sexta-feira, 6 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXV

A mulher (aliás, uma moça lindíssima) crispa a mão no braço de Amado Ribeiro:
— O senhor vai pôr um anúncio no seu jornal!
Breve espanto:
— Anúncio?
Desesperada, balbucia:
— Anúncio! Sim, anúncio!
— Ou notícia?
E ela:
— Notícia, anúncio, sei lá! Qualquer coisa! — e continua, na sua violência contida: — O senhor vai pôr um anúncio dizendo. Quer tomar nota? O senhor escreve aí.
Amado, rápido, apanha um papel, lápis:
— Quem é o assassino, minha senhora?
Ela, que amassava um lencinho, assoa-se, rapidamente. Diz, com ênfase:
— No anúncio que o senhor vai pôr, o senhor diz. Pode dizer, por minha conta. Diz que o assassino é — interrompe-se. — Mas o senhor não está escrevendo nada?
Para si mesmo o Amado Ribeiro exclama: “Que espetá­culo de mulher!” Doeu-lhe não ser forte, maciço, quase belo como o Cadelão. Pragueja, interiormente: “Onde é que eu fui arranjar esta cara de pau-de-arara?” Explica:
— Não se incomode, que eu cá me arranjo. Mas o assas­sino é...
Na sua ênfase vibrante, responde:
— Meu marido!
O repórter toma um choque. Olha para trás. Sente que toda a reportagem já chegou. Fotógrafos e repórteres de outros jornais, assanhadíssimos, ocupam o local. Trata de andar de­pressa. Baixa a voz:
— Escuta: como é seu nome, minha senhora?
— Maria Aparecida.
Amado Ribeiro faz uma garatujá, repetindo: “Maria Aparecida.” Acha o nome gostoso de dizer. Ela continua, numa excitação que a embeleza:
— Eu moro no 606.
— Ah, o tal apartamento?
Começa a chorar:
— O rapaz apareceu morto na minha porta. Sabe lá o que é isso? Morto na minha porta. Morto, um rapaz que, ainda há pouco, oh, meu Deus!
Novamente, assoa-se no lencinho. Amado Ribeiro não per­de tempo:
— Minha senhora, vamos fazer o seguinte. Precisamos sair daqui. Não tem um bar aqui por perto?
— Bar, não, não convém. O melhor é... Vem cá. Olha: no primeiro andar, aí, em cima, eu tenho uma amiga. O marido está viajando. Lá, podemos conversar melhor. Vamos?
— Ótimo.

*

Há um silêncio longo. Ainda encostada à parede, os dentes cerrados, ofegante. Engraçadinha parece esquecida do pudor. (Nem cruza mais os braços sobre os seios, firmes e lindos.) As últimas contrações extinguem-se docemente no fundo do ser.
Zózimo levanta-se. Foi a sensação de que estava sendo muito olhada que a despertou do selvagem abandono. Instin­tivamente, cobre os seios com as mãos. Diz, de rosto virado:
— Dá a camisola!
Numa triunfante humildade, balbucia:
— Engraçadinha...
Cerra os dentes:
— A camisola!
Zózimo vira-se. Ela pede: “Não olha.” O marido estende a mão:
— Toma.
Olha ainda com a violenta doçura de uma última vez. Num gesto ávido, Engraçadinha apanha a camisola. Veste-se. Fora de si, corre para a cama e põe o quimono. Depois de abotoar-se, encara-o:
— Se não fosse minha religião, e se eu não tivesse cinco filhas...
— Escuta, Engraçadinha!
Alteia a voz:
— Deixa eu falar! Se não fosse minha religião eu saía por esta porta afora!
Quis tocá-la com a mão. A esposa foge com o corpo. Zó­zimo gagueja:
— Olha, meu bem.
— Não me chama de ‘meu bem’.
E ele:
— Você tem razão. Tem e não tem — repete, sôfrego: — Tem e não tem. Você que se esquece que há vinte anos...
A obsessão dos 20 anos não o largava. Durante todo esse tempo, possuíra nas trevas uma esposa em combinação ou ca­misola. Essa nudez sempre negada era a sua humilhação e sua miséria.
Engraçadinha ergue o rosto:
— Você só pensa nessas indecências!
— Engraçadinha, olha!
— De mais a mais, você viu o filme!
Protesta: “Não!” Teima:
— Viu!
Acaba admitindo:
— Vi.
Recua:
— Viu e ainda confessa! Viu e...
Cobre o rosto com uma das mãos; chora agora em silêncio. Durante alguns momentos, o marido não sabe o que dizer. Balbucia:
— Perdão.
Engraçadinha pensa: “Ele não presta, nem eu. Eu sou pior. Eu sou crente...” Na sua tristeza atônita, repete para si mes­ma: “Eu não presto.” O que a espantava era a violência do próprio prazer. Houve um momento em que sentira a garganta fechar-se.
Teve ódio de si mesma. Acusava-se ainda mais de ter, pelas próprias mãos, arrancado toda a roupa. Volta-se para o marido:
— Eu não sou como certas esposas que... Se você pu­desse imaginar o horror, ouviu? O horror! E olha, Zózimo, eu não amava você e agora menos do que nunca! Agora mesmo é que... Eu seria uma prostituta se aceitasse, se admitisse! Zó­zimo, você me tratou como se eu fosse uma prostituta! Eu sou esposa, Zózimo!
E o que a enfurecia é que só de lembrar-se da experiência abominável sentia-se gelar de volúpia.

