quarta-feira, 4 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXIII

Engraçadinha abre o primeiro botão do quimono, o se­gundo. Pára. Vira-se para o marido, com surda irritação:
— Mas por quê? Responde: por quê?
Estende a mão crispada:
— É uma vez, só essa vez e nunca mais!
Está rouco de angústia. Engraçadinha aperta a cabeça entre as mãos:
— E a minha religião?
Aproxima-se. Seu rosto é uma máscara de apelo:
— Eu sou humano! E você é humana!
Responde, com violência:
— Eu não sei se sou humana! Quem disse a você que eu sou humana?
Os dois sabem que, em 20 anos de vida conjugal, ela ja­mais conheceu um minuto de volúpia. Quando apagava a luz e o marido pesava sobre seu corpo, tinha vontade de gritar. Pre­cisava repetir para si mesma: “É meu dever.” Mas sentia a náusea contraída no fundo do seu ser. (Tinha ódio de todos os deveres, de todas as obrigações sexuais.) E ao ouvir falar no filme Les Amants, e numa cena que punha a platéia atônita e gelada, Engraçadinha inflamara-se, um dia:
— Eu sou casada. Mas se meu marido tivesse a audácia, o atrevimento de me propor, eu era capaz até de, nem sei!
Falara assim, com uma cara de nojo total, na porta da igreja. Outras senhoras (eram só mulheres) baixaram a cabeça ante esse pudor agressivo e triunfante. Uma delas balbuciou:

— Eu também! Eu também!
Suas amigas mais chegadas sabiam que ela jamais se des­pira para o marido. E, agora, no quarto, Engraçadinha resis­tia ainda. O marido repete:
— Só essa vez, Engraçadinha, só essa vez!
Silêncio. Disse com os dentes trincados:
— Vira pra lá.
Zózimo está de costas. Lentamente, Engraçadinha vai de­sabotoando o quimono. Está só de camisola. Faz, bruscamente, a pergunta:
— Você viu o tal filme? Mas não olha, não olha. Viu?
Balbucia:
— Que filme?
Sabia que ela se referia a Les Amants. Engraçadinha con­tinua (está só de camisola):
— Esse que... Como é o nome? Mas não olha! Viu?
Arqueja:
— Não.
— Ou viu?
— Juro!
Vira, sim, vira. Entrara num cinema, depois de passar uma hora na fila. Metera-se numa cadeira de canto e quando chegou o grande momento pensou, abrindo o colarinho: “Eu e Engraçadinha! Nós dois. Eu e...” Saíra do cinema, fora de si. Prometera a si mesmo: “Não hei de morrer, sem...”
Há uma pausa. Engraçadinha fala, novamente:
— Escuta. Não olha ainda. Você prometeu que não me tocaria. Prometeu. Não se esqueça.
Disse:
— Prometi.
Novo silêncio. Por fim, Engraçadinha fala, quase sem voz:
— Pronto.

