Foi Dr. Odorico quem chamou o táxi (mais uma despesa!). Os três entraram e o juiz fala para o chofer, com uma efusão de perdulário:
— Vaz Lobo!
O motorista teve um escrúpulo:
— Mas é Zona Sul!
Fazê-las saltar, por motivo confesso de economia, seria desprimoroso (novamente a palavra fatal). Há, nele, uma brevíssima vacilação. “Vou à falência”, pensa. Mas foi taxativo:
— Não faz mal! Adiante!
O carro partiu. Dr. Odorico cochicha para Engraçadinha:
— Vamos falar baixo, por causa do...
Com o olhar, indica o chofer. Mas Engraçadinha não se controla. Com palpitações, faltas de ar, dá um beliscão em Silene. Esta pula no assento:
— Ai, mamãe!
Dr. Odorico intervém: “Não faça isso!” Novamente indica o chofer: “Aqui, não.” Silene tem vontade de dizer um nome feio: “Se mamãe soubesse a raiva que me dá beliscões, puxões de orelha!” Engraçadinha espeta a filha com o cotovelo:
— Quem foi?
Quando ouviu falar em Tinhorão, perdeu a fala. Estupefata, vira-se para o juiz. O espanto do Dr. Odorico foi também imenso. Engraçadinha repete, para si mesma: “Tinhorão?” Segura a filha pelo braço:
— Quem é?
Responde, com uma inocência afetada:
— Um rapaz.
E a mãe:
— Sua burra! Que é rapaz, eu sei! E, de mais a mais, isso não é nome!
— Apelido.
— Quero o nome.
Suspira:
— Não sei.
Balbucia:
— Não sabe?
— Não.
Aquilo a enfurece:
— Quer dizer que... — volta-se, impulsivamente, para o juiz: — Está vendo, Odorico? Se é possível? Olha que eu te...
Viajando lado a lado com a Engraçadinha, sentindo a sua coxa, ele mergulhava num estado de exaltação, digamos, dionisíaca. E, além disso, o preço da bandeirada era um estímulo a mais. Sóbrio e incisivo, tratou de aquietá-la:
— Não se exalte! Quem sabe se Tinhorão não é nome? Não há sujeitos que se chamam Varanda, Passarinho, Cinésio? Eu vejo na lista telefônica. Pode deixar.
Ela, porém, estava uma fúria: “É mentira! Está mentindo!” Novamente, Dr. Odorico foi, ali, o homem que apazigua, que consola: “Olha, Engraçadinha, vamos fazer o seguinte: eu interrogo e...” Engraçadinha, chorando, tira o lenço da bolsa. O juiz senta-se entre as duas. Promete a si mesmo: “Hoje, vou, de qualquer maneira, ao Rei da Voz. Falo com o Medina.”
Segura a mão de Silene e pigarreia:
— Vamos por partes. Onde é que ele mora? Esse rapaz. Mora onde?
— Não sei.
Mas o Dr. Odorico, que possuía um métier bastante razoável de interrogatório, não se deixou impressionar pela primeira negativa. Sabia que, nessas ocasiões, a mulher começa mentindo. Insiste, com uma ternura de avô:
— Trabalha onde?
E a menina:
— Não sei onde trabalha, não sei onde mora...
Dr. Odorico faz um risonho espanto. Refletiu: “Bem cinicazinha!” E continua:
— Meu anjo, espera lá! Presta atenção: o que houve entre vocês exige uma certa intimidade. É evidente que se fosse um desconhecido... Mas escuta, Silene, escuta! Você está com medo, é isso? De quê? Medo de quê?
Engraçadinha não se contém:
— Menina, eu te dou uma surra de vara!
Com Dr. Odorico entre as duas, Silene responde:
— Mamãe, eu não sei! Juro, mamãe!
O juiz atalha para Engraçadinha:
— Não se exalte! Ela diz pra mim. Silene, escuta: nós aqui só queremos teu bem. Você é menor, compreende? E esse Tinhorão, quero crer seja solteiro. É solteiro?
— Não sei.
Por um momento, ele a olhou, em silêncio. Inclinava-se a acreditar que a surra seria a solução. Pensa: “Menina dissimulada, mau caráter!” Ao mesmo tempo, pensava nesse desconhecido que tivera nos braços aquela pequena tão linda. O nome (ou apelido) do culpado tinha qualquer coisa de sinistro. Os únicos tinhorões que ele conhecia eram os que se plantam nas latas de banha Rosa, de Aldeia Campista para baixo.
Quase ao chegar a Vaz Lobo, Engraçadinha faz-lhe a ameaça:
— Vou contar a teu irmão!
Arremessou-se:
— Não, mamãe, não! A Durval, não!
Soluçava. Dr. Odorico tratou de tirar partido do desespero:
— E agora? Você diz?
Passa a mão no nariz:
— Digo.
Baixa a voz:
— Esse rapaz? O que é que ele faz? Deve ter uma profissão...
Disse:
— Jornalista.
A conquista dessa informação envaideceu Dr. Odorico como um êxito pessoal. Respira fundo: “Meio caminho andado.” Esfrega as mãos, numa satisfação profunda:
— Engraçadinha, não há mais problema. Eu tenho relações em jornais. O Wilson Figueiredo, rapaz de talento, meu amigo, deve conhecer o sujeito. Não acredito que haja na imprensa brasileira outro Tinhorão.
O carro vinha chegando em Vasconcelos Graça. Dr. Odorico espiou o taxímetro: era uma quantia astronômica. Pensa: “Ladrões!” Engraçadinha ainda explode:
— Ou esse Tinhorão casa ou leva um tiro!
*
Quando Janet passara pela porta do médico, e vira os três saindo, ia justamente ao encontro de Leleco. O rapaz telefonara, cerca de meio-dia:
— Janet, sou eu! Olha!
E ela:
— Estou ouvindo.
Continuou com a voz pesada, a articulação difícil: — Precisava falar contigo, Janet. Você pode se encontrar comigo? Agora?
Falava com tanta angústia que, impressionada, perguntou: “Alguma novidade?” Balbuciou: “Só pessoalmente.” Ela combinara com uma turma de colegas uma visita ao Museu de Arte Moderna. Vacila:
— Estão me esperando, lá.
Perdeu a cabeça:
— Janet, é um assunto de vida ou de morte. Só você pode me salvar, só você. Nem minha mãe pode fazer nada por mim. Só você.
— Está bem. Vou. Onde?
Respira forte:
— Tem uma leiteria no Largo da Carioca. Aquela. Vou pra lá agora. Te espero lá.
Janet ainda saltou na porta do Museu de Arte Moderna. Avisou aos amigos: “Fica pra outra vez. Hoje, eu não posso.” Insistiram: “Vem, anda, vem. Deixa de ser mascarada.” O Lázaro, o rapaz da véspera, ainda amargo da ressaca, faz-lhe a pergunta: “Como vai a Sônia, do Raskolnikolff?” Fez um espanto divertido: “Detesto assassinos.” Despediu-se, com medo de chegar atrasada. Cruzara com Engraçadinha. Falam-se rapidamente. Janet deduz: “Estão frias comigo. Por quê?” E não lhe saía da cabeça a imagem de Sônia, de Crime e Castigo.
Quando chegou na leiteria, Leleco já a esperava na última mesa. Ergueu-se ao vê-la. Sentando-se, Janet imagina: “Está com febre.” Todavia, a mão do rapaz estava tão fria! Realmente, Leleco sente uma espécie de febre gelada. Vem o garçom e Janet olha, distraída, o menu. Diz:
— Mineral.
— Não tem.
— Então, guaraná.
Sai o garçom. O rapaz não fala nada. “Se eu estivesse sozinho com Janet estaria chorando.” Ela baixa a voz:
— Está doente?
O garçom chegava com o guaraná. Leleco vira o copo: “Eu não quero.” Janet é servida. Assim que o homem se afasta, Leleco começa:
— Janet, eu tenho uma mãe. Adoro minha mãe. Tenho também uma irmã e uma namorada, Silene, que você conhece. Mas eu não diria a ninguém... Escuta, Janet: não diria a ninguém o que eu vou dizer a você. Nem à minha mãe.
Por cima da mesa, segura a mão da moça. Ela sente, de uma maneira obscura, que o único homem realmente belo é aquele que está perdido. Há no olhar de Leleco uma doçura desesperadora. Dir-se-ia um menino batido, um menino que...
Sem desfitá-la, Leleco vai dizendo:
— Eu matei, Janet. Eu sou assassino.
Com o lábio inferior tremendo, e quase sem voz, pergunta:
— Você?
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