segunda-feira, 2 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXI

Admirou-se:
— Leleco, você está gaguejando, Leleco!
Desesperado, ele passa as costas da mão no suor da testa. “Devo ter cara de assassino”, eis o que pensava; ajuntou com tumultuosa incoerência: “Sabe que eu gosto do seu nome? Janet é um bonito nome. Janet, bonito nome. Eu acho bonito, Janet. Nome bonito, Janet. Nome bonito!”
Ia numa saraivada de repetições e já não se controlava. Diz, para si mesmo: “Ou eu paro ou enlouqueço!” E, ao mes­mo tempo, pensa: “Ela sabe que eu matei.” Janet põe a mão no seu braço:
— Você brigou com sua namorada?
A pergunta fê-lo cair em si. “Não sabe, nem desconfia.” Tem um riso baixo e entrecortado. Vacila (“Ou está fingin­do?”), toma coragem e ergue o busto:
— Briguei.
E ela, com uma brusca alegria (a princípio, chegara a ima­giná-lo bêbedo ou louco):
— Logo vi!
Momentos atrás, Janet vinha passando, com um grupo de rapazes e moças, quando o vira romper da porta do edifício, munia alucinação. Voltara atrás, enquanto os outros a espera­vam, mais adiante. Os dois se conheciam há anos. Tinham sido vizinhos e ela, com seu instinto de mulher, sentia, nele, qualquer coisa de atormentado e puro. Agora, moravam em bairros diferentes e só se viam por acaso, de passagem.
No seu jeito, doce e alegre, disse:
— Vocês brigaram, mas olha: não liga. Amanhã, aposto como vocês fazem as pazes.
Uma moça do grupo chama:
— Janet!
Vira-se:
— Já vou.
E para Leleco:
— Escuta, eu...
Ele interrompe e fala, com apaixonada humildade:
— Janet, eu não sou nada teu. Apenas um amiguinho, mas escuta: às vezes, um amiguinho ou nem isso: às vezes, um desconhecido, na rua...
Pára; pergunta a si mesmo: “O que é que eu estava di­zendo?” Gostaria de continuar: “Janet, um desconhecido pode dar a vida por uma desconhecida.” Acha, porém, que se falasse assim ela não entenderia nada. Janet sorri:
— Fala.
Respira fundo:
— Bobagem. Coisa à toa.
Novamente, o grupo grita por Janet. A menina quer se despedir:
— Escuta: você está só?
— Por quê?
— Nós vamos, ali, numa brincadeira. Rapazes e moças. Quer vir? Vem.
Recua, trincando os dentes:
— Ir a uma festa, agora? Agora, Janet? Não, não posso ir. Sem entender a agitação do rapaz (Que coisa!), estendia-lhe a mão:
— Então, tchau e olha: você vai estar com o Durval?
— Talvez.
— Diz a ele, ouviu? Diz que eu estou muito zangada e que se ele não me telefonar, eu nunca mais falo com ele. Diz assim, diz! So long!
— Bye.
Ficou em pé, na calçada, vendo-a afastar-se. Mais adiante, Janet vira-se para dar-lhe adeus. Então, Leleco não se con­teve. Gritou:
— Janet!
Foi ao seu encontro, apressando o passo. Chega, ofegante. O grupo caminhava, mais na frente, devagar.
— Janet, eu vou, Janet.
Gostava de dizer, repetir o seu nome. Andando a seu lado, sentia uma calma vibrante, uma intensa serenidade. Ia à festa para tê-la junto de si. Até o fim de sua vida, não esqueceria que, minutos após o crime, no momento em que ele estava tão perdido, ela voltara atrás e o chamara. “Se Janet não me chama naquele instante, se não vem falar comigo... Ela me salvou”, diz para si mesmo. Crispa-se ao pensar que, depois da festa, a pequena iria embora e ele ficaria novamente só e perdido.
Janet insiste:
— Você não deixa de dar esse recado ao Durval. Dá mes­mo. Ele não me liga, não me dá a menor pelota!
— Pode deixar que eu dou.
Chegavam no edifício da festa. Era no apartamento de uma amiga de Janet, a Sônia. Pelo telefone, esta dissera: “Traz quem você quiser. Rapazes, moças.” E, agora, junto ao eleva­dor, Janet fazia a apresentação:
— Pessoal! Aqui é o Leleco!
Com Janet por perto (a menina o salvara com um pouco, um mínimo de carinho, de um instintivo e apiedado carinho), Leleco sentia-se forte. Pensou, com uma euforia maligna: “Nin­guém, aqui, sabe que eu matei. Falam comigo, olham para mim, e não sabem que eu matei.”

*

Bob e Cabeça de Ovo entram e fecham rapidamente a porta. Por um momento, calados, olham o cadáver. Cabeça de Ovo fala baixo e violento:
— Voltar, pra quê?
O outro foi duro também:
— Ó sua besta! Você se esquece que o Tameirão me deu a chave e o responsável sou eu? Se descobrirem o cadáver aqui, o que é que acontece? Primeiro: a bomba estoura na minha mão, claro! Na minha e na tua!
— Mas eu não matei ninguém, ora que conversa! Nem eu, nem você!
Ri, feroz:
— Gracinha! Você acha que a polícia, oh Cabeça de Ovo não te mete! Você não dá uma dentro!
Cabeça de Ovo olha outra vez o morto. Volta-se:
— O que é que se faz?
Bufa: “É o que eu estou pensando!” Põe a mão na ca­beça e, de costas para o cadáver, diz: “A salvação é o seguinte: o Tameirão ainda vai ficar em Petrópolis uma semana. Até lá, quem sabe?” Cabeça de Ovo jura para si mesmo: “Nunca mais na minha vida! Ah, se eu sair dessa!” Bob decide:
— Bem. Presta atenção. Vamos tirar o cadáver daqui.
O companheiro recua:
— Mas escuta! Eu não matei ninguém e por que é que eu vou botar a mão num sujeito que outro matou?
Bob salta:
— Ora, deixa de conversa! Já está enchendo! — muda de tom: — Vamos tirar o Cadelão daqui e já. Não enche!
— E o sangue?
Bob coça a cabeça: “O sangue não tem problema. Ainda bem que esse plástico salvou a pátria. Passa-se o pano e pronto. Tem um porém: onde é que se põe o cadáver?” Olha para um lado e outro. Cabeça de Ovo arrisca:
— Que tal jogar pela janela?
Vacila, mas decide:
— Não! Que pela janela!
— Por quê?
— Sempre há um chato, ou uma chata, que vê e vai dizer na polícia: “Caiu do andar tal!” E além disso, eu sei usar a cabeça, antes do corpo cair, toda a polícia, radiopatrulha, jor­nal, o diabo, já está lá. Espera! Bolei outra idéia.
Puxa o braço do Cabeça de Ovo.
— Vamos jogar com a sorte! E tomara que dê certo. É o seguinte: nós puxamos o corpo pelas escadas e deixamos sabe onde? Três andares abaixo. Entre um andar e outro, natural­mente.
Cabeça de Ovo ainda resmunga: “Por que é que eu fui me meter numa fria dessas?” O outro repete: “É o jeito!” Com um ritus de medo e nojo, Cabeça de Ovo olha o cadáver:
— O Capelão pesa pra burro!
Bob vai, um momento, espiar pela porta: ninguém. Volta, mais seguro de si: “A hora facilita. Ou o pessoal está vendo televisão ou no cinema. Vamos, segura.” Ao mesmo tempo que, com uma náusea de medo, chega-se para o cadáver, Cabeça de Ovo balbucia:
— O Cadelão te achava o mais inteligente do grupo! Di­zia que você...
Pára. Geme, com um suor grosso como óleo: “Não tenho coragem. Vomito, já, já!” Bob vocifera:
— Seja homem! Temos que sair daqui antes que fechem a porta lá embaixo! Você é um frouxo!

*

Silene bate na porta de Engraçadinha:
— Mamãe! D. Araci está aí!
Com o marido, de joelhos, abraçado ainda às suas pernas, responde:
— Já vou.
Disse, baixo: “Levanta.” O marido obedeceu. Ela aban­dona o quarto. Não se perdoa de ter esbofeteado o marido. Pensa: “Não devo erguer minha mão nem para meu marido, nem para um filho, Deus não me deu direito de esbofetear nin­guém.” D. Araci ergue-se ao vê-la:
— Imagina que...
— Senta.
E a outra:
— Engraçadinha, estou muito preocupada. O Leleco ficou de chegar mais cedo e ainda não apareceu, Engraçadinha. Será que aconteceu alguma coisa?
Pensando na humilhação do marido, quis ser otimista: “Nem vai acontecer nada.” A outra, aflita, já querendo des­pedir-se:
— O pior é que... Você conhece o Ceguinho?
Foi delicada, mas firme: “Eu não acredito nessas coisas.” A outra, porém, com o espírito trabalhado por uma idéia fixa, abre o coração:
— O Ceguinho que é médium vidente. Eu também não acredito. Mas o Ceguinho disse que ia acontecer uma desgraça ao Leleco, dos 18 aos 19 anos. Eu já vou, Engraçadinha. Boa-noite.
O marido fora ao banheiro molhar a cabeça na pia. Vol­tava. Pela primeira vez, em vinte e poucos anos de convivência conjugal, teve uma pena brusca daquele homem. “Jamais fui sua mulher.” Era verdade: deixava-se possuir por obrigação e nas trevas. Zózimo deitou-se na cama. Uniu os pés, entre­laçou as mãos na altura do peito, fechou os olhos como um morto. Disse:
— Ou eu vejo minha mulher nua, uma vez, uma única vez, ou...

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