e venhamos: — era mesmo um Nero de Cecil B. de Mile. “O Brasil precisa de um Hitler”. O médico baixa a voz:
— E seu filho?
Corrigiu, furioso:
— Sobrinho.
Pareceu surpreso, quase consternado:
— Não é filho?
Repetiu, agressivo:
— Sobrinho!
E o outro, atrapalhado, com uma aguda suspeita de “gaffe”:
— Ora veja!
Secamente, e ressentido com os preços do hospital, faz um aceno: — “Até já”. Toma um táxi e, no mo­mento de dar o endereço, confunde-se. Pergunta a si mesmo: “Vou para onde?” Para casa? Eis a verdade: — não tinha nada a fazer em casa, absolutamente. Ao mesmo tempo, o filho — ainda sangrando da mutilação — o escorraça, o enxotara do hospital. “Não serei jamais perdoado!” E repetiu, com uma certa doçura: — “Jamais!” Jamais ou nunca mais. Diz: —”Êle me odeia!” Logo, porém, retifica: — “Êle não pode odiar” Parecia-lhe que o rapaz teria a mesma impotência para o amar e para o ódio. Passou alguns minutos pensan­do só no filho e na hemorragia inestancável — esque­cido do Benedito Valadares.
Foi ao descer em casa, e ao pagar o “chauffeur”, que êle se enfureceu, novamente. Recebendo o troco, vociferava, interiormente: — “Se é verdade essa his­tória, se êle, realmente, tomava banho e, ao mesmo tempo recebia o Secretariado; se, ensaboado, despa­chava...” Fremente de imaginação, Dr. Arnaldo come­çava a subir os degraus: — “Onde é que nós estamos?” Pára no meio da escada. Apoiado no corrimão, pensa ainda no seu cruel sarcasmo: — “Um governador que despacha nu é puro Molière!” (Jamais lera Molière). A não ser que, para bem do Brasil, tudo fôsse simples e irresponsável folclore. Em todo caso, era estranha e suspeita aquela figura de magro barrigudo.
Zózimo aparece na porta. Abre um riso largo e bom. Então, transtornado de alegria — uma súbita e dilacerada alegria — Dr. Arnaldo sobe precipitada­mente:
— Oh, Zózimo!
E o rapaz, sem entender a veemência do velho, deixando-se envolver e abraçar:
— Dr. Arnaldo!
O deputado continua (numa satisfação que o en­vergonha e que êle próprio acha estúpida) :
— Vamos conversar, ó Zózimo!
Arrasta-o para um banco, colocado numa extremi­dade da varanda. O Dr. Arnaldo exulta porque, afinal, parece que se libertou daquela fixação idiota, mil vezes idiota, do Benedito Valadares. Começa comovido:
— Escuta, Zózimo, eu estou pra te perguntar uma coisa...
O diabo era a vontade de chorar. Pigarreia:
— Você, Zózimo, tem, não tem, ou estou enganado? Uma certa vergonha, digamos assim — você entende? — vergonha de ser bom?
Balbucia:
— Como?
Realmente, não entendia nada. Na sua confusão, chegou a desconfiar que talvez o velho tivesse bebido, pela primeira vez na vida. Ao mesmo tempo, repeliu a hipótese. Não queria admitir absolutamente um Dr. Arnaldo bêbedo. O velho respirou fundo e tenta ser claro:
— Agora mesmo, Zózimo, neste instante: — você está vermelho! Eu só acredito nas pessoas que ainda se ruborizam! Zózimo, creia: — ninguém se ruboriza mais no Brasil! Por isso é que eu acho, não sei se estou enganado: — mas acho que você tem vergonha de ser bom!
Zózimo não sabia onde se meter. Dr. Arnaldo er­guia-se:
— Zózimo, o que eu queria dizer. Não tenha vergo­nha de ser bom, Zózimo, mas o que eu queria dizer é o seguinte: — eu quero que você se case, imediatamente, com Engraçadinha. Entende?