*

Na redação de Última Hora, o garoto do Departamento Fotográfico vem trazer o serviço de Petrópolis. Aroldo Wall, o secretário da noite, apanha as fotografias:
— Que é isso?
— O tal desabamento.
Passa a vista no serviço e pula:
— Mas não é possível! Cadê o Estrela! Chama o Estrela! Zé Miguel, chama o Estrela!
Aroldo, moreno, com um olhar meio fatal de Werther, abre os braços, valorizando e, mesmo, dramatizando as suas atribuições funcionais. Saiu da mesa e vem para a seção de polícia:
— Não há cristão que agüente! Vê isso! Espia só!
Derramou, com triunfal desprezo, as fotografias em cima da mesa. Toda a reportagem de polícia, com uma avidez imensa e gratuita, veio olhar. Eram flagrantes de uma pequena (e por que pequena?) catástrofe. Desabara um andaime, na altura de um décimo-segundo andar, e o abismo súbito devorara de 12 a 15 vidas. O grande o pomposo argumento do Aroldo Wall era a cor das vítimas:
— Só cadáver de preto! Mas não é possível!
Naquele momento, aparece o Estrela:
— Qual é o drama?
Aroldo Wall arrasta o chefe do Departamento Fotográfico:
— Vem cá, Estrela, vem cá. Olha esse troço aqui! Olha que serviço porco! Estás vendo, Estrela?
O companheiro examina e ainda não entendeu:
— E daí?
Aroldo Wall dramatiza mais:
— Escuta, Estrela! Será que só morreu preto? Dez cadá­veres e nenhum branco? Tem paciência, Estrela! Essa, não!
Estrela reage:
— Não faz carnaval, Aroldo! Mania de fazer carnaval!
— Ou você me acha com cara de publicar cadáver de preto na primeira página? Na primeira página, Estrela! Eu ia dar uma chamada e não posso! Estrela, vê se eu tenho ou não tenho razão? Gasta-se jipe, papel, revelador e o Luís Santos não bate nenhum cadáver branco?
Nesse momento, o Honório ‘Pingüim’ dá o berro:
— Amado Ribeiro!
O repórter que espiava as fotografias quer saber: “Ho­mem ou mulher?” O Honório ‘Pingüim’ responde: “Homem!” Lá vem o Amado Ribeiro e furioso também:
— Avisa a essa telefonista pra me chamar noutro ramal!
Atende e do outro lado da linha alguém, frenético, chama:
— Chispa, rapaz! Chispa!
E o Amado Ribeiro:
— Mas que é que há?
O outro despeja o fato:
— Prepara a minha ‘quina’, que mataram um bacana!
— Onde?
— Aqui, em Laranjeiras. Olha: Rua General Glicério. Aquele edifício quase de esquina. Encestaram o sujeito, um ra­paz, ouviu? Filho do provedor não sei da onde.
— Provedor?
— Isso. Mergulha de cara porque só agora é que...
Amado Ribeiro bate com o telefone. Vem correndo:
— Dá uma requisição, anda, uma requisição!
Ao mesmo tempo que apanha o papel, faz a pergunta geral:
— Tem jipe?
O Zé Miguel vai carregando uma máquina para o Agnaldo de Freitas. Responde, de passagem:
— Ainda não voltou de Copacabana.
Amado Ribeiro esbraveja:
— É fantástico! O jornal tem uma garage que é uma ca­tedral. Mas nunca há jipe! Olha, Antônio! Pede um fotógrafo, ó gordinho!
Mas viu Estrela. Corre para este:
— Estrela, fotógrafo, tem fotógrafo?
Acontece que continua, e cada vez mais veemente, o de­bate racial. Estrela atira a acusação grave: “Você é racista, é?” Aroldo tem um repelão indignado:
— Racista, vírgula! E escuta! Vem cá, Estrela!
O outro está zangado: — “Não quero conversa!” Aroldo disse o resto:
— Você quer me convencer, a mim, quer? Que o cadáver de um preto... Qualquer defunto é um bucho. Mas o preto morto é pior! É um chute!
Já o Amado Ribeiro pedira o fotógrafo ao Estrela. Se­gura o Aroldo:
— Olha, o meu ‘cachorrinho presidencial’...
Ainda inflamado da discussão, Aroldo está sem agilidade mental. No primeiro momento, acredita tratar-se de um canino mesmo do Juscelino. Amado Ribeiro tem que explicar:
— Ó Aroldo!, ‘cachorrinho presidencial’ é o cara, é o lavador de automóvel, lá de Laranjeiras, que eu pago pra me dar ‘furos’! Preciso de um jipe. Mas não tem. A nossa garage é uma catedral que nunca tem jipe!
Aroldo atira-se para o telefone:
— Tem jipe, sim! Como não tem? Tem que ter!
O fotógrafo já compareceu. Pergunta: “Onde é?” Anda de um lado para o outro, com um boné de jóquei. É o Paulo Reis. Finalmente, vem a resposta lá de baixo. Aroldo, com seu olhar de cinema mudo, anuncia:
— Tem jipe, sim. Não disse? Tem jipe. Não afoba, Ama­do, não afoba. Eu disse que tinha e tem.
Amado Ribeiro e Paulo Reis despencam-se pelas escadas. O ‘cachorrinho’ avisara que o morto era um tal de Cadelão, da Praça Saenz Peña, e que aparecera estripado, junto à porta do elevador, num sexto andar de General Glicério.

*

Zózimo virou-se. Diante dele, ereta e vibrante, a nudez de Engraçadinha. Nua, tão nua e, pela primeira vez, em vinte anos.

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