*

Amado vira-se para Paulo Reis:
— Manja a barra e vê se sai alguém assustado. Se sair, você prende em nome do comissário!
Paulo Reis masca um palito de fósforo:
— Pode ir, meu chapa!
Amado Ribeiro sobe pela escada com Maria Aparecida. A moça explica:
— Meu marido, que é, Deus me perdoe!, mas é um ca­valo, saiu. Acho que foi falar com o advogado. E eu aproveitei.
Em cima, ela apresenta o repórter:
— Celina, aqui é o diretor da Última Hora.
A dona da casa toma um susto: “Eu leio muito a Última Hora. Mas tenha a bondade.” Não estava reconhecendo no repórter os traços do jornalista Samuel Wainer. Tosse ligeira­mente, na ânsia de ser uma anfitriã inexcedível:
— O senhor esteve na China, não foi?
E o Amado, com total naturalidade: “Passei por lá.” En­quanto Maria Aparecida, agoniada, quer continuar, D. Celina tem um susto retardatário:
— Mas olha! O senhor vai pôr o meu nome? Não põe meu nome! Pelo amor de Deus, não põe meu nome!
Amado Ribeiro jura que não vai pôr o nome de ninguém. Maria Aparecida começa a chorar:
— O meu marido, que tem ciúmes até de poste. O senhor não faz uma idéia. Ciúme é uma coisa; ciúme doentio, outra. E meu marido começou a desconfiar de Robson.
— Que Robson?
Teve de explicar: “O morto.” Amado Ribeiro exclama: “Ah, o Cadelão!” A outra continua:
— O rapaz ia num andar de cima, onde tem um amigo nosso, o Tameirão Curvelo. De vez em quando, passava lá por casa. Meu marido começou a dar o teco. Mas a Celina sabe, não sabe, Celina? Eu tive alguma coisa com o Robson? Diz. Pode dizer.
— Absolutamente.
Maria Aparecida exulta:
— Está vendo? E Celina é minha amiga, minha confi­dente. Mas onde é que eu estava? Ah, sim! O meu marido co­meçou a desconfiar e me disse: “Dou um tiro nesse sem-ver­gonha!”
Amado Ribeiro interrompe:
— Quer dizer que não havia nada mesmo?
Alterou-se:
— A Celina está aí de prova. Não havia nada. O senhor acredita em Deus?
— De vez em quando.
Ergueu o rosto duro:
— Quero que Deus me cegue se... Mas continuando: eu, hoje, estava em casa, muito bem, vendo televisão. Meu marido tinha descido para comprar cigarros. Batem a campai­nha, vou abrir e quase tropeço no cadáver. Pouco depois, entra meu marido. Veja a coincidência. Não é coincidência?
D. Celina secunda:
— Coincidência, batata!
A outra chora mais forte:
— Veja a minha situação. Um rapaz que, afinal, era meu amigo; que eu tinha visto, pouco antes, vivinho; e que, de repente, aparece morto, na minha porta. Quando eu olhei, disse: “Bom. Foi meu marido!” Tive tanta raiva, mas tanta, que... Eu não devia dizer isso. Mas vou dizer, de propósito.
A amiga quis contê-la: “Calma, calma!” Deu um repelão:
— Digo, ah digo! É o seguinte: ao ver o rapaz, eu tive um arrependimento, e que arrependimento!, de não ter traído meu marido com Robson. Se eu pudesse voltar atrás, juro ao senhor que... Mas ainda vou trair meu marido! Com o pri­meiro que apareça!

*

Quando Leleco e Janet passam pela porta do edifício, ia saindo o caixão de alumínio. O rapaz aperta o braço da moça:
— Janet, se eu fosse o assassino. Se eu fosse o assassino desse rapaz, você, Janet, me perdoaria? Ou você...
Estavam na esquina. Súbito, ele estaca. Sentiu uma brusca vertigem. Agarrou o braço da moça e quase a arrastou na sua queda.

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