quinta-feira, 5 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXIV

Varando os buracos da cidade, lá partiu o jipe, numa frenética velocidade, para Laranjeiras. Foi feito o itinerário normal: Joaquim Palhares, Salvador de Sá, Mem de Sá, Lapa, etc, etc. Paulo Reis, o fotógrafo, descendente de sírios, com suas pretensões a bonito (tricolor fanático), vinha cutucando o chofer:
— Chato ser Fluminense!
Amado Ribeiro era o repórter de polícia, nato e heredi­tário. Quando não havia crime sofria como um pobre diabo irremediável, sem destino, nem função. Naquele dia, justamen­te, fora visto na redação, errante de mesa em mesa, exalando melancolia e impotência: “Não morre ninguém!” E insistia, numa alegre indignação: “Ninguém mata ninguém!” Súbito, o ‘cachorrinho presidencial’ avisa: “Mataram o Cadelão!”
Diante do crime, eis que Amado Ribeiro começa a viver. A boca fica pesada de saliva. O nome ou apelido da vítima — Cadelão — era uma promessa. Repetiu, para si mesmo, em voz alta:
— Cadelão!
Imaginou que seria um misterioso ser, andrógino de ca­chorro e gente. O Paulo Reis, que se afundara numa discussão de futebol, exige o seu testemunho:
— Dá um palpite, uma opinião. Você não acha que o Zezé Moreira é quinhentas vezes melhor que o Solich? Fala: Solich ou Zezé?
Amado Ribeiro, rubro-negro eterno e que se confessava quase ‘viúva de Solich’, foi sucinto e inapelável:
— Solich.
Discutiram futebol até a esquina da General Glicerio com Laranjeiras. Todavia Amado, ao mesmo tempo que punha o paraguaio nas nuvens, pensava mesmo no Cadelão. Concluía que este era muito mais nome de assassino que de vítima. Es­peculava: “Cadelão é, sim, nome de homicida sexual”, “Cade­lão”, repetiu como se o mistério todo do crime estivesse numa alcunha.
Na esquina, o ‘cachorrinho’, de macacão, os esperava. Sem dentes, um riso de boca murcha, o sujeito estende a mão:
— Minha ‘quina’!
Enfiou uma cédula de cinqüenta:
— Toma!
O outro embolsa. Deu mais dados:
— O cadáver estava na porta do apartamento 606.
— Você viu?
— O cadáver?
— Viu?
O ‘cachorrinho’ exulta:
— Vi. Eu quem descobri o homem. Fui consertar uma tomada no quinto e não era lá. Subi e, no sexto, dou com aque­le sujeito entornado.
— Morto?
— Mortíssimo. E olha: forte pra burro! No mínimo, deve ser lutador. Moço, bonitão. Olha — baixa a voz e completa: — Tem uma ‘boa’ no 606.
— Boa?
Mastiga em seco:
— ‘Boa’ é apelido! De fechar! E o marido, pode ser, mas não é homem pra aquela dona. Não faço fé. E quando eu toco a campainha e o casal vê, a ‘boa’ teve um ataque.
Amado Ribeiro gravara o número do apartamento. Com o ‘606’ na cabeça, afunda-se outra vez no assento: “Pode ir.” O jipe parte e ele sonha em voz alta:
— Eu sou o repórter que não se vende. Nada me com­pra, nem todo o ouro do Banco da Inglaterra. Só uma coisa me compra: mulher.
Pensava: “Tem mulher no meio.” Saltou na porta do edi­fício e já desejava a desconhecida bonita do 606.

*

Murmurou, lívido:
— Engraçadinha!
E ela:
— Não se aproxime!
Zózimo pensa: “Como se pode ser tão linda!” Ela, de ca­beça baixa, diz:
— Apaga a luz.
Balbucia:
— Ainda não. Eu não me aproximo. Um momento só. Engraçadinha, eu não me aproximo! E sou teu marido! Estou longe, querida!
A mulher não faz um movimento. Murmura: “Pai Santo, glorioso...” Pede ainda:
— A luz! Apaga!
O marido aproxima-se. Recua: “Você prometeu, Zózimo!” Encostada à parede, não pode fugir mais. Zózimo repete:
— Eu sou humano!
Cruza os braços sobre os seios:
— Nunca mais, Zózimo!
O marido dirá ainda: “Humano, eu sou humano.” E ela: “Eu te odeio!” Diz, agora rosto com rosto:
— Apanha minha camisola!
E ele:
— Eu não toco em ti. Sou humano. Nua.
Sob a obsessão do ‘humano’ olha ainda e com uma brutal euforia. Súbito, ele cai de joelhos diante da mulher. Aquela boca ávida. Ela balbucia:
— Não! Não quero! Não, Zózimo!
O marido não responde. Engraçadinha já não reconhece a própria voz:
— Você, Zózimo... Você viu... Não deixo... Viu... Viu o filme...
À princípio, hirta, ereta, a nudez começa a viver, a ondu­lar. Engraçadinha quer falar, mas a voz lhe foge. Enterra as unhas na palma das próprias mãos.

