segunda-feira, 9 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXVIII

De manhã, Silene ainda fez uma tentativa:
— Mamãe, eu precisava ir ao colégio, hoje!
As outras filhas tinham acabado de sair para o trabalho. O último a tomar café fora Durval (estava no quarto). Tirando a toalha, Engraçadinha nem olha a filha:
— Você fica!
Silene dá um muxoxo:
— Por quê?
E a mãe:
— Vou ao médico. Quero que você vá comigo.
Ainda geme:
— Puxa vida!
Durval sai do quarto, ainda dando o nó na gravata:
— Mamãe, sabe se o Dr. Odorico falou com o Benício?
Engraçadinha põe a toalha na gaveta:
— Fala, hoje, sem falta!
Durval veste o paletó: “Tenho que ir chispado. Vê que horas são? Tarde pra chuchu!” Beija Engraçadinha, de passa­gem; e ainda brinca:
— Velha enxuta!
Engraçadinha ergue o rosto, com uma viva doçura no olhar:
— Deus te abençoe!
Quando ele passou, com as suas costas maciças, o perfil irretocável de John Barrymore, uma vizinha do lado, senhora portuguesa, suspira: “Bonito como uma virgem!” Até à hora do médico, Engraçadinha só pensou no que acontecera de madru­gada. Ainda bem que Silene era menor e Les Amants fora proi­bido até 18 anos. Suspira para si mesma: se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém. Pensa: “Se minha filha soubesse. Minha filha ou Odo­rico. Se o Odorico soubesse o que houve, esta madrugada, entre mim e Zózimo!” Pouco depois, a tomar banho, teve uma brusca vergonha (e um agudo sentimento de culpa) da própria nudez. Houve um momento em que, passando o pente, diante do espe­lho, saltou-lhe uma reflexão pânica: “Desde que acordei, até agora, não pensei no Senhor. Nem fiz a oração na mesa.”
Antes de partir (Silene já estava pronta) perguntou brus­camente:
— Qual é a tua calça?
— A azul.
— Põe outra, anda, põe outra. Vai ao médico, põe outra.
Pára, meio insolente, com as duas mãos nos quadris:
— Quem vai ao médico? Eu ou a senhora?
Bate no braço da filha:
— Ele te examina também. Anda, Silene! Tira essa e põe a cor-de-rosa, aquela, põe!
Silene obedece. Pouco depois, saem as duas. Silene vai pensando: “Essa piada do médico, que mágica besta!” A me­nina não sabia de nada. Dr. Odorico recomendara muito: “Olha! Ela não pode saber. Não convém.”

*

Eram dez para as duas quando Engraçadinha e Silene chegaram na porta do Dr. Alceu. Gravíssimo, quase fúnebre, Dr. Odorico inclina-se diante de Engraçadinha, beija-lhe a mão. Em seguida, vira-se para Silene e, numa ternura grave, dá-lhe um tapinha na face. Engraçadinha diz para a filha:
— Minha filha, vai ver aquela vitrina, ali, vai, minha filha!
Um pouco inquieta, Silene afasta-se. Engraçadinha, muito nervosa, baixa a voz:
— Ela não sabe, nem desconfia — suspira. — Tenho remorso, vergonha, de fazer isso com minha filha. Mas como é preciso, não é mesmo?
Dr. Odorico pigarreia:
— Claro e olha: hoje, não era dia de consulta, mas o Dr. Alceu veio expressamente, e outra coisa: estarei no consul­tório. Sem olhar, claro. Mas a minha presença é indispensável — e repete, com uma cintilação no olhar: — Indispensável!
Olhando-o, aflita, Engraçadinha está pensando: “Se ele soubesse o que houve, entre mim e Zózimo, esta madrugada!”
Dr. Odorico faz um gesto largo:
— Vamos subir?
Engraçadinha chama a filha. Os três começam a subir. Dr. Odorico, que vinha atrás, avisa: “Segundo andar.” Ele vai pensando: “Se o Oto Lara estivesse aqui havia de me chamar de ‘fauno do Judiciário’!” E, apesar de toda a sua deliciosa angústia, chegou a sorrir. No primeiro andar, arqueja de uma maneira humilhante. Olhou, com terror, para o novo lance de escada. Engraçadinha pergunta:
— Cansado?
Teve pudor da própria dispnéia. Seu sorriso foi um esgar miserável:
— Absolutamente.
O coração dava batidas furiosas. Por sua vez, a úlcera tinha palpitações desesperadas. Fez, para si mesmo, a reflexão de humor lúgubre: “Vou chegar lá em cima de rabecão!” E a sua vontade era desvencilhar-se de todos os escrúpulos e pudo­res e sentar-se num degrau redentor. “Sou um velho”, pensava. No meio da escada, apoiava-se no corrimão. O pior é que já sentia as pernas bambas e a vista turva. Parecia-lhe meio des­respeitoso para o Judiciário que uma escada fosse tão árdua para um juiz como para todo o mundo.
Quatro ou cinco degraus mais acima, Engraçadinha vira-se um momento:
— Cansado?
Gemeu como um afogado:
— Um pouco.
Quase asfixiado, queria acreditar que nenhum amor valia os dez ou doze degraus restantes. Ao mesmo tempo, concluía que aquele esforço dava-lhe o direito de acompanhar qualquer exame ginecológico. Engraçadinha retrocede. Pergunta, baixo, quase com ternura:
— Sentindo alguma coisa?
Balbucia:
— Não.
Dr. Odorico encosta-se no corrimão. Mas a verdade é que se sentia um moribundo irremediável. Estava tão pálido, tão desfigurado, que, sem pensar, Engraçadinha passa o próprio lenço (com infinita delicadeza) no rosto do juiz. Esse gesto, de uma feminilidade tão delicada, fez-lhe um bem desesperador. Teve, então, forças para sorrir. Pensa: “Essa mulher não existe!” No alto, Silene espera.
Engraçadinha pergunta:
— Pode subir agora?
Sem desfitá-la, e numa gratidão feroz, decide: “Juro que, ao sair daqui, irei ao Rei da Voz, comprar a geladeira. Vou falar com o Medina; me apresento como juiz e arranco essa geladeira.” E mesmo que, numa eventualidade improvável, o Medina não abrisse mão da entrada, mesmo assim ele encheria o cheque na mesma hora e mandaria levar a Sheer Look no mesmo dia.
Disse, redimido:
— Vamos.
E ela, ansiosa:
— Devagar.
Veio a seu lado, passo a passo. Quando chegaram lá em cima, Dr. Odorico experimenta uma brutal euforia. “Ah, que delícia não ter mais degrau nenhum para subir!” O médico, que sentira passos na escada, abria a porta. Saudava-o, com a sua efusão exagerada e plebéia:
— Meritíssimo!

*

O Dr. Alceu vira-se para Silene. Pensa: “Onde é que o Meritíssimo me foi descobrir esse material?” Com uma ternura risonha, pergunta:
— É essa a nossa amiguinha?
Dr. Odorico está novamente fúnebre:
— Exatamente.
Silene vira-se para a Engraçadinha:
— Eu?
E o Dr. Alceu:
— A senhora quer acompanhá-la? Ali. O banheiro é ali. A senhora prepara a menina, sim?
Silene recua, ligeiramente: “Mas sou eu? Não é a senhora?” Engraçadinha a puxa pelo braço:
— Vamos.
Entram no toalete. Silene quer reagir: “Mas eu não tenho nada!” Engraçadinha baixa a voz (começa a sentir pena da filha):
— Tira a calça, tira, minha filha!
Encosta-se na parede. Balbucia: “Precisa?” O medo dá-lhe uma contração de náusea. Diz para si mesma: “Mas ninguém sabe nada!” E como não se decide, Engraçadinha quer levantar o seu vestido. Transida, foge com o corpo:
—- Eu mesma tiro.
Pouco depois saem as duas. O médico está acabando de colocar a luva. Ri para a menina:
— Chega aqui, figurinha difícil de Bala Ruth!
Desesperada, Silene olha para a Engraçadinha: “Eu tenho vergonha!” E a mãe:
— Minha filha, é preciso, Silene!
E o Dr. Odorico, grave:
— Olha! Eu vou ficar ali, de costas para cá.
Dr. Alceu segura a toalha pelas extremidades e a abre diante da menina. Explica ainda para Engraçadinha: “Eu dei folga à enfermeira porque o Meritíssimo pediu a máxima dis­crição!” Afastando-se, Dr. Odorico diz, para si mesmo: “Boa situação para o Oto Lara explorar num conto!” Lembrava-se de outros rapazes divertidos, do jornalismo, que haviam de vibrar com o episódio. O Batista de Paula, o Xavier, o Luís Renato e, em suma, toda uma rapaziada moderna e jucunda. Ele, porém, começava a ofegar como se estivesse subindo outra escada. De costas para a cena, Dr. Odorico repetia: “Qualquer homem de bem que estivesse aqui havia de querer dar uma olhada. Eu sou humano e nada mais!” E imaginava o incidente descrito pela ficção de Oto Lara.
Silene já está na mesa. Silêncio. Engraçadinha, ao lado, segura a mão da filha. Súbito, pensa: “Eu devia estar orando.” Dr. Alceu ergue-se do banquinho:
— Dr. Odorico, quer vir aqui, por obséquio?

Nenhum comentário: