quarta-feira, 11 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXX

Foi Dr. Odorico quem chamou o táxi (mais uma despesa!). Os três entraram e o juiz fala para o chofer, com uma efusão de perdulário:
— Vaz Lobo!
O motorista teve um escrúpulo:
— Mas é Zona Sul!
Fazê-las saltar, por motivo confesso de economia, seria desprimoroso (novamente a palavra fatal). Há, nele, uma bre­víssima vacilação. “Vou à falência”, pensa. Mas foi taxativo:
— Não faz mal! Adiante!
O carro partiu. Dr. Odorico cochicha para Engraçadinha:
— Vamos falar baixo, por causa do...
Com o olhar, indica o chofer. Mas Engraçadinha não se controla. Com palpitações, faltas de ar, dá um beliscão em Silene. Esta pula no assento:
— Ai, mamãe!
Dr. Odorico intervém: “Não faça isso!” Novamente in­dica o chofer: “Aqui, não.” Silene tem vontade de dizer um nome feio: “Se mamãe soubesse a raiva que me dá beliscões, puxões de orelha!” Engraçadinha espeta a filha com o coto­velo:
— Quem foi?
Quando ouviu falar em Tinhorão, perdeu a fala. Estupe­fata, vira-se para o juiz. O espanto do Dr. Odorico foi também imenso. Engraçadinha repete, para si mesma: “Tinhorão?” Segura a filha pelo braço:
— Quem é?
Responde, com uma inocência afetada:
— Um rapaz.
E a mãe:
— Sua burra! Que é rapaz, eu sei! E, de mais a mais, isso não é nome!
— Apelido.
— Quero o nome.
Suspira:
— Não sei.
Balbucia:
— Não sabe?
— Não.
Aquilo a enfurece:
— Quer dizer que... — volta-se, impulsivamente, para o juiz: — Está vendo, Odorico? Se é possível? Olha que eu te...
Viajando lado a lado com a Engraçadinha, sentindo a sua coxa, ele mergulhava num estado de exaltação, digamos, dio­nisíaca. E, além disso, o preço da bandeirada era um estímulo a mais. Sóbrio e incisivo, tratou de aquietá-la:
— Não se exalte! Quem sabe se Tinhorão não é nome? Não há sujeitos que se chamam Varanda, Passarinho, Cinésio? Eu vejo na lista telefônica. Pode deixar.
Ela, porém, estava uma fúria: “É mentira! Está men­tindo!” Novamente, Dr. Odorico foi, ali, o homem que apa­zigua, que consola: “Olha, Engraçadinha, vamos fazer o se­guinte: eu interrogo e...” Engraçadinha, chorando, tira o lenço da bolsa. O juiz senta-se entre as duas. Promete a si mesmo: “Hoje, vou, de qualquer maneira, ao Rei da Voz. Falo com o Medina.”
Segura a mão de Silene e pigarreia:
— Vamos por partes. Onde é que ele mora? Esse rapaz. Mora onde?
— Não sei.
Mas o Dr. Odorico, que possuía um métier bastante ra­zoável de interrogatório, não se deixou impressionar pela pri­meira negativa. Sabia que, nessas ocasiões, a mulher começa mentindo. Insiste, com uma ternura de avô:
— Trabalha onde?
E a menina:
— Não sei onde trabalha, não sei onde mora...
Dr. Odorico faz um risonho espanto. Refletiu: “Bem cinicazinha!” E continua:
— Meu anjo, espera lá! Presta atenção: o que houve en­tre vocês exige uma certa intimidade. É evidente que se fosse um desconhecido... Mas escuta, Silene, escuta! Você está com medo, é isso? De quê? Medo de quê?
Engraçadinha não se contém:
— Menina, eu te dou uma surra de vara!
Com Dr. Odorico entre as duas, Silene responde:
— Mamãe, eu não sei! Juro, mamãe!
O juiz atalha para Engraçadinha:
— Não se exalte! Ela diz pra mim. Silene, escuta: nós aqui só queremos teu bem. Você é menor, compreende? E esse Tinhorão, quero crer seja solteiro. É solteiro?
— Não sei.
Por um momento, ele a olhou, em silêncio. Inclinava-se a acreditar que a surra seria a solução. Pensa: “Menina dissi­mulada, mau caráter!” Ao mesmo tempo, pensava nesse des­conhecido que tivera nos braços aquela pequena tão linda. O nome (ou apelido) do culpado tinha qualquer coisa de si­nistro. Os únicos tinhorões que ele conhecia eram os que se plantam nas latas de banha Rosa, de Aldeia Campista para baixo.
Quase ao chegar a Vaz Lobo, Engraçadinha faz-lhe a ameaça:
— Vou contar a teu irmão!
Arremessou-se:
— Não, mamãe, não! A Durval, não!
Soluçava. Dr. Odorico tratou de tirar partido do deses­pero:
— E agora? Você diz?
Passa a mão no nariz:
— Digo.
Baixa a voz:
— Esse rapaz? O que é que ele faz? Deve ter uma pro­fissão...
Disse:
— Jornalista.
A conquista dessa informação envaideceu Dr. Odorico como um êxito pessoal. Respira fundo: “Meio caminho an­dado.” Esfrega as mãos, numa satisfação profunda:
— Engraçadinha, não há mais problema. Eu tenho rela­ções em jornais. O Wilson Figueiredo, rapaz de talento, meu amigo, deve conhecer o sujeito. Não acredito que haja na im­prensa brasileira outro Tinhorão.
O carro vinha chegando em Vasconcelos Graça. Dr. Odo­rico espiou o taxímetro: era uma quantia astronômica. Pensa: “Ladrões!” Engraçadinha ainda explode:
— Ou esse Tinhorão casa ou leva um tiro!

*

Quando Janet passara pela porta do médico, e vira os três saindo, ia justamente ao encontro de Leleco. O rapaz telefonara, cerca de meio-dia:
— Janet, sou eu! Olha!
E ela:
— Estou ouvindo.
Continuou com a voz pesada, a articulação difícil: — Precisava falar contigo, Janet. Você pode se encontrar comigo? Agora?
Falava com tanta angústia que, impressionada, pergun­tou: “Alguma novidade?” Balbuciou: “Só pessoalmente.” Ela combinara com uma turma de colegas uma visita ao Museu de Arte Moderna. Vacila:
— Estão me esperando, lá.
Perdeu a cabeça:
— Janet, é um assunto de vida ou de morte. Só você pode me salvar, só você. Nem minha mãe pode fazer nada por mim. Só você.
— Está bem. Vou. Onde?
Respira forte:
— Tem uma leiteria no Largo da Carioca. Aquela. Vou pra lá agora. Te espero lá.
Janet ainda saltou na porta do Museu de Arte Moderna. Avisou aos amigos: “Fica pra outra vez. Hoje, eu não posso.” Insistiram: “Vem, anda, vem. Deixa de ser mascarada.” O Lá­zaro, o rapaz da véspera, ainda amargo da ressaca, faz-lhe a pergunta: “Como vai a Sônia, do Raskolnikolff?” Fez um es­panto divertido: “Detesto assassinos.” Despediu-se, com medo de chegar atrasada. Cruzara com Engraçadinha. Falam-se ra­pidamente. Janet deduz: “Estão frias comigo. Por quê?” E não lhe saía da cabeça a imagem de Sônia, de Crime e Castigo.
Quando chegou na leiteria, Leleco já a esperava na úl­tima mesa. Ergueu-se ao vê-la. Sentando-se, Janet imagina: “Está com febre.” Todavia, a mão do rapaz estava tão fria! Realmente, Leleco sente uma espécie de febre gelada. Vem o garçom e Janet olha, distraída, o menu. Diz:
— Mineral.
— Não tem.
— Então, guaraná.
Sai o garçom. O rapaz não fala nada. “Se eu estivesse sozinho com Janet estaria chorando.” Ela baixa a voz:
— Está doente?
O garçom chegava com o guaraná. Leleco vira o copo: “Eu não quero.” Janet é servida. Assim que o homem se afas­ta, Leleco começa:
— Janet, eu tenho uma mãe. Adoro minha mãe. Tenho também uma irmã e uma namorada, Silene, que você conhece. Mas eu não diria a ninguém... Escuta, Janet: não diria a ninguém o que eu vou dizer a você. Nem à minha mãe.
Por cima da mesa, segura a mão da moça. Ela sente, de uma maneira obscura, que o único homem realmente belo é aquele que está perdido. Há no olhar de Leleco uma doçura desesperadora. Dir-se-ia um menino batido, um menino que...
Sem desfitá-la, Leleco vai dizendo:
— Eu matei, Janet. Eu sou assassino.
Com o lábio inferior tremendo, e quase sem voz, per­gunta:
— Você?

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