terça-feira, 3 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXII

De vez em quando, vinha um rapaz tirar Janet para dan­çar. Leleco ficava então só, de braços cruzados, uma tristeza quase doce no olhar. Sempre que voltava, Janet fazia a per­gunta:
— Você não toma nada?
— Nada.
— Aceita um doce?
— Obrigado.
E ela:
— Pelo menos, um salgadinho?
Sorria:
— Estou sem fome nenhuma, nenhuma.
Houve um momento em que, com a garganta em fogo, disse:
— Um copo d’água, aceito. Um copo d’água.
— Mineral?
— Do filtro. E gelada, Janet, ouviu? Gelada.
A moça afasta-se. Ele estremece: “Eu não estava pen­sando no crime.” De vez em quando, sofria certos lapsos e precisava perguntar a si mesmo: “Estou sofrendo por quê?” Vinha a resposta: “Eu matei. Sou assassino.” Na copa, a dona da festa, Sônia, pergunta à Janet:
— Escuta. O que é que há com teu amigo?
Janet apanhava na geladeira a garrafa de água. Vira-se: “Por quê?” E a outra, que estava comendo uma mãe-benta (aliás, fabulosa):
— Ainda não dançou e...
Janet enche o copo:
— Dor-de-cotovelo.
Sônia tira outra mãe-benta:
— Dança com ele, dança!
Janet vai atravessando a sala e pedindo licença. Súbito, um rapaz que estava junto à mesa de doces, e que já tomara vários ponches, chama: “Janet.” Ela responde, sem se voltar: “Um momentinho.” Mas o outro, mal seguro nas pernas, uma cintilação ameaçadora no olhar, veio, esbarrando em todo o mundo, ao seu encontro. Chama, outra vez:
— Escuta aqui, Ana Karenina!
Ela pára:
— O quê?
O outro ri, áspero:
— Descobri que você é Ana Karenina.
— Isola!
Na sua obstinação alcoólica, Lázaro a acompanha. Re­pete, com a voz pesada:
— Ana Karenina ou Natacha, do Guerra e Paz.
Na varanda, Leleco apanha com as duas mãos o copo e bebe de uma vez só, com desesperada felicidade. Pensa: “Água gostosa!” Lera, certa vez, que um santo qualquer chamava: “Nossa irmã, a água,” Janet ri para Lázaro:
— Fica quieto!
O bêbedo, ou semibêbedo, porém, não a deixa em paz. Normalmente tímido e, mesmo, doce, três ou quatro chopes o transfiguravam. E, então, aquele contido, aquele terno, torna­va-se inconveniente, agressivo e pomposo. Erguia a voz:
— Janet, você vai morrer de amor e por amor.
Volta-se para Leleco e o agarra:
— Nossa amizade, olha aqui. Diz: ela não vai morrer? Fala! Não vai morrer de amor? Por amor?
Espetou o dedo no peito de Leleco. Lívido, o rapaz não responde. Lázaro exalta-se:
— Ela vai morrer, sim, de amor. É uma Ana Karenina. Não mataram a Ana Karenina? Ou foi suicídio? Mataram. E talvez...
Lázaro gira sobre si mesmo. Querem levá-lo dali. O rapaz tem um repelão indignado:
— Tira a mão, que eu, bom! Tira a mão! — pausa, olha as caras que o cercam; com riso torcido, continua com a mesma fúria exultante: — Talvez o assassino já esteja aqui! Ouçam! Ouçam! Talvez um de nós seja o futuro assassino dessa menina!
Puxam Lázaro:
— Vem cá!
O rapaz desprende-se e com tal violência que, por um momento, perde o equilíbrio e cai por cima de Leleco. Recupe­ra-se e ri, sórdido, para Janet:
— Quem sabe se eu não vou ser teu assassino. Eu ou...
Hesita. Olha as caras, uma por uma. Finalmente é em Leleco que se fixa:
— Ou eu ou você. Você tem uma boa cara de assassino. Você...
Leleco atônito, não sabe o que dizer. Raciocina: “Mas ele não viu, ele não sabe!” Janet sopra no seu ouvido: “Dança comigo, dança!” Deixa-se levar, Lázaro berra:
— Olha a Janet dançando com o próprio assassino!
Outros rapazes dominam Lázaro. Foi arrastado. O bêbado ainda esbraveja:
— Ana Karenina! Natacha!
Muito olhada, Janet está dançando com Leleco. É um fox. Sentindo aquele corpo viver junto ao seu, ele tem bruscamente a vontade de beijá-la. Mas seria um beijo sem sexo, um bei­jo... Pensa: “Eu amo Silene. Mas sinto que Janet...” Baixa a voz, atormentado:
— Você viu?
— O Lázaro?
E ele:
— Me chamou de assassino.
— Não liga... O Lázaro, eu gosto dele. Mas quando bebe fica impossível...
No seu desespero, ele faz a pergunta:
— Você acha que eu... É uma curiosidade. Acha que, por acaso, eu tenho cara de assassino? Ou por outra: você acha que eu seria...
Cala-se. “Não digo mais nada. E pra quê?” Recua o rosto, para olhá-lo:
— Mas que bobagem!
Sofrendo como nunca, e realmente com lágrimas nos olhos, ele começa:
— Janet, eu queria que se, num dia, você soubesse al­guma coisa de mim. Queria que você me perdoasse e com­preendesse, ouviu, Janet? E, sobretudo, queria o seu perdão ou um pouco de perdão.
Neste momento, entra o Rodolfo, irmão de Sônia, que descera, um momento, para acompanhar uma família conhecida. Vem iluminado:
— Houve um crime!
— Onde?
— No edifício ao lado.
— Crime?
Janet vira a cabeça. Rodolfo vibra:
— Mataram um rapaz.
Moças e rapazes correm para a varanda. Leleco trinca os dentes. Ouve alguém falando: “Duas radiopatrulhas.” Nova­mente, a voz de Rodolfo:
— Interditaram o edifício.
Janet quer ver também. Fora de si, Leleco pede:
— Fica comigo, Janet. Não me deixe só.
No meio da sala, enquanto os convidados se amontoam na varanda, os dois se olham. Sem que a moça nada dissesse, ele, varado de febre, murmura:
— Eu não sou infame.

*

Durante alguns momentos, não houve, entre marido e mu­lher, uma palavra. Quando Zózimo abriu os olhos, Engraça­dinha continuava de pé, no meio do quarto, de cabeça baixa, rezando. Ele que deixara a frase pelo meio quer completar:
— Engraçadinha, eu não agüento mais...
Ela interrompe, vivamente:
— Você me acusa, Zózimo?
Senta-se na cama:
— Não, não acuso. Ninguém tem obrigação de gostar de mim, nem minha esposa.
Responde, sóbria:
— Eu gosto, Zózimo, gosto de você, mas gosto à minha maneira.
O marido levanta-se: “Você não me ama.” Ela não con­segue reprimir um movimento de irritação: “Vocês só pensam em sexo!” Zózimo fala, andando de um lado para outro:
— Você não tem obrigação de me amar. E já que a mi­nha mulher não me ama, já que tem horror de mim...
Balbucia: “Horror?” E ele:
— Claro! Uma mulher que, em vinte anos... Vinte anos não são vinte dias. Que, em vinte anos, não se deixou ver nua uma única vez! O que é isso? Horror! Você exige que eu apague a luz. Você não se entrega de dia. Você, ah Engraça­dinha, você tem horror de mim, horror!
Disse, com surdo sofrimento: “Eu sou crente! Você se esquece que eu sou crente?” Ele continua:
— Mas eu não condeno você e talvez o errado seja eu. Mas eu queria avisar que... De hoje em diante, Engraçadinha, vou beber de cair! Todos os dias, vou beber de cair! Eu não devia nem dizer isso, mas vou beber de cair. Não está em mim! Eu sou humano, Engraçadinha, afinal eu sou humano!
Pergunta, de perfil para ele:
— O que é que você quer de mim?
Baixa a voz (a esperança está nascendo da angústia):
— Eu quero... Olha! Queria te ver sem roupa, uma única vez. Apenas isso, Engraçadinha! Uma vez e só essa vez! Eu apenas olharia sem tocar em você.
Agora de costas, pergunta:
— E você não beberia nunca mais?
Diz, com a voz estrangulada:
— Se agora, neste momento, você tirasse a roupa, e eu não tocarei em você, eu nunca mais... Eu sou teu marido, Engraçadinha! Tira tudo e eu não tocarei em você. Escuta: você faria isso?
— Só essa vez?
— Só.
Fica de frente para o marido. Começa a tirar o quimono.

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