sábado, 7 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXVI

Quando Leleco caiu, houve um corre-corre na esquina. Uma senhora grávida, da vizinhança, que ia passando, com o marido, assustou-se e quis fugir. Tropeçou nas pernas do pró­prio marido, ia caindo também. Deu um grito. Ao mesmo tem­po, Janet curva-se sobre o rapaz:
— Leleco!
Ele gemia:
— Janet!
Juntou gente. Na porta do edifício, o comissário Piragibe, de branco, paletó aberto, o suor farto e grosso, avisava ao guar­da civil, que o acompanhava:
— Você conhece o Amado Ribeiro?
O guarda, um crioulo gigantesco, estaca:
— O tal?
— O da Última Hora, sim. Já sabe. Se ele se meter a besta, você baixa o pau, mas baixa mesmo. Comigo jornalista não folga porque eu sou pior que o falecido Dulcidio.
Neste momento, viu o ajuntamento, mais adiante. Estica o pescoço:
— Olha briga ali!
Os dois correm, guarda e comissário. Piragibe abre pas­sagem, aos empurrões. Leleco está sentado; Janet, de joelhos, ao lado, pergunta:
— Está melhor?
Ofegante, responde:
— Janet, eu não matei ninguém, Janet!
E ela, baixo (ainda uma vez, ele sente que a menina o salvava com a sua ternura):
— Escuta: eu chamo um táxi. Vai pra casa de táxi. Eu chamo.
O comissário Piragibe põe-se de cócoras:
— Como é o seu nome?
Crispa-se:
— Por quê?
Ainda sem entender, percebe o perigo, a ameaça. Instintivamente, procura Janet com o olhar. Esta é que se interpôs. Sentindo o policial, quis explicar:
— Desmaiou.
Com uma suspeita aguda e cruel, o comissário encara duramente Janet:
— Quando eu cheguei, ele estava dizendo... Que negó­cio é esse?
Leleco sentia-se tão fraco, indefeso, tão perdido, que olha em torno. Por um momento, teve a idéia de correr, dentro da noite, numa fuga pânica. Pensa: “Se me derem um tapa, eu confesso tudo!” Sempre ouvira dizer que lá na polícia batem nos presos, torturam, põem no pau-de-arara.
O comissário não tira os olhos de Janet. Faz, instantanea­mente, suas deduções: “Bonitinha, família, cheirosa, mas essas é que são as piores.” Tinha o cinismo do métier. Janet continua:
— Estava na festa.
Piragibe atalha:
— Bebeu?
Teve uma brevíssima hesitação. Sorriu, numa afetação de candura:
— Um pouco. Sim, bebeu!
Ela própria não saberia explicar a mentira. Leleco bebera, em toda a noite, um único e puríssimo copo d’água filtrada. O comissário, que estava de cócoras, ergueu-se. Janet dizia para si mesma: “Menti, como se ele fosse culpado.” Piragibe coça a cabeça, descontente, confuso:
— Em todo o caso — decide: — deixa o nome e o en­dereço. Convém deixar.
Foi ainda Janet que falou:
— Leleco, aliás, Osvaldo... — pergunta a Leleco — Soares o quê, Leleco?
Respondeu, de olhos baixos:
— Soares Lima.
O Paulo Reis, da Última Hora, ergue a máquina, cantaro­lando: “Samariquinha, o seu gato deu...”
Estoura o flash. O comissário pula, furioso:
— Logo vi! A Última Hora! — rosna: — Esse pasquim!
Paulo Reis bate na ponta do boné de jóquei:
— Como é, Piragibe, tudo azul?
Fala e, ao mesmo tempo, faz uma ginga que enfurece a autoridade. Passando o lenço na cara lustrosa, Piragibe arqueja:
— Vocês lá de Última Hora! Olha aqui, Paulo Reis: um dia é da caça, outro do caçador!
Volta-se para Janet. Ensopa agora o lenço na própria nuca. Janet e mais outros do grupo cercam Piragibe:
— Esteve na festa, sim! É bom rapaz! Bebeu!
Piragibe não se esquece da ginga insolente do Paulo Reis. E, sobretudo, não admitia que aquele moleque (“Moleque, sim!”) cantasse para a polícia a tal melodia obscena, que come­çava assim: “Samariquinha, o seu gato deu!” Embolsa o ca­derno com o nome e endereço do Leleco e afasta-se, prague­jando: “Só um tiro na cara!”

*

Deitam-se. Engraçadinha o empurra:
— Chega pra lá!
Zózimo afasta-se para a outra extremidade:
— Escuta, meu anjo!
Corta:
— Não quero conversa! E agora, meu Deus, com que cara vou olhar para minhas filhas!
E ele:
— Tão natural!
Sentou-se na cama:
— Natural? Você diz que é natural? Mas olha! Eu não sou como certas mulheres. Não sou. Vocês trazem pra casa o que aprendem na rua!
Zózimo não fala. Sonha, de olhos escancarados, no escuro do quarto. Sentia uma dessas felicidades absurdas e mortais: “Se eu morresse agora”, eis o que pensava. Morreria pensan­do: “Agora, posso morrer!”
Os dois passaram o resto da noite, lado a lado, em claro. Ela pensava: “Zózimo percebeu. Deve ter percebido. Houve um momento, em que eu...” Ah, o prazer vil!
Engraçadinha levantou-se bem cedinho. Pouco depois, na cozinha, lavando o pano do café, não se livrava do sentimento de culpa. Encheu a panela e, por um momento, ficou parada, refletindo:
— Imagine se o Dr. Odorico, que quer se converter. Ima­gine, se ele sabe, se desconfia que eu...
Pondo a água no fogo, tem uma reflexão cruel: “Estou me sentindo uma prostituta.” Gradua o fogo e faz uma breve prece, junto ao fogão.

*

Às 9 horas, o Dr. Odorico toma café. A mulher, sentada na outra extremidade da mesa, dá muxoxo. Estava descobrindo formigas no açucareira: “Pipocas!” Vai lá dentro, volta. Dr. Odorico tinha uma decidida preferência por pão com manteiga. Achava mesmo que pão com manteiga é uma comida bíblica. Súbito, a esposa faz-lhe a pergunta:
— Você sabe há quanto tempo eu não sou sua mulher?
Toma um choque. Pigarreia: “Como assim?” E ela, fremente (pertencia a uma família de nervosos, de irritados):
— Não se faça de tolo! Você ouviu! Ouviu perfeitamente! — toma fôlego e anuncia, triunfante: — Há dois anos que eu não sou sua mulher!
Dr. Odorico enxuga a manteiga nos lábios. Era verdade: dois anos! Sentiu que, como marido, estava numa situação de­licada. Não podia dizer-lhe, com bestial sinceridade: “Acho você uma víbora de túmulo de faraó!” Trata de dourar a pílula:
— Meu anjo, o sexo é, no casamento, um detalhe.
A mulher recua, na cadeira, estupefata. A manteiga che­gou a escorrer-lhe da boca como uma baba: “Detalhe?” Na­quele momento, ele sofreu por não ter a inestancável facilidade verbal do Oto Lara. Com suas improvisações diabólicas, Oto provava tudo com um pé nas costas. Seus paradoxos punham abaixo verdades eternas. Gemeu, interiormente: “Ah, o Oto aqui!” Novamente, foi obrigado a pensar por conta própria:
— Nós vamos comemorar daqui a pouco as bodas de prata. E olha: depois de certo tempo, o amor conjugal vira amizade e o desejo entre marido e mulher passa a ser quase incestuoso.
A esposa pulou: “Continua com essa lógica que o jacaré te abraça!” Era uma senhora de educação escassa Dr. Odorico sofreu impessoalmente, como se o ultrajado fosse não ele, mas o próprio Judiciário. Levantou-se. Um pouco acuado, exagerou os efeitos da idade:
— Eu já não sou criança. De mais a mais, tenho andado meio indisposto.
A outra replicou com um argumento considerável: “Dois anos!” Mostrava-lhe os dois dedos: “Dois anos”! repetiu, triunfalmente. Perturbado, quis sair. Ela, porém, agarrou-o pelo braço. Dr. Odorico sofria duplamente: como homem e como juiz. Acabou perdendo a paciência e pregando a mentira humi­lhante e salvadora:
— Eu não queria dizer, porque, enfim, tive escrúpulo, vergonha. Mas fui ao médico e ele me disse que eu estava incapaz.
Apanhada de surpresa, a esposa recua: “Incapaz?” Repete, lúgubre: “Incapaz”. Insiste, fora de si:
— Definitivamente?
Suspira:
— Definitivamente.
Pôde sair, afinal. A caminho do lotação, decide eufórico: “Não posso me gastar com a esposa. Preciso me reservar para Engraçadinha.” Entrou num armazém próximo e ligou para o ginecologista:
— Preciso de um favor teu. Um grande favor.
O outro, que se chamava Alceu, Dr. Alceu, desmanchou-se no telefone:
— Você manda e desmanda. Por você, eu sou capaz até de uma boa ação. Novos amores?
O Dr. Alceu era, segundo todos os critérios de julgamento, um gangster da profissão. Mas coisa curiosa! Ninguém mais generoso, terno, feliz, realizado. Ás vezes, o Dr. Odorico, a ouvir-lhe as anedotas, as gargalhadas, punha-se a pensar: “Tem mais sanidade mental que um passarinho!” O juiz baixa a voz:
— Nada disso. O caso é sério. Uma menina de 14 ou 15 anos. Nada mais. Mas olha: é um exame a que eu preciso assistir.

*

Ao meio-dia, Engraçadinha liga para o Dr. Odorico. Disca e vai pensando: “Como é que posso falar contra esse filme, Les Amants, seu eu própria, eu, eu deixei, como se fosse uma prostituta...” Do outro lado da linha, Dr. Odorico atende. Ela fala:
— Sou eu, Engraçadinha.

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