sexta-feira, 9 de outubro de 2009

CAPÍTULO XXXVII

Quando o delegado saiu da biblioteca, tia Zezé atracou-se com a autoridade. Soluçava:
— Autópsia, não! Autópsia, não!
De um momento para outro, o homem foi envol­vido e quase varrido por uma onda de velhas. Cercado, agarrado por umas cinco ou seis, tropeçou numa delas e ia caindo; balbuciou:
— Calma! Que é isso? Calma!
Tia Zezé, que era a menos velha e, justamente, a mais frenética, berrava: — “A família não quer! A família não admite!” Em meio de todo aquêle alarido feminino, só a tia Ceci — pequenina e ressecada como a múmia de uma anã — só a tia Ceci passava, doce­mente, com jeito meio alado, por entre os gritos e os ataques. A morte não a espantava. Segundo lhe parecia, não era a primeira vez, nem seria a última, em que o Dr. Arnaldo morria. Há tempos, ela o vira berrar: — “Eu morri!” Lembrava-se de Aquidabã, onde tinham sido despedaçados tantos guardas-marinhas.
O delegado, que estava ali, acompanhado do co­missário e dois detetives, e que já olhara o cadáver — teve de usar uma certa energia:
— Escuta, minha senhora! Oh, minha senhora, um momento! — E repetia: — Um momento! Posso falar, minha senhora?
Quase o agredia: — “Autópsia, não!” Simplesmen­te, a autoridade, já indignada, queria dizer que não ia haver autópsia, absolutamente: — “O suicídio está ca­racterizado”, afirmou, fêz uma pausa e disse com um certo e premeditado preciosismo verbal: — “Liberei o corpo, minha senhora!” Ela, porém, fora de si, numa fixação delirante, abraçava-se à autoridade: — “Tudo, menos autópsia!” Sempre tivera horror de médico le­gisla. Fora vizinha de um dêles. O homem parecia-lhe um fauno lúgubre de necrotério. Vira-o, uma vez, ao re­gressar de uma miserável exumação. Pois o homem es­tava transfigurado, uma cintilação nos olhos e tôda uma euforia de necrófilo inconfesso. Não, não admitia que... O delegado desvencilhou-se, finalmente, e ia repetindo:
— Liberei o corpo! Com licença! E passando o lenço no suor da testa e da nuca, insistiu: — Liberei o corpo!
Imediatamente, a residência encheu-se. Ninguém entendia o suicídio: — “Como? E por quê?” Até o Aprígio apareceu por lá, num desses assombros totais. Perguntava a um e outro: — “Não foi crime?” Levara anos a fazer uma troça diária e feroz do extinto; dizia, abertamente, com o riso imenso que o fazia sacolejar-se como uma estátua de préstito carnavalesco: “Um quadrúpede de 25 patas!” Essa síntese triunfal chegava a arrepiar. E eis que, de repente, recebe a notícia de que o homem, contra tôdas as previsões — metera uma bala na cabeça. O Aprígio respeitava os suicidas, ou, por outra — só respeitava os suicidas. No seu exagêro debo­chado, estava inclinado a crer que a morte natural é uma indignidade. Afirmava ainda, a encharcar-se de chope: — “Deus prefere os suicidas”. Pois bem: — o Aprígio fôra um dos primeiros a correr para a residên­cia do colega. Ia com o Xavier, que era taquígrafo na Câmara. O Aprígio desabafava, na sua impressão pro­funda :
— Agora acredito, sim, agora acredito que o Ar­naldo era casto. Casto, no duro, casto batata.
O Xavier não entende:
— Por quê?
E o Aprígio, fúnebre:
— Claro! O sujeito que não papa ninguém só tem uma solução: — a bala na cabeça!
Entram na casa do morto. E, súbito, o deputado vê, num canto, a filha do colega, a Engraçadinha. Por um momento, a morte passa para um plano secundário. Cutuca o taquígrafo: — “Espia!” Estava assombrado. Bandalho como êle só, costumava dizer na sua irresponsabilidade jocunda: — “Mulher, a partir de 11 anos!” Era um alegre, e, mesmo, um obsceno exagêro. Todavia, recebia, na Câmara, a visita de meninas de 15, 16. A filha do morto, com a sua graça adolescente, correspondia ao seu gôsto brutal. Xavier virou-se para Engraçadinha. Os dois foram, sòrdidamente, cumpri­mentá-la :
— Meus pêsames.
Engraçadinha assoa-se no lencinho:
— Obrigada.
O Aprígio era assim. De vez em quando, assal­tavam-no desejos medonhos.
O Xavier, vermelho, agoniado, concordava em que Engraçadinha era, realmente um biju. E, então, numa melancolia pesada e honesta, aquêle patife jocundo suspira: — “Vê tu. Quando eu me lembro que aquela menina vai se casar com uma bêsta e que eu, que nós...” A frustração doeu-lhe fìsicamente como uma nevralgia.

* * *

Ninguém escutara o tiro, ou, por outra: ouviu-se um barulho, um estampido. Mas a impressão, que se teve, foi de uma bombinha junina, inofensiva e irres­ponsável. Só depois é que, na hora do jantar, bate­ram na porta. Nenhuma resposta. Chamaram um bom­beiro hidráulico, que, por coincidência, estava, no mo­mento, desentupindo uma pia. O rapaz era forte. Meteu, primeiro, os ombros; em seguida, o pé. A porta abriu-se com estrondo. Eis o que viram: — o Dr. Ar­naldo, sentado, a cabeça tombada para a frente; en­costada na cadeira, a fidelíssima bengala. As velhi­nhas da casa, as criadas, encheram as salas, os quartos, a varanda, com seu alarido. Apenas a tia Ceci não cho­rava, nem sofria. Não era a primeira vez que Arnaldo morria.
Engraçadinha estava deitada. Ouviu o barulho e correu. Alguém vinha saindo da biblioteca:
— Morreu!
Exclamou para si mesma: — “Papai!” Sabia que era êle. Quando Dr. Arnaldo fizera o “último pedido”, o “último” (para nunca mais), ela já o viu como um cadáver. Olhava para o velho e tinha a sensação de que êle estava morto — tão morto como o Sílvio. Ninguém mais morto do que o Dr. Arnaldo ao pedir aquela “úl­tima vez”. Ao vê-lo afastar-se, ela sabia que o pai ia matar-se. E agora a família punha-se a ter ataques.
Alguém a sacudia:
— Chora, menina!
Balbuciou:
— Eu?
E a tia:
— Chora!
Depois que vira a lâmina viva na mão de Sílvio, depois que vira a navalha fazer um risco de luz — ela já não podia chorar. Era tão pouco o suicídio do pai diante da mutilação de Sílvio! Alguém que, no seu desespêro gelado, não identificou, alguém berrava-lhe:
— Chora, menina!
“Meu filho”, pensa — “meu filho vai nascer”. Po­dia chorar por Sílvio e não pelo pai. “Mas Sílvio está em mim, o verdadeiro Sílvio está em mim”. No leito do hospital, agonizavam os restos de Sílvio. “O verda­deiro Sílvio está comigo”. E, súbito, começa a chorar. Não era pelo pai, mas por Sílvio. Chorava aquela mu­tilação em flor!
Uma voz sussurrou-lhe:
— Vai ver teu pai!
Alguém opôs-se:
— Já, não!
E ela:
— Quero ver!
Tias que, de momento, não identificou, a levaram. Sussurravam: — “Cuidado! Cuidado!” Cuidado de quê e por quê? Diante do pai, com orifício de bala na fronte, ela não sabe o que fazer. Morto, estava me­nos pálido do que em vida. E, súbito, Engraçadinha caí de joelhos diante do morto (a bengala não o aban­donara). Soluça com tal violência que, em redor, houve um alívio. “Tem sentimento”, eis o que pensavam as velhinhas.
Ela, porém, não chorava pelo pai. Chorava por Síl­vio, pela mutilação. Se, naquele instante, pudesse adi­vinhar! Mas, no primeiro momento, ao vê-lo de nava­lha — pensou em si. Imaginou que o rapaz ia marcar-lhe o rosto ou, talvez decepar-lhe um seio. E se pen­sasse que ia ferir-se a si mesmo, ia ferir para sempre a própria carne!
Depois a câmara ardente. Numa parede da sala, um grande quadro: — a ceia, em relêvo prateado; e em outro uma natureza morta. Ela continuava choran­do. À meia-noite, quiseram levá-la:
— Vem descansar um pouco!
Reagia:
— Não!
E alguém:
— É tarde!
Ela, porém, não abandonou o velório. E ninguém podia imaginar que seu morto não era aquêle. Chora­va por um morto que ainda agonizava. Aquêle que estava ali, velado por altas autoridades, políticos, jor­nalistas e homens do povo — era o morto errado. Sú­bito, o Zózimo, que estava a seu lado, desde o primeiro instante, Zózimo pede:
— Meu anjo, você precisa dormir.
Vira-se, atônita, como se só agora o tivesse iden­tificado. Ergue-se:
— Vem cá, Zózimo.
Leva-o para uma saleta. Lá, agarra-se a êle:
— Oh, Zózimo! Vamos fugir, Zózimo!
Não entende:
— Fugir?
E ela, fora de si:
— Se você me ama, se você gosta de mim, oh, Zó­zimo — vamos fugir!
Zózimo não podia imaginar — e ela não diria nunca — que a noiva chorava por um morto que ainda agonizava. Fugir para longe daquele hospital, onde os restos de alguém sangravam eternamente.

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