terça-feira, 10 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXIX

E para Engraçadinha:
— Minha senhora, quer ter a bondade?
O juiz, perplexo, dá dois passos e estaca. As palpitações da úlcera são incontáveis. Engraçadinha segue o ginecologista. Silene acompanha os três com o olhar.
— Alguma novidade?
Por sua vez, Engraçadinha quer saber:
— Ela já pode se vestir?
E o médico:
— Um momento, minha senhora.
Passa o braço em torno do juiz. Suspira:
— Infelizmente, a menina, desculpe, minha senhora, e creia que lamento, mas a sua filha não é mais virgem.
Engraçadinha recua, atônita:
— Não é mais... Escuta, doutor: deve haver engano!
Dr. Odorico parece também estupefato:
— Tem certeza?
— Absoluta.
Engraçadinha agarra-o por um braço:
— Mas doutor! O senhor não se lembra daquele caso?
Volta-se para o juiz:
— Odorico, aquele caso, daquela menina! O médico tam­bém disse. Examinou e disse. Saiu no jornal. Disse que a menina não era mais virgem e era. Saiu no jornal. Eu li. A menina matou-se, eu li. Examinaram o cadáver e ficou provado que era virgem.
Delicado, mas firme, o Dr. Alceu repete:
— No caso presente, não há dúvida. E foi recente, minha senhora. Recentíssimo. Defloramento recente.
A palavra doeu-lhe na carne e na alma. Começa a chorar:
— Escuta, doutor. Um momento, Odorico. Doutor, o se­nhor vai me fazer um favor. O senhor tem filhas, doutor?
Inclinou-se:
— Duas, minha senhora.
E ela, fora de si:
— Muito bem. Então o senhor vai me fazer um favor. Faz, não faz, doutor?
Na sua polidez apiedada, inclina-se:
— Perfeitamente.
E ela:
— Doutor, examina outra vez, sim, doutor?
— Pois não. Eu vou lhe mostrar. Tenha a bondade.
Engraçadinha passa. Dr. Alceu pisca o olho para o juiz:
— O senhor também, Meritíssimo!
Engraçadinha estaca. Pergunta, vivamente:
— A minha filha vai ficar exposta?
Dr. Alceu, embora firme, incisivo, teve tato:
— Minha senhora, o pudor não cabe neste momento. Eu tenho alguma prática. O Dr. Odorico me conhece e sabe.
Dr. Odorico quis intervir:
— Escuta, Alceu...
E o outro:
— Um momentinho! Eu falo, minha senhora, em nome de 15 anos de clínica. Entende? Não é a primeira vez e...
Desesperada, interrompe:
— Mas minha filha é uma menina!
— Minha senhora, justamente por isso. É uma menina que deve ser amparada. Perfeitamente, amparada! E quem me­lhor do que um juiz? O Dr. Odorico está aqui, impessoalmente. Não é isso mesmo, Dr. Odorico? Impessoalmente... Não é o homem, mas a Lei, a Justiça.
Inflama-se. A veemência era quase impolidez, quase des­feita. Um pouco atônita, Engraçadinha deixa-se intimidar. O médico apontava o juiz como se este fosse o símbolo pessoal e maciço do Judiciário. Crispado, Dr. Odorico olha a mulher de sua paixão. Sentiu Engraçadinha como uma pobre e indefesa alma de Vaz Lobo. Experimenta uma pena brusca, uma compai­xão brutal.
Adianta-se:
— Olha, Alceu! Engraçadinha tem razão! Realmente, é uma situação desprimorosa!
Usou a expressão ‘desprimorosa’, embora tachando-a, inti­mamente, de inatual, retardatária e burlesca. (O Oto Lara não a usaria, jamais.)
Dr. Alceu vira-se, desconcertado:
— Não quer assistir?
E ele, abandonando-se ao impulso nobre:
— Absolutamente! Basta você, basta esta senhora, que é a mãe. Eu não teria função! — exaltou-se, num repelão ainda mais violento: — Seria uma indignidade!
De fato, não se perdoava o ter premeditado, com o mé­dico, aquela miséria. Repetia para si mesmo: “Que direito teria de olhar? Por que e a troco de quê?” Nervoso, arquejante da própria dignidade, foi taxativo:
— Eu não devia estar nem aqui. Devia estar lá fora, na sala de espera. E é pra lá que eu vou, neste momento. Com licença, Engraçadinha.
Caminha na direção da porta. Volta-se, ainda, antes de sair:
— Só voltarei quando esta menina estiver composta.
Ninguém mais espantado do que o juiz com os próprios escrúpulos.

*

Veio sentar-se na sala de espera. E, ainda excitado, pensa: “O ser humano é um débil mental imprevisível. Eu entro aqui como um sátiro...” Sim, entrara como um sátiro que ele pró­prio classificava de imundo; e saía como um homem de bem. Apanha um jornal, que estava abandonado na cadeira ao lado. Diário de Notícias, janista furioso. No suplemento feminino, viu uma senhora de peruca. E, então, fez uma reflexão de enor­me sarcasmo: todas as senhoras que usam peruca deviam ser internadas no SAM para uma recuperação problemática. Ele próprio riu: “Boazinha, boazinha.” Sua visita ao Oto Lara servira-lhe de irresistível afrodisíaco espiritual. Sentia-se mais lúcido e agudo. Apanha outro caderno do Diário de Notícias e lá vê o artigo dominical do Gustavo Corção. Oh, esse homem, esse católico apenas irritado e sem paixão! Oh, essa virtude sem amor! Cada artigo do Corção era uma golfada ácida na cara do próximo.
Pensa:
— Esse homem compromete os valores que defende. O sujeito lê o Corção e tem vontade de roubar galinhas!
Neste instante, abre-se a porta e aparece Dr. Alceu:
— Pode vir.
Dr. Odorico desvencilha-se da golfada ácida do Corção. Ergue-se. Pergunta ainda, quase lúgubre:
— A menina já está composta?
— Já.
E ele:
— Agora, sim.
O que mais o surpreendia é que não estava sendo hipócri­ta. Achava ou passara a achar, sinceramente, que teria sido uma indignidade. “A mulher que sofre um exame ginecológico é quase uma violada. E, ainda por cima, queriam que, além do médico, mais duas pessoas, ora!” Entra, mais impertigado do que nunca. E pensava: “Sou um homem de bem. Se não fosse um homem de bem, teria ficado de olho vivo.” Sentada, Engra­çadinha chora. Mas foi ao ver Silene saindo do toalete, Silene com o implacável frescor dos seus 14 anos, foi ao ver Silene, dizíamos, que o Dr. Odorico experimenta um súbito e pesado arrependimento. Inclina-se para Engraçadinha, mas repete, de si para si: “Como é que eu fui perder essa preciosidade? Que bicho me mordeu?”
Depois de assoar-se, Engraçadinha ergue o rosto:
— É verdade, sim! É verdade, oh meu Deus!
Na ausência do juiz, o Dr. Alceu fora meticulosamente didático:
— A senhora está vendo? Aqui. Isso quer dizer que...
Silene começara a choramingar, na sua pusilanimidade mansa de menina: “Eu não fiz nada.” Dr. Alceu iluminava com uma pequenina lâmpada:
— Está vendo?
Agora, o Dr. Odorico, na mágoa de ter perdido a cena, pôs a mão no ombro de Engraçadinha:
— Calma, calma!
Súbito, Engraçadinha tem um repelão:
— Minha vontade é te dar na cara, sua!...
Rapidamente, Dr. Odorico coloca-se entre as duas:
— Que é isso? Não faça isso!
O Dr. Alceu assiste, imóvel, de uma maneira impessoal, desinteressada. Sente apenas o tédio cruel de um episódio que se repetira, na sua clínica, umas quinhentas vezes. Sugere, com a vontade reprimida de bocejar: “Agora é apurar quem foi, quem não foi. É chamar à responsabilidade. Trata-se de uma menor. Tem 15 anos? 14. Pois é: menor.” Engraçadinha agarra, de novo, o braço da filha:
— Diz quem foi ou te arrebento!
Dr. Odorico puxa Engraçadinha:
— Escuta! Um momento, um momento! — baixa a voz: — O local não é próprio. Vamos discutir lá fora, em casa, vamos!
O médico vem levá-los até a porta. Engraçadinha aperta a mão do Dr. Alceu:
— Muito obrigada e desculpe. Naturalmente o senhor não tem culpa e...
O outro curva-se:
— Disponha. Quando quiser; segundas, quartas e sextas. Muito prazer.
Quando chegam embaixo, Janet vem passando. Pára. Há, de parte a parte, muita festa: “Oh, como vai? Há quanto tem­po!” Dr. Odorico a conhecia, ligeiramente. Vira Janet, uma vez, numa festinha, em casa de um desembargador. Cumpri­menta a moça gravemente. Considera: “Bonita pequena. Parece equilibrada.” Ele achava, porém, que uma pequena aragem desfaz qualquer equilíbrio feminino.
Janet despedia-se. Engraçadinha ri, vermelha, sem ter de quê:
— Olha: aparece, ouviu?
Só no táxi é que, crispando a mão no braço da filha, ela pergunta: “Quem foi?” Silene olha a mãe de lado. Balbucia:
— Tinhorão.

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