Eis o que pensa Dr. Arnaldo: — “Se êle soubesse que Silvio deixou de amar, de odiar”. Ergue a voz:
— Engraçadinha é sua! Fique com Engraçadinha!
Zózimo parecia espantado: — “Minha?” Dr. Ar­naldo afasta-se. Entra na sala; vê Engraçadinha:
— Chega aqui, minha filha.
De braço com a filha, caminha, lentamente, até a extremidade do corredor:
— Vamos imaginar o seguinte: — se eu estivesse morrendo. E se eu te chamasse e te fizesse um último pedido? Você atenderia?
— Depende.
O velho estaca. Começa a sofrer:
— Minha filha! Não se recusa o pedido de quem está morrendo!
Êle, desesperado, já começava a imaginar que a filha também fora ferida, para sempre; que talvez ti­vesse perdido o útero e os ovários da alma. Pergunta, sem amor, nem ódio:
-— Mas que pedido?
Dr. Arnaldo deixa passar um momento. Aperta o braço da pequena:
— Tira êsse filho. Não deve nascer. Não pode nas­cer. Sim?
— Não?
Crispa a mão no braço da moça:
— E se eu te disser que é um último pedido? O último, Engraçadinha? Você compreende o que é “o último?” Responde: sabe o que é pedir pela última vez e nunca mais? Nunca mais pedir? Fazes isso por mim?
— Não.
Por um momento, só por um momento, teve vonta­de de bater-lhe na bôca com as costas da mão. Ao mes­mo tempo, sentiu que era inútil. Pensava novamente em Benedito Valadares: — o magro barrigudo! Deixa a fi­lha e, sem uma palavra, entra na Biblioteca e tranca-se lá. Caminha até a secretária, abre a gaveta e embolsa o revólver. Anda de um lado para outro, sempre com a bengala (a besta obscena do Aprígio espalhara a ane­dota segundo a qual êle era amancebado com a ben­gala). Há dois dias que, vivendo a agonia do filho, não pensava na “cunhada impossível”. Só a possuíra uma vez, uma única vez. Um magro ou, pelo menos, certos magros não devem se despir para o amor. Sentando-se no divã, êle pensa em si mesmo e nas suas canelas espectrais. E, então, começa a se despir. Pela primeira vez — após tantos anos — teve ódio daquelas ceroulas de amarrar nas canelas, com duas voltas. An­dou um momento, pela biblioteca, de botinas, bengala, com a sua nudez esguia e lívida. Essa auto-flagelação de magro deu-lhe uma satisfação feroz. Em seguida começou a vestir-se, novamente. Amarrando as cerou­las, imaginou, ainda uma vez, o Benedito Valadares cavalgando um tubarão de borracha; e, depois, via o mesmo Benedito Valadares, no banho, despachando, com um secretariado subserviente e alvar.
Finalmente vestido, Dr. Arnaldo tira o revolver. Olha a arma com um corto amor triste. Naquele momento, queria só pensar na mutilação do filho. Se pudesse excluir tudo o mais, afastar de si o magro barri­gudo de Minas ou, ainda, o Macedo Soares, de gatinhas, bebendo água na cuia de queijo Palmira — se pudesse pensar e só pensar na cicatriz que ainda sangrava. Lembrou-se do ventre da cunhada, o ventre que não podia ter beijado. Rezar, talvez. Não, não quero rezar. Apanha o revólver, introduz lentamente o cano na bôca. Mas aquilo pareceu-lhe de tal forma uma pene­tração obscena que preferiu, então, o tiro na cabeça. Encosta o cano na fronte. “Agora, só vou pensar em Sílvio”. Mas houve uma espantosa superposição de imagens — de Sílvio, dos lençóis ensangüentados, do Benedito nu, assinando despachos. Puxou o gatilho.
Morreu sentado.

Nenhum comentário: