Ficou ainda algum tempo de joelhos, junto à cama do filho. Sabia, porém, com uma certeza desesperadora, que Sílvio jamais o perdoaria. Ergueu-se, com esforço:
— Deus te abençoe, meu filho.
E, ao mesmo tempo, pensava em Benedito Valadares. Perguntava a si mesmo: — “Parece incrível que eu, neste momento, exatamente neste momento, diante do meu filho...” Sim, diante do filho, diante de uma cicatriz hedionda, que ainda sangrava — era incrível que êle pensasse em Benedito Valadares. Via o político mineiro, com um certo ar, um certo jeito de Nero de Cecil B. de Mille e, sobretudo, com êsse mínimo de barriga que o corrupto exige. Depois de curvar-se e apanhar a bengala, respira fundo:
— Vou-me embora, meu filho.
“Se êle, ao menos, não me olhasse”, era o que dizia a si mesmo. Renunciara ao perdão, para sempre. Abandonando o quarto, deixando aquela penumbra meio lunar de fundo marinho — pensava: — “O ser humano é tão débil mental que pode pensar na mutilação de um filho e, ao mesmo tempo, no Benedito Valadares”. Cumprimentando uma enfermeira, com uma leve inclinação de cabeça, êle fêz de si mesmo um exemplo: — “Eu. Vejamos eu. Estou aqui sofrendo pelo meu filho”. E, simultaneamente, não lhe saía da cabeça a figura do Benedito Valadares. Era, já, uma fixação humilhante. Benedito Valadares sempre o impressionara por um detalhe pueril: — a barriga de magro. Era, sim, um magro barrigudo. E o Dr. Arnaldo desce as escadas do hospital, num amargo descontentamento de si mesmo: — “Eu só devia pensar no meu filho” Entretanto, não se libertava do político mineiro, que continuava, dentro dêle, ralando-o. Furioso, com a barriga de magro, o Governador de Minas teria mandado fazer uma piscina suntuária no próprio Palácio da Liberdade. E a imagem que perseguia agora o Dr. Arnaldo, e não lhe dava sossego, era a do Benedito na tal piscina — montado num tubarão de borracha.
Quando ia saindo, apareceu o diretor do hospital, o Dr. Barcelos. O médico abriu-lhe os braços, na sua efusão de mercenário. (“Ah, ladrão!” foi a praga interior do deputado), Dr. Barcelos perguntava:
— Já vai?
E êle:
— Volto já.
Ao mesmo tempo que apertava a mão do médico (uma nulidade voraz!), pensava: — “Dizem que o Benedito assina despachos na banheira!” Talvez fôsse exagero, caricatura folclórica, talvez. A ser verdade, porém, vamos e venhamos: — era mesmo um Nero de Cecil B. de Mile. “O Brasil precisa de um Hitler”. O médico baixa a voz:
— E seu filho?
Corrigiu, furioso:
— Sobrinho.
Pareceu surpreso, quase consternado:
— Não é filho?
Repetiu, agressivo:
— Sobrinho!
E o outro, atrapalhado, com uma aguda suspeita de “gaffe”:
— Ora veja!
Secamente, e ressentido com os preços do hospital, faz um aceno: — “Até já”. Toma um táxi e, no momento de dar o endereço, confunde-se. Pergunta a si mesmo: “Vou para onde?” Para casa? Eis a verdade: — não tinha nada a fazer em casa, absolutamente. Ao mesmo tempo, o filho — ainda sangrando da mutilação — o escorraça, o enxotara do hospital. “Não serei jamais perdoado!” E repetiu, com uma certa doçura: — “Jamais!” Jamais ou nunca mais. Diz: —”Êle me odeia!” Logo, porém, retifica: — “Êle não pode odiar” Parecia-lhe que o rapaz teria a mesma impotência para o amar e para o ódio. Passou alguns minutos pensando só no filho e na hemorragia inestancável — esquecido do Benedito Valadares.
Foi ao descer em casa, e ao pagar o “chauffeur”, que êle se enfureceu, novamente. Recebendo o troco, vociferava, interiormente: — “Se é verdade essa história, se êle, realmente, tomava banho e, ao mesmo tempo recebia o Secretariado; se, ensaboado, despachava...” Fremente de imaginação, Dr. Arnaldo começava a subir os degraus: — “Onde é que nós estamos?” Pára no meio da escada. Apoiado no corrimão, pensa ainda no seu cruel sarcasmo: — “Um governador que despacha nu é puro Molière!” (Jamais lera Molière). A não ser que, para bem do Brasil, tudo fôsse simples e irresponsável folclore. Em todo caso, era estranha e suspeita aquela figura de magro barrigudo.
Zózimo aparece na porta. Abre um riso largo e bom. Então, transtornado de alegria — uma súbita e dilacerada alegria — Dr. Arnaldo sobe precipitadamente:
— Oh, Zózimo!
E o rapaz, sem entender a veemência do velho, deixando-se envolver e abraçar:
— Dr. Arnaldo!
O deputado continua (numa satisfação que o envergonha e que êle próprio acha estúpida) :
— Vamos conversar, ó Zózimo!
Arrasta-o para um banco, colocado numa extremidade da varanda. O Dr. Arnaldo exulta porque, afinal, parece que se libertou daquela fixação idiota, mil vezes idiota, do Benedito Valadares. Começa comovido:
— Escuta, Zózimo, eu estou pra te perguntar uma coisa...
O diabo era a vontade de chorar. Pigarreia:
— Você, Zózimo, tem, não tem, ou estou enganado? Uma certa vergonha, digamos assim — você entende? — vergonha de ser bom?
Balbucia:
— Como?
Realmente, não entendia nada. Na sua confusão, chegou a desconfiar que talvez o velho tivesse bebido, pela primeira vez na vida. Ao mesmo tempo, repeliu a hipótese. Não queria admitir absolutamente um Dr. Arnaldo bêbedo. O velho respirou fundo e tenta ser claro:
— Agora mesmo, Zózimo, neste instante: — você está vermelho! Eu só acredito nas pessoas que ainda se ruborizam! Zózimo, creia: — ninguém se ruboriza mais no Brasil! Por isso é que eu acho, não sei se estou enganado: — mas acho que você tem vergonha de ser bom!
Zózimo não sabia onde se meter. Dr. Arnaldo erguia-se:
— Zózimo, o que eu queria dizer. Não tenha vergonha de ser bom, Zózimo, mas o que eu queria dizer é o seguinte: — eu quero que você se case, imediatamente, com Engraçadinha. Entende?
Eis o que pensa Dr. Arnaldo: — “Se êle soubesse que Silvio deixou de amar, de odiar”. Ergue a voz:
— Engraçadinha é sua! Fique com Engraçadinha!
Zózimo parecia espantado: — “Minha?” Dr. Arnaldo afasta-se. Entra na sala; vê Engraçadinha:
— Chega aqui, minha filha.
De braço com a filha, caminha, lentamente, até a extremidade do corredor:
— Vamos imaginar o seguinte: — se eu estivesse morrendo. E se eu te chamasse e te fizesse um último pedido? Você atenderia?
— Depende.
O velho estaca. Começa a sofrer:
— Minha filha! Não se recusa o pedido de quem está morrendo!
Êle, desesperado, já começava a imaginar que a filha também fora ferida, para sempre; que talvez tivesse perdido o útero e os ovários da alma. Pergunta, sem amor, nem ódio:
-— Mas que pedido?
Dr. Arnaldo deixa passar um momento. Aperta o braço da pequena:
— Tira êsse filho. Não deve nascer. Não pode nascer. Sim?
— Não?
Crispa a mão no braço da moça:
— E se eu te disser que é um último pedido? O último, Engraçadinha? Você compreende o que é “o último?” Responde: sabe o que é pedir pela última vez e nunca mais? Nunca mais pedir? Fazes isso por mim?
— Não.
Por um momento, só por um momento, teve vontade de bater-lhe na bôca com as costas da mão. Ao mesmo tempo, sentiu que era inútil. Pensava novamente em Benedito Valadares: — o magro barrigudo! Deixa a filha e, sem uma palavra, entra na Biblioteca e tranca-se lá. Caminha até a secretária, abre a gaveta e embolsa o revólver. Anda de um lado para outro, sempre com a bengala (a besta obscena do Aprígio espalhara a anedota segundo a qual êle era amancebado com a bengala). Há dois dias que, vivendo a agonia do filho, não pensava na “cunhada impossível”. Só a possuíra uma vez, uma única vez. Um magro ou, pelo menos, certos magros não devem se despir para o amor. Sentando-se no divã, êle pensa em si mesmo e nas suas canelas espectrais. E, então, começa a se despir. Pela primeira vez — após tantos anos — teve ódio daquelas ceroulas de amarrar nas canelas, com duas voltas. Andou um momento, pela biblioteca, de botinas, bengala, com a sua nudez esguia e lívida. Essa auto-flagelação de magro deu-lhe uma satisfação feroz. Em seguida começou a vestir-se, novamente. Amarrando as ceroulas, imaginou, ainda uma vez, o Benedito Valadares cavalgando um tubarão de borracha; e, depois, via o mesmo Benedito Valadares, no banho, despachando, com um secretariado subserviente e alvar.
Finalmente vestido, Dr. Arnaldo tira o revolver. Olha a arma com um corto amor triste. Naquele momento, queria só pensar na mutilação do filho. Se pudesse excluir tudo o mais, afastar de si o magro barrigudo de Minas ou, ainda, o Macedo Soares, de gatinhas, bebendo água na cuia de queijo Palmira — se pudesse pensar e só pensar na cicatriz que ainda sangrava. Lembrou-se do ventre da cunhada, o ventre que não podia ter beijado. Rezar, talvez. Não, não quero rezar. Apanha o revólver, introduz lentamente o cano na bôca. Mas aquilo pareceu-lhe de tal forma uma penetração obscena que preferiu, então, o tiro na cabeça. Encosta o cano na fronte. “Agora, só vou pensar em Sílvio”. Mas houve uma espantosa superposição de imagens — de Sílvio, dos lençóis ensangüentados, do Benedito nu, assinando despachos. Puxou o gatilho.
Morreu sentado.
quinta-feira, 8 de outubro de 2009
CAPÍTULO XXXVI
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