*

Quando Janet, Leleco e o grupo descem, Rodolfo vem ao seu encontro. Lázaro ficara, lá em cima, no quarto de um dos rapazes. Atirado na cama, chorava, na obsessão de Ana Karenina: “Você vai morrer, Janet, vai morrer de amor...” Janet, no elevador, suspirava (para Leleco):
— Bom rapaz, o Lázaro! Mas quando bebe é um caso sério!
Leleco, pensando no crime, e muito pálido, quis sorrir:
— Ele me chamou de assassino.
Embaixo, no edifício ao lado, continuam as duas radio­patrulhas. Alguém aponta:
— O rabecão.
De fato, o carro de alumínio encostava no meio-fio. Ro­dolfo andara ouvindo aqui e ali; conversava com um repórter da Última Hora (um rapaz moreno, tipo pau-de-arara) e com o porteiro do edifício, Janet pergunta:
— Foi crime mesmo?
— Batata.
— Descobriram o criminoso?
Cercado por conhecidos e desconhecidos, Rodolfo explica o que sabe:
— Ainda não. Desconfia-se. Encontraram o cadáver na porta do 606 e não sei, mas parece que o professor de mú­sica...
Sônia, que descera com o pessoal, puxa o braço do irmão:
— O professor Petrescu?
E Rodolfo:
— O professor Petrescu — e continua: — A polícia des­confia, mas sabe como é. O professor Petrescu nega.
Sônia protesta:
— O professor Petrescu não mata uma mosca!
Leleco baixa a voz, suplicante, para Janet: “Vamos?” Podia despedir-se, partir. Mas tinha medo de atravessar, sozi­nho, a porta do edifício. Janet dava-lhe uma sensação de ter­nura total. Sua fragilidade o protegia e salvava. O simples fato de vê-la, ouvi-la, fazia-o sentir-se menos assassino. Pensava: “Olhando para Janet, eu me esqueço de tudo.” Sônia vira-se para Janet:
— O professor Petrescu é romeno, mas muito distinto. E D. Maria Aparecida é a mulher dele.
Janet crispa-se. Fala baixo, para Leleco: “A única coisa que eu não perdôo é que se tire uma vida. Eu acho que o assassino não tem mesmo perdão.” Balbucia: “Mas, Janet! De­pende do motivo, Janet!” Por um momento, o olhar de Janet perde a doçura:
— Tirar a vida, não!
Rodolfo continua:
— O morto ia muito no edifício, tinha um amigo lá. Pas­sou a freqüentar a casa do professor Petrescu e parece que o marido ficou enciumado e...

*

Quando Amado Ribeiro e Paulo Reis iam saindo, o co­missário Piragibe vira-se, um momento:
— Esse é um que merece um tiro na cara! Vive metendo o pau na polícia!
Amado Ribeiro já andara no sexto andar. Vira o cadáver, conversara com o porteiro, com alguns moradores. Não falara ainda com o casal do 606 que, no momento, estava sendo in­terrogado. Depois de ouvir dois ou três vizinhos, pretendia subir. Cruza com o comissário Piragibe na escada. No hall do edi­fício, quando se dirigia para o elevador, ouve um chamado:
— Moço! Moço!
Vira-se e tem a exclamação interior: “Que boa!” Uma desconhecida, com um nariz de Marylin Monroe, sem pintura, faz a pergunta sôfrega:
— O senhor é jornalista?
— Repórter.
E ela, passando as costas da mão no nariz:
— Eu vi pelo fotógrafo. O senhor quer chegar aqui um instantinho?
Olha para um lado e outro. Amado Ribeiro diz para si mesmo: “A cara é sexo puro!” Perto do balcão do porteiro, ela começa:
— Eu sei quem é o assassino! Eu sei quem matou.

Nenhum comentário: