quinta-feira, 12 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXI

Desceu na frente. Em cima do meio-fio, oferece a mão à Engraçadinha e, depois, à Silene. Volta-se, então, para o motorista. Ao mesmo tempo que puxa a carteira, seu rosto toma a expressão de um descontentamento cruel:
— Quanto é?
O motorista enfia a cabeça:
— Duzentos e...
Dr. Odorico balbucia num amargo escândalo:
— Duzentos e cinqüenta? Mas meu amigo!
E o chofer:
— Vim pela bandeira dois! Sou Zona Sul! Avisei!
Aquilo pareceu ao Dr. Odorico um assalto:
— Absolutamente! O senhor não avisou! Ou o senhor acha que eu sou alguma criança? Tenho testemunhas!
O profissional olha o juiz, de alto a baixo:
— Escuta, meu chapa! Com licença!
Mas Dr. Odorico já não se continha:
— Chega aqui, Engraçadinha! Vem cá! Ele avisou que era Zona Sul, avisou?
Varada de vergonha, murmura:
— Não.
A mentira doeu-lhe, fisicamente, como uma nevralgia. O motorista ri, sórdido:
— Olha, meu amigo! O senhor nasceu pra andar de taioba! O senhor não deve andar de táxi!
Por um momento, Dr. Odorico perdeu a fala. A presença, ali, de Engraçadinha, tornou a humilhação ainda mais abomi­nável. Com a voz espremida pela asfixia, reage:
— O senhor está falando com uma autoridade! Meto-lhe na cadeia! Lê isto aqui!
Só faltava esfregar na cara do outro a carteirinha de juiz. Insistia: “Lê!” E continuou, na sua cólera exultante:
— Sou juiz! E olha: já da primeira vez que vim aqui o chofer também quis me esfolar... Vocês, olha: mas que clas­se... e presta atenção, seu!
E o outro:
— Escuta, doutor!
Dr. Odorico corta:
— Quanto é? Duzentos e cinqüenta cruzeiros?
— Oh, doutor, escuta, doutor, não vamos brigar...
Dr. Odorico, num silêncio cruel, apanhava duas notas de cem e uma de cinqüenta. A escorrer humildade, o motorista gagueja:
— Mas eu não sabia...
Dr. Odorico interrompe:
— Nem mais uma palavra! Que te sirva de lição: para mostrar que não é pelo dinheiro, mas pelo desaforo, eu vou fazer isso. Espia!
Engraçadinha estava ao lado, no pânico de uma luta cor­poral. E, então, com uma fúria alegre e metódica, o Dr. Odo­rico rasga, em pedacinhos, as três notas. Ela ainda murmurou:
— Que é isso?
O efeito máximo, porém, foi quando o juiz, com a mão cheia, atira o dinheiro picado na cara do motorista, como con­fete.
Num gesto largo, que parecia escorraçar, a um só golpe, o volante e o carro, Dr. Odorico trinca os dentes:
— Suma!
O chofer arranca. Ainda com a dispnéia da indignação, vem caminhando com Engraçadinha:
— Você viu? E olha que eu não gosto de alegar a minha qualidade de juiz. Não é de meu feitio. Mas há ocasiões em que não é possível. É a falta de caráter do Brasil! Se ele ti­vesse dito que era Zona Sul...
— Disse.
Dr. Odorico tem um movimento de contrariedade:
— Como?
Silene repete:
— Ele disse, sim, falou que era Zona Sul.
Engraçadinha curva-se, zangada:
— Não dá palpite! Mania de dar palpite!
Com um lívido sorriso, Dr. Odorico pragueja interiormen­te: “Menina intolerável! Bonita, mas intolerável! Eu fui idiota de não olhar na mesa ginecológica!” Disfarça a sua irritação com uma falsa e melíflua generosidade:
— Não liga, Engraçadinha, não liga! É a idade, com­preende? Nessa idade, a imaginação altera e, mesmo, cria os fatos.

*

Sempre que saía, Engraçadinha deixava a chave com a vizinha do lado. Mandou Silene passar por lá. A menina volta: “Mamãe, D. Araci já apanhou.” Entram. A mãe de Leleco as esperava na sala.
Ergue-se, desconcertada. Engraçadinha, ao mesmo tempo que apanhava uma cadeira para Dr. Odorico, fazia a apresen­tação sumária e contrafeita:
— Aqui, o juiz.
Naquele momento, Dr. Odorico começava a ter uma pena aguda e retardatária do chofer. “No mínimo”, eis o que pen­sava, “tem família, filhos. Duzentos e cinqüenta cruzeiros faz falta, hoje em dia.” Com a sua distinção de Adolphe Menjou póstumo, inclina-se diante de D. Araci:
— Satisfação.
E ela, vermelhíssima:
— Igualmente.
Vira-se para a amiga:
— Com licença. Engraçadinha, quer vir aqui um instan­tinho?
Na fruteira, as bananas tinham pequeninas porcarias de mosca. Descontente com a visita (oh, que amolação!), Engra­çadinha segue a outra. D. Araci cochicha:
— Preciso falar contigo.
Com surda irritação pergunta:
— Não podia ser noutra hora?
E a outra:
— Tem que ser já. Agora.
Desesperada, Engraçadinha volta-se para o juiz. Faz se­gredo:
— Você vai dar licença um instantinho. Não demoro...
O outro ergue-se:
— Escuta, vamos fazer o seguinte: eu vou...
Assusta-se: “E não volta?” O rosto de Engraçadinha es­tava tão próximo e sensível que precisa se conter. Pensa: “Da­va-lhe um beijo no pescoço! Um chupão!” Responde, viva­mente:
— Volto, sim, é claro. Mas olha...
Fala ainda mais baixo: “Você não fala. Nem diz nada. Espera minha volta. Mas não diz a ninguém! Eu resolvo tudo!” Engraçadinha assentiu. E antes que ele saísse, diz-lhe, com sofrida doçura:
— Olha, Odorico. Eu queria te dizer o seguinte...
Respirava forte, realmente comovida e mesmo com von­tade de chorar. Continua: “O que você fez no consultório.” A princípio, não entendeu: “Como?” E ela, nervosa:
— Você, lá no ginecologista, não veio olhar, não quis olhar e eu... Olha: achei a sua atitude formidável. Muito nobre!
O juiz comoveu-se também. Disse um ‘ora’ de quem vive assumindo outras atitudes assim nobres e assim formidáveis. Admitia, porém, de si para si: “Sem querer, dei um grande golpe.” Engraçadinha repetia:
— Posso ter todos os defeitos, mas sou grata.
Engraçadinha encontra D. Araci chorando. Inclina-se:
— Mas o que é que há?
Sem uma palavra, mostra-lhe uma primeira página de jor­nal. Engraçadinha olha e toma um susto. Era a Luta Demo­crática. A manchete, com seus tipos colossais, sacudia o leitor com uma agressão gráfica. ‘Tragédia em Laranjeiras’, dizia lá. Atônita, Engraçadinha vai lendo. Outros cabeçalhos resumiam tudo: o Cadelão da juventude transviada da Praça Saenz Peña fora esfaqueado e morto. Engraçadinha ergue o rosto:
— E daí?
Perto, Silene olha e escuta. D. Araci continua, ofegante:
— Esse Cadelão você deve ter visto lá em casa. Foi lá várias vezes. Silene deve conhecer. Você não conhecia o Ca­delão?
— Vi uma vez.
E a velha:
— Era amigo de Leleco. Ontem, telefonou lá para casa. Perguntando por Leleco e pouco antes de morrer. Eu acho, até, não sei, mas acho, sei lá: que Leleco encontrou-se com ele.
Há um silêncio. Engraçadinha arrisca:
— Bom, mas... Você supõe ou...
Agarra a mão de Engraçadinha:
— Não te disse que o Ceguinho era batata? Ele avisou que dos 18 aos 19 anos... Engraçadinha, me palpita que o Leleco está envolvido...
Engraçadinha põe a mão no peito:
— Deus o livre e guarde!
Silene levanta-se:
— D. Araci, Leleco não mata ninguém! E, ontem, eu vi o Leleco e até muito satisfeito’. Falei com ele...
D. Araci agarra-se à Engraçadinha:
— O pior você não sabe. Leleco saiu e disse, ouviu? Que não voltava mais, Engraçadinha. Escuta: você deixa, En­graçadinha, que Leleco more aqui? Ele disse que lá pra casa não volta.

*

Muito pálida, Janet balbucia:
— Repete. Você matou?
E ele:
— Matei para não deixar de ser homem